sábado, fevereiro 10, 2007

Ao Acaso (parte 2 de 3).

(a parte 1 está aqui)

Diariamente somos atacados por bactérias, fungos, vírus, e outros parasitas. Nos últimos séculos começamos a compreender estes inimigos, combatendo-os com medidas (mais ou menos) inteligentes. Lavar as mãos, esgotos fechados debaixo do solo, agua desinfectada, vacinas, antibióticos, e assim por diante. Mas durante milhões de anos os nossos antepassados sobreviveram a estes perigos sem sequer saber o que eram, graças ao sistema imunitário. O mais interessante destas defesa são os linfócitos, os soldados do sistema adaptativo. Reagem especificamente a cada invasor e guardam memória das doenças que tivemos para reagir mais prontamente quando esses microorganismos voltarem a atacar.

Antes de continuar, pensem: como é que este sistema consegue atacar inúmeros agressores diferentes, sem atacar outras células do corpo humano, e sem qualquer inteligência? Impossível? Por acaso não é.

Todos os dias o nosso corpo cria centenas de milhões de glóbulos brancos (linfócitos) do tipo B. Durante a sua maturação, estas células baralham aleatoriamente o ADN que codifica proteínas (anticorpos) que vão ficar à superfície da célula. Assim, cada célula tem um tipo diferente de anticorpos, gerado ao acaso, e atacará tudo o que encaixe nos seus anticorpos. Mas uma arma apontada ao acaso é um perigo. Por isso estas células ficam retidas durante uns tempos na medula óssea e no timo, onde encontram muitas células e proteínas do corpo. Se os seus anticorpos se ligam a alguma coisa nesta fase a célula B suicida-se. Nove em cada dez morrem desta maneira, à nascença, evitando que sejamos destruídos pelo nosso sistema imunitário. Sem inteligência, apenas por processos bioquímicos de selecção.

Mesmo assim sobrevivem muitas, e a massa total de linfócitos que temos é semelhante á massa do cérebro ou do fígado. São muitas, muitas células, com muitos anticorpos feitos ao acaso. Nesta multidão é quase certo que haja a defesa para qualquer micróbio que aqui entre. É só questão de esperar que, por acaso, um dos invasores esbarre contra a célula certa. E com números tão grandes o acaso torna-se previsível.

Quando uma célula B encontra um alvo que encaixa nos seus anticorpos, começa a reproduzir-se. Cria muitas células parecidas, quase com o mesmo tipo de anticorpos. Parecidas porque já não baralha o ADN, mas não são iguais porque outros mecanismos induzem mutações nos genes dos anticorpos. Isto cria uma população de células B ligeiramente diferentes. Umas serão menos eficazes, mas outras serão ainda mais eficazes que a original. E estas vão se reproduzir mais, criando células potencialmente ainda mais eficazes.

Sem inteligência, há um grandes desperdício. 90% destas células têm que ser eliminadas à nascença, e a vasta maioria das restantes morre ao fim de uns dias sem qualquer utilidade. Tudo isto para que o acaso gere a ínfima minoria que nos salva a vida todos os dias. E nem sempre funciona bem. Diabetes, lupus, reumatismo, muitas doenças devem-se a erros neste processo que fazem o sistema imunitário atacar as células do corpo. Sem inteligência, também não distingue um invasor perigoso duma proteína de amendoim ou de um grão de pólen, e a reacção pode ser fatal para quem é alérgico.

Com inteligência faz-se melhor. Mesmo com uma compreensão limitada, nós já fazemos antibióticos que atacam apenas bactérias e não amendoins, sabemos treinar o sistema imunitário com vacinas, e conseguimos remediar cada vez melhor os erros deste sistema cego. Um ser omnisciente nunca criaria um sistema tão ineficiente. O extraordinário deste sistema é como a combinação de acaso, características herdadas e selecção criou uma solução milhões de anos antes de alguma inteligência compreender o problema.

5 comentários:

  1. "Um ser omnisciente nunca criaria um sistema tão ineficiente"

    O Ludi é muito teimoso. Aprendeu umas coisas sobre como funciona o corpo humano mas daí até compreender o mistério da vida vai um passo de gigante, superior à sua inteligência e arcaboiço físico (metáfora referente ao "passo de gigante"...).

    Alguém um dia me falou na soberba intelectual dos cientistas. Concordo com essa pessoa. Acham-se extremamente inteligentes e querem ocupar, junto do povo humilde, o papel de pequenos deuses.

    É como a questão das prexes universitárias: no ano em que entrei na universidade, no tempo do falecido sottomayor cardia, fui do primeiro lote de 6 mil estudantes que foi seleccionado. Depois, com várias repescagens penso que se atingiu o dobro. Na altura, fruto da época (1978), ninguém tinha a sensação de pertencer a uma elite nem tínhamos sentimentos elitistas. Não havia trajes académicos nem praxes.

    Hoje com os milhares de cursos que andam por aí e as dezenas de milhares de estudantes e mais os milhares de doutorados (lembro-me que na altura descobri que no 4º ano de Economia dava coisas em Matemática que se ensinavam só nos mestrados do Técnico, há uma tentativa de revalorização dos cursos, dos alunos e dos professores.

    Mas daí até obterem o estatudo de pequenos deuses e criticarem o Criador por lhes ter dado uma hipótese de trabalho (já pensou, Ludi, que se o mundo fosse perfeito nem eu nem vc andávamos por aqui? acho, sinceramente, um grande abuso e uma imensa ingratidão.

    Um dia, Ludi, daqui a muitas e muitas décadas espero que vc encontre Deus e lhe possa perguntar o que Bertrand Russell disse uma vez numa entrevista a um jornal britânico quando lhe perguntaram o quer faria se morresse e descobrisse que Deus existia. Bertrand Russell respondeu: "Meu Deus, porque me deste provas tão insuficientes?!"

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  2. Caro António,

    Ninguém compreende o mistério, por definição. E a vida não é um mistério. É química (o que para muitos parece um mistério, de facto).

    A ciência não nos pode dar deuses por uma razão simples. Os deuses são seres misteriosos em que temos que acreditar sem compreender. A ciência é um conjunto de ideias que compreendemos pela dúvida.

    Penso que a grande confusão do António é pensar que eu estou a falar de crenças quando eu estou a falar de compreender as coisas.

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  3. "Um ser omnisciente nunca criaria um sistema tão ineficiente"

    Oi Ludwig,

    Não creio que que este sistema seja tão ineficiente. Nos trouxe até aqui, por entre milhões e milhões de anos, não?

    De qualquer forma, um sistema ser eficiente ou não, não prova que tenha sido consequência de uma causa inteligente.

    O motor a combustão, por exemplo, foi criado por uma consciência inteligente mas não é nada eficiente.

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  4. Caro Bruno,

    Não, na verdade não nos trouxe por milhões de anos. O que fez foi permitir que alguns dos que viveram no passado sobrevivessem o tempo suficiente para deixar descendentes.

    Neste momento esse sistema serve-nos para cerca de 7 décadas, se o ajudarmos bastante com o que podemos fazer com a nossa inteligência (senão dá para cerca de metade do tempo, com sorte).

    E se provar for no sentido de testar (provar o fato, provar a comida), então um bom teste para ver se um sistema foi feito com inteligência é ver se é eficiente. Se não é, então ou foi burrice ou foi outra coisa, mas inteligência não foi :)

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  5. Caro Ludwig

    A vida não é nenhum mistério? Então, explique-me por favor. E não estou a ser irónico, é um pedido sério. Escreva uma série de posts sobre isso (se quiser, é claro).

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