domingo, fevereiro 18, 2007

00111 – Licença para digitalizar.

No dia 12 o Miguel Caetano criticou uma proposta para substituir todos os direitos de autor por uma única licença de transmissão digital (1). Concordo que não seria prático licenciar cada utilizador de redes de partilha, mas penso que há duas objecções mais fundamentais: a natureza do conteúdo digital, e o propósito dos direitos de autor.

Um quadro igual a outro é uma cópia. Mas «um rectângulo azul pantone 266, com 13,2 cm de altura por 28,6 cm de largura...» é uma descrição, e por muito detalhada que seja não é uma cópia do que descreve. No copyright digital temos que ignorar esta distinção. Digitalizar é calcular uma descrição numérica, não é copiar nem converter, e temos que estender a protecção às descrições das descrições, numa recursividade infinita. Enquanto o ficheiro mp3 descreve a música, o ficheiro zip do mp3 descreve o ficheiro mp3 e não a música. E isto é só parte do problema.

É fácil ver que «rectângulo azul...» descreve uma imagem e «blaofot8 90 jfakdjf...» não descreve nada. A forma natural de interpretar um texto permite determinar o seu significado. Com sequências de números nem isto temos. Uma sequência como «10010101101101...» significa o que quisermos e pode descrever qualquer coisa. Sendo impossível especificar que sequências se pode ou não transmitir, não faz sentido regular a transmissão de informação digital.

Por outro lado, o licenciamento não serve para fomentar a criatividade, mas para custear a distribuição. A investigação científica, a filosofia, a matemática, até a culinária, não têm qualquer forma de licenciamento. Até nas patentes, o que é não é a ideia, mas apenas a sua aplicação comercial. A ideia patenteada é do domínio público.

O licenciamento de obras artísticas no inicio do século passado foi uma forma de subsidiar a produção e distribuição de livros, gravuras, pautas, e eventualmente filmes e discos. Tal como antes do século XX, também agora isto é desnecessário, e não há razão para que os artistas tenham que ganhar a vida de forma diferente de um biólogo, matemático, professor, ou cozinheiro.

A sociedade deve incentivar a criatividade artística, e a melhor maneira é fazê-lo como o faz noutras áreas: financiado o ensino e a prática das artes sem conceder direitos exclusivos que acabam por prejudicar a divulgação, adaptação, e a própria criatividade.

1- Miguel Caetano, 12-2.07, Uma licença global para o “mercado” da música digital

2 comentários:

  1. Olá Ludwig

    Desculpa a demora na resposta ;-)

    A sociedade deve incentivar a criatividade artística, e a melhor maneira é fazê-lo como o faz noutras áreas: financiado o ensino e a prática das artes sem conceder direitos exclusivos que acabam por prejudicar a divulgação, adaptação, e a própria criatividade.

    Em parte, concordo. Isso que escrevestes faz-me lembrar um pouco o que já se passa no Brasil, com o projecto Pontos de Cultura, em que músicos, artistas, documentaristas e programadores criaram com o apoio do Ministério da Cultura uma rede nacional de cursos de formação e acções práticas junto das comunidades locais, de forma a incentivar a produção cultural.

    Isso passa-se no Brasil, um país com circunstâncias políticas, sociais, culturais e económicas muito especiais. Mas é difícil acreditar que este modelo possa ser transplantado para outras realidades, sobretudo europeias e americanas, e aplicado a larga escala.

    Isto porque os estados raramente fomentam a cultura contemporânea e quando o fazem é no intuito de retirar benefícios concedidos por organizações comerciais ou obedecendo a lógicas de "compadrio" nada transparentes.

    Por outro lado, se um biólogo, um matemático ou um filósofo podem ganhar a sua vida como professores do ensino público, a sua ascensão na hierarquia académica está inevitavelmente dependente do número de artigos que publicaram na revista y ou x. Essas publicações fazem tudo ao seu alcançe para fazer valer os seus direitos, vedando o acesso aos artigos através da Internet, cobrando quantias enormes por assinaturas anuais, etc. Outro instrumento de prestígio essencial para um cientista é a publicação de um livro numa reputada editora no seu campo de especialidade. E todos nós sabemos que apenas uma pequena minoria de autores disponibilizam online os PDFs do que vão publicando.

    Tendo em conta a forma como a ciência e a cultura estão, perante as circunstâncias actuais, "atadas" a um regime de direitos de autor em que os grandes privilegiados são outros que não os próprios criadores, não vejo grande possibilidade de nos desembaraçarmos de um momento para o outro de um sistema de licenciamento. Deste modo, penso que uma licença global voluntária é uma medida compensatória que poderá servir como meio de transição para outro sistema, menos dependente de entidades comerciais.

    Tendo dito isto, devo acrescentar que existem opiniões contrárias a esta no movimento da cultura livre. É o caso de Rasmus Fleischer e de Palle Torsson ("The Grey Commons") e de Stefan Merten ("Copy kills (music kills) capitalism").

    O problema é que as alternativas que eles fornecem para resolver esta questão parecem pouco realistas e excessivamente utópicas... Mas vale sempre a pena explorar outras soluções.

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  2. Oi Miguel,

    Estás perdoado ;)

    «Por outro lado, se um biólogo, um matemático ou um filósofo podem ganhar a sua vida como professores do ensino público, a sua ascensão na hierarquia académica está inevitavelmente dependente do número de artigos que publicaram na revista y ou x. Essas publicações fazem tudo ao seu alcançe para fazer valer os seus direitos, vedando o acesso aos artigos através da Internet, cobrando quantias enormes por assinaturas anuais, etc.»

    Não é bem assim. Em geral, as revistas permitem que os autores tenham cópias do artigo nas suas páginas pessoais. É quase sempre possível obter o artigo da página do autor, ou pedir-lhe um reprint directamente (muitas revistas dão ao autor uma molhada de exemplares do artigo).

    Finalmente, há já várias publicações abertas, e acordos institucionais com muitas editoras. A B-On por exemplo, permite o acesso gratuito a muitas publicações.

    Mais importante, os custos de publicação e de subscrição são mínimos no orçamento de investigação. A gestão de direitos tem um efeito nulo na motivação da ciência fundamental.

    A razão porque normalmente é difícil encontrar estes artigos é porque não são de consumo popular, senão ligavas a mula e tinhas o pdf em 5 minutos :)

    É por isso que eu acho que mais cedo ou mais tarde esse sistema de "gestão de direitos" vai acabar. É impossível regular transmissões digitais sem acabar com elas. Se deixas que transmitam 0s e 1s, deixas transmitir tudo.

    Mesmo um policiamento apertado e milhares de processos por mês não adiantam. A única razão porque não se passou a usar protocolos mais seguros de partilha de ficheiros (como o do ants e afins) é por serem menos eficientes e simplesmente não vale a pena, porque a probabilidade de ser processado é tão baixa.

    «O problema é que as alternativas que eles fornecem para resolver esta questão parecem pouco realistas e excessivamente utópicas... Mas vale sempre a pena explorar outras soluções.»

    Para mim o problema não é a qualidade das alternativas, mas a inviabilidade deste modelo. É impossível continuar com a gestão de direitos de transmissão ou cópia. Podemos mudar para uma regulação de actividade económica, ou deitar isto fora e esquecer esta forma de incentivo, mas seja como for qualquer opção que dependa de controlar a informação digital está condenada ao fracasso.

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