Reciprocidade.
Neste debate sobre a ética (1) houve quem propusesse que a ética tem que ser recíproca. Como, segundo dizem, os animais não têm deveres, nós também não temos deveres para com os animais. Que confusão. Dou como exemplo este parágrafo do Ricardo Alves (2):
«O Ludwig Krippahl insiste em que uma ética humanista implica deveres para com animais que não são obrigados a reciprocar deveres para connosco[...]. O exemplo que dá, o do cão, é mauzito: os cães não aderem a um dever, submetem-se ao dono. Enquanto não forem capazes de altruísmo desinteressado, ou de reparar um erro, sugiro que os deixemos de fora de qualquer humanismo. Não podemos reconhecer direitos a quem nunca os reconhecerá a nós.»
Nós exigimos que os animais cumpram certos deveres. O dever de não nos atacar, ferir, matar, e assim por diante. Os que não cumprirem são eliminados ou presos. É certo que os animais não reconhecem esses deveres da mesma forma que nós, mas um ladrão que não reconheça o dever de respeitar a propriedade alheia também vai para a cadeia. O direito que eu tenho que não me roubem nem me mordam é um dever que a sociedade impõe ao ladrão e ao cão, quer reconheçam quer não. Porque direitos e deveres são a mesma relação vista de lados diferentes.
É só esta a reciprocidade, do meu direito ser o dever dos outros para comigo e o meu dever ser o direito que outros legitimamente reclamam de mim. Mas não implica a reciprocidade do meu dever para com os outros ser igual ao dever dos outros para comigo. A reciprocidade do toma lá dá cá nem é ética, em geral. O suborno e o comércio são reciprocidade mas não comportamento ético. O Ricardo até nota isto ao salientar o «altruísmo desinteressado».
Pois é pela importância do altruísmo desinteressado que não se pode reduzir a ética ao comércio de direitos e deveres. Quando a velhinha se estatela à minha frente não é ético ponderar o que ela pode fazer por mim em troca do meu auxílio. Eticamente, o que importa é o que eu posso fazer por ela. É essa a consideração de um altruísmo desinteressado. O que o Ricardo chama ética é egoísmo interesseiro, dar aos animais apenas os direitos que eles nos derem a nós.
E até desta transação pouco ética quer excluir os animais: « os cães não aderem a um dever, submetem-se ao dono». Não me parece. Por muito inteligente que o animal seja, não sabe o que é propriedade privada. Para o cão, ele submete-se a um superior e não a um dono. Como fazem os lobos, os cavalos, os chimpanzés. E nós. A ética do rei manda é quase tão má como a ética do toma lá dá cá, mas tem também um rudimento do dever. O cão sente esse dever e o dono exige do cão esse dever, tal como nós sentimos quando obedecemos a uma autoridade ou exigimos quando usamos da nossa autoridade.
O segundo maior problema na proposta do Ricardo é «Não podemos reconhecer direitos a quem nunca os reconhecerá a nós». Claro que podemos. Ética é precisamente isso. Para reconhecer que a velhinha tem o direito que eu a ajude basta que eu reconheça o meu dever de a ajudar. Não é ela que tem que reconhecer, sou eu. Mesmo que ela esteja senil e incapaz de me reconhecer qualquer direito. É o tal altruísmo desinteressado de fazer o bem pelo bem em vez de fazer o que me dá mais jeito.
E o maior problema, normalmente implícito e disfarçado, sobressaiu numa resposta que o Ricardo deu a um leitor do Esquerda Republicana (2). Se só os humanos têm direitos porque têm capacidade de retribuir, de altruísmo, e essas coisas, como fazer com os deficientes mentais, perguntou o leitor. Simples, segundo o Ricardo: «os humanos com deficiências mentais pertencem à nossa espécie». Afinal, os outros animais só não têm direitos porque não são da nossa espécie. O resto do argumento é mera decoração.
1- Eu, 18-5-07, Olé! à ética humanista.
2-Ricardo Alves, 23-5-07,Reconhecer direitos sem reciprocidade? Nããã...
Ludwing,
ResponderEliminarSó umas coisitas.
O ladrão quando rouba sabe que transgride, o cão não.
Altruísmo desinteressado, não existe, pois quem o pratica é "recompensando" pelo simples facto de o "fazer": (..sinto-me tão bem por fazer o bem...).
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ResponderEliminarMário,
ResponderEliminarO cão também sabe que transgride.
O altruismo não tem a ver com sentir-se bem, mas com ser motivado pelo bem dos outros. Se isso faz sentir bem ou não é irrelevante. Não é mais altruista o altruista indisposto.
"Nós exigimos que os animais cumpram certos deveres."
ResponderEliminarFalso. Para exigir o quer que seja de alguém é preciso que esse alguém reconheça o que está em causa.O animal não reconhece.
Por via de regra, quando um cão morde uma pessoa é abatido. Presume-se que não conseguirá corrigir-se, que faz parte da sua natureza morder. Um homem quando abate outro homem é preso mas presume-se que será capaz de ressocializar-se e viver em sociedade. Porque essa diferença de tratamento?
Porque pensa-se que homem reconhecerá que errou, que é capaz de dominar os seus instintos, enfim, porque apesar tudo é livre.
A ética pressupõe liberdade,e a ideologia que domina este blogue pelo que eu pude observar noutros posts, é uma espécie de etologia, descreve-se o comportamento e diz-se que é impossível agir-se de outra maneira.
A etologia será assim meramente descritiva e não prescritiva como a ética.
Haverá algo mais a dizer mas ficará
para outra altura.
Ludwig,
ResponderEliminarSim, mas estás a ser omisso, o cão sabe que transgride, mas nem sempre, e é nessas ocasiões (que é a maioria das situações) que eu me refiro.
Relativamente ao altruísmo, estás errado: pois "altruísmo" tem como sinónimo "abnegação", que é "desapego do interesse próprio".
Verificar neste dicionário On-Line aqui.
Logo é, objectivamente, relevante.
Caro ASilvestre,
ResponderEliminar«Para exigir o quer que seja de alguém é preciso que esse alguém reconheça o que está em causa»
Não. Exigimos que todos que têm rendimentos paguem impostos, mesmo aqueles que não reconheçam o que está em casa. E também exigimos muito dos animais.
Para exigir não é preciso que o outro reconheça, nem para conceder direitos é preciso que o outro os compreenda.
E os cães também se ensinam. Às vezes melhor que os homens.
Quanto à liberdade, só rejeito a versão metafísica por ser incoerente. Não por ideologia. Mas reconheço a tal liberdade que vale a pena ter (como diz Dennett).
Miguel,
Como eu disse, o altruísmo é agir motivado pelo bem dos outros. Mas não deixa de ser altruísmo só porque nos sentimos bem. Só deixaria de ser altruísmo se o fizéssemos apenas para nos sentirmos bem.
Ludwig
ResponderEliminar"Como eu disse, o altruísmo é agir motivado pelo bem dos outros."
É falso, como eu disse é referi.
TUDO o que o homem faz, faz sempre em função de uma recompensa, mesmo que não o pareça, como no caso do altruísmo, assim sendo, em rigor, altruísmo não existe, no qual há "desapego do interesse próprio".
A motivação principal do altruísmo, é a auto-recompensa.
ResponderEliminarum cão é um cão.
ResponderEliminarNão acredito que a ética deva ter apenas em consideração os seres humanos (e que quando tenha em consideração os animais seja só pelo que pode advir de positivo para os seres humanos que se preocupam com eles).
ResponderEliminarMas creio que isso não é necessariamente incoerente e disparatado.
Podemos imaginar a ética como uma heurística para resolver conflitos numa comunidade da forma que mais favorece essa comunidade.
"Se matar for considerado errado, vamos ser desincentivados a matar. Isto é mau na medida em que a nossa liberdade de matar vai ser afectada, mas é bom na medida em que a liberdade de matar dos outros também vai ser.
O que é que preferimos?"
Portanto, uma comunidade cria uma heurística para auxiliar a regulação do comportamento dos seus elementos, e fazer com que esta regulação seja o mais positiva possível para essa comunidade.
Comunidades diferentes podem criar heurísticas diferentes. Os Totalós podem considerar que matar Fribinos não é errado, e os Fribinos podem considerar que matar Totalós não é errado. Isto pode fazer o seu sentido à luz da preocupação em encontrar o comportamento mais beneféfico para cada comunidade.
Mas uma interacção entre os Fribinos e os Totalós baseada na matança mútua pode não parecer o comportamento mais adequado para uma comunidade mais vasta que inclua ambas essas comunidades.
Então surgem heurísticas adequadas a comunidades maiores, maiores e maiores.
E qual é a comunidade maior para a qual existe vantagem em ter uma heurística? Qual a heurística útil mais geral possível?
Aqui poderíamos considerar que, enquanto não aparecerem ETs com uma inteleigência próxima ou superior à nossa, a comunidade maior é a comunidade de seres humanos.
E a essa heurística, a que for considerada mais adequada para avaliar a bondade do comportamento humano para benefício desta comunidade (a humanidade) pode ser chamada "ética".
Assim, limitar a ética aos seres humanos não é disparatado.
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Mas não é isso que eu penso.
Eu acho que a ética deve ter em consideração todos os seres capazes de sentir sofrimento ou dor. Mas não de forma igual.
Se fôssemos a pensar, "qual o mundo ideal se eu pudesse encarnar em qualquer ser com igual probabilidade?" criaríamos um paraíso de bactérias.
Creio que os humanos valem mais que outros seres vivos. Algo mais que os macacos, e estes muito mais que as baratas.
Mas creio que o sofrimento dos animais deve valer por si, e não só pelo nosso sofrimento ao saber dessa realidade - se não, quase todo o mal causado pelos maus tratos aos animais pode ser atribuído a quem o denuncia...
Confesso que o raciocínio do Ricardo me deixou um pouco espantada.
ResponderEliminarFace ao que li ocorre-me apenas dizer o seguinte;
Podemos acreditar que o Homem é por natureza bom se seguirmos a escola de Rousseau. Podemos até acreditar que o Homem é por natureza mau se optarmos por seguir o raciocínio de Hobbes.
A verdade é que a noção de bem e de mal nasce com o Homem. O incremento da inteligência dissipou o instinto e gerou o aparecimento destes dois grandes campos regidos pela chamada ética....o bem e o mal
Mas há algo que não podemos negar, para um animal não existe o bem nem o mal pois ele é apenas...natural.
Face a isto eu pergunto ao Ricardo....o que quer cobrar com a sua ética a um animal se é o Ricardo [leia-se Homem] quem está confuso face ao seu lugar e papel no mundo?
e já agora...
Inimputável - É a pessoa que cometeu uma infração penal, porém, no momento do crime, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determina-se de acordo com esse entendimento. São considerados inimputáveis os doentes mentais ou a pessoa que possua desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e os menores de dezoito anos. Os inimputáveis são isentos de pena mas, se doente mental, fica sujeito a medida de segurança e, se menor de 18 anos, fica sujeito às normas estabelecidas na legislação especial. Ver art. 26 e 27 do Código Penal e art.228 da Constituição Federal.
Se há humanos ilibados face às limitações do seu entendimento como poderemos, sequer, considerar um animal?
A ética é como um fumo moldada pelos ventos da moral e do conhecimento, sempre inconstantes e em alteração. Não deixando de ser um acto de inteligência, pode ser alterada pelo instinto natural de todos os animais, incluindo o ser humano. Geneticamente todos temos predisposição para alterar estes valores em caso de ameaça.
ResponderEliminarGostava de vos dar a conhecer este documentário: http://video.google.com/videoplay?docid=-1282796533661048967
ResponderEliminarEarthlings é um tema que eu não conhecia mas que passará a fazer parte das minhas teimosias.
O filme é bastante grande; sugiro que o salvem, gravem para CD e o vejam numa noite de insónia em que não tenham crianças por perto.
Caro Ludwing
ResponderEliminarO homem pode não saber porque razão tem o dever de pagar impostos mas tem capacidade, mediante informação, instrução, educação, para saber porque é que tem este dever. O animal não.
Ainda me há-de explicar que espécie de ética é sua sem livre arbítrio. A sua ética limita-se a descrever um comportamento imposto pelo meio natural, ou seja um determinismo absoluto.Por isso, quando muito é uma etologia. Uma ética tem de ser normativa para merecer o qualificativo ético.
Além do mais se a liberdade é incoerente do ponto de vista metafísico, como diz, não me parece que o materialismo estrito que defende seja menos. Recorrendo a Popper a liberdade pode ser infalsificável, mas materialismo não o é menos.
Gostava só de perceber uma coisa..
ResponderEliminarHá portanto aqui pessoas que acham que os animais não tem direitos nenhuns, é isso?
haver há, mas não são a maioria. Ao contrário do planeta.
ResponderEliminarSou radicalmente anti-touradas e radicalmente contra a tortura de animais. Como tal, não lamento por um único momento notícias como esta: http://jn.sapo.pt/2007/05/29/pais/dois_feridos_estado_grave_largada_to.html
ResponderEliminarCaro Ludwig:
ResponderEliminarA ética tem de ser recíproca.
Entre mim e um cão não pode existir um contrato que nos proíba, a mim de lhe fazer mal, e a ele de me fazer mal a mim.
O que pode existir é um contrato entre mim e outro ser humano que nos proíba aos dois de fazer mal a um cão.
Se é um contrato nesse sentido que você quer propor aos seus co-humanos, pela minha parte estou disposto a negociar consigo. Mas o cão nunca será outra coisa que não seja o objecto desse contrato.
Parece que animais não tem direitos, mas tem deveres a de morrer...
ResponderEliminarnão faz muito sentido isso.