sábado, dezembro 02, 2006

Alhos. Bugalhos.

A grande dificuldade em discutir o aborto é a diferença fundamental dos argumentos. O sim argumenta pelo direito de escolha da mulher, contra a ineficácia da lei vigente e a humilhação do processo jurídico, pela perspectiva de melhorar questões sociais e de saúde, e assim por diante. O não argumenta pela defesa da vida humana. Isto são coisas diferentes; mesmo que sejam todas verdade, as razões apontadas pelo sim não justificariam a morte de um recém-nascido ou qualquer vida humana que se preze.

Os defensores do sim assumem que aborto não é como o infanticídio, mas é isso que se discute. O resto é secundário e nem sequer é ponto de divergência; eu concordo com quase todos os argumentos propostos pelo sim. Onde o sim falha é em mostrar uma diferença ética clara entre o infanticídio e o aborto.

A maior dificuldade é que ser morto às dez semanas ou à nascença é a mesma coisa para aquele que é morto. O acto em si também é idêntico: a morte deliberada de um ser vivo em pleno desenvolvimento. As diferenças entre aborto e infanticídio são apenas nas circunstâncias em que ocorrem.

Um argumento é que o feto é apenas uma pessoa potencial. Mas parece-me que a melhor definição de pessoa é precisamente o potencial de viver como pessoa, e é a única que se pode aplicar ao recém nascido. Um recém nascido normal levanta a cabeça, reage quando ouve uma campainha, olha para caras, e só ao fim do primeiro mês é que começa a sorrir (1). Não é isto que faz do recém-nascido uma pessoa, mas sim a vida de pessoa que tem pela frente.

O Francisco Burnay ilustrou uma variante deste argumento:

«A grande objecção que eu faço aos critérios do Ludwig é o facto desse ser não ter papel nessa escolha simplesmente porque a questão não se coloca - daí eu me referir ao anacronismo. O que eu penso é que do ponto de vista do feto ou embrião antes e depois de um aborto o saldo de direitos é nulo. Não há perda de direitos. Tal como na eutanásia de um indivíduo em coma permanente.»

Note-se: permanente. Um estado de coma reversível não justificaria a morte. É apenas o carácter permanente desta incapacidade que torna nulo o saldo de direitos. E o feto não ter papel na decisão de abortar não o diferencia do recém-nascido, que também não terá papel na escolha do infanticídio. O feto, o recém-nascido, e o paciente em coma reversível não valem pelo estado em que estão mas pelo futuro que têm pela frente. Não é de forma nenhuma anacronismo considerar esse futuro se estamos a decidir eliminá-lo permanentemente.

Outro argumento é que o feto não é pessoa porque não sobrevive autonomamente. O problema principal é que a autonomia é eticamente irrelevante. Se eu levo um recém-nascido ao colo durante um nevão não é por ele estar dependente do uso do meu corpo que eu tenho o direito de o largar e deixar morrer. E quando se trata de um filho, resultado de um acto consensual, esta dependência dá ainda mais responsabilidades. Não me parece nada razoável dar aos pais o direito de matar os filhos por estarem os últimos dependentes dos primeiros.

Uma razão porque tenciono votar “não” é que não estou nada satisfeito que matar um feto seja tão diferente de matar um recém-nascido. Para despenalizar tal acto teria que ter muita confiança numa diferença radical entre os dois casos. Pelo contrário, parece-me que são eticamente equivalentes nos aspectos mais importantes. Podemos dizer que só a partir das 24 semanas é que a tecnologia moderna permite a sobrevivência fora do útero, mas esse facto não justifica dar á mãe o direito de matar o filho.

Mas há outra razão que me levaria a votar “não” mesmo que estivesse confiante que o feto não merece protecção: não é admissível que o direito mais fundamental – o direito de não ser morto – seja decidido por referendo. Não é uma coisa que a maioria tenha legitimidade para decidir, especialmente quando os visados não votam. Pior ainda, com esta questão disfarçada de interrupção da gravidez.

(1) Kliegman, Behrman, “Nelson Essentials of Pediatrics”, 3ª Edição, 1998, Saunders

24 comentários:

  1. Se a vida intra-uterina não tem valor, só faz sentido o aborto legal até aos 9 meses.

    Se existe de facto essa vida humana, e acho que os factos são indesmentíveis, essa pessoa deve ser reconhecida e deve ter direitos iguais aos recém-nascidos. Se eu matar uma mulher grávida de 8 meses, só me é imputada a morte da mulher, a criança é como se não existisse. Faz sentido?

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  2. Caro Ludwig,

    Quando me refiro a um coma irreversível, faço-o apenas para reportar a uma situação ideal. De facto, acho que é tão censurável terminar um coma irreversível como terminar um coma que, tanto quanto sabemos, é irreversível apesar de existirem indícios (ainda que meramente estatísticos) de não o ser.

    O Ludwig reelaborou alguns argumentos que já havia apresentado mas esperava que tivesse comentado a questão do direito à reprodução que levantei noutra caixa de comentários.

    Se aceitar o ponto de vista do Ludwig de que abortar um ser humano em desenvolvimento é criminoso porque estamos a anular a possibilicade de uma consciência se vir a tornar independente, não posso pôr de parte o problema que se levanta por me ter reservado o direito de ter criado uma consciência independente de mim, consciência essa que vai ser exposta a um ambiente que nunca escolheu e cuja existência é independente da sua escolha.

    Onde está a fronteira entre o direito à reprodução e o direito decisivo (ou potencialmente decisivo) de uma futura consciência? Se existe um conflito no caso do aborto também existe um conflito no simples caso da reprodução.

    Em que ponto é que se pode garantir que o direito da vida intra-uterina se sobrepõe ao direito reprodutivo de um casal? Na fecundação do óvulo? Na fixação do ovo na parede do útero?

    Se de facto não temos direito de terminar uma vida que começámos porque ela deve ser livre de decidir o seu destino, então a liberdade dela decidir o seu destino já foi posta em causa ao ter sido criada.

    Viktor Frankenstein pretende construir uma criatura a partir de partes animais e humanas sabendo que no seu conjunto o ser final terá uma consciência própria e capacidade de decisão. Ele liga a corrente eléctrica para a animar, sabendo à partida que depois de animada, o destino da criatura será independente do seu criador. Será ilegítimo que Viktor se arrependa e desligue a corrente antes que ela ganhe a sua independência?

    Para mim, essa criatura seria plena de direitos depois de viva, já que cai dentro dos critérios que apresentei. Mas será que eu acho que Viktor tem o direito de criar esses seres, de forma arbitrária?

    Se Viktor tem esse direito, então tem o direito de desligar a corrente. Se Viktor não tem o direito de desligar a corrente, então não tem esse direito.

    Se um casal não tem de todo o direito de interromper a gravidez, então não tem direito reprodutivo.

    Se o Ludwig acha que esse direito não existe porque a vida de um indivíduo não deve depender de terceiros isso é verdade para o aborto e para o processo que leva até ao parto.

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  3. A semelhança, para mim, entre a eutanásia e o aborto em termos de saldos nulos de direitos é o facto de no caso de um coma irreversível se terem perdido todos os direitos; no caso do aborto não se perdem direitos porque ainda não se chegou a tê-los.

    Porque é que um ser em coma irreversível perdeu todos os direitos? Porque perdeu a sua autonomia e a sua liberdade. Portanto a autonomia não é irrelevatne. No caso de um feto, se este ainda não tiver nem autonomia nem liberdade, estará numa situação semelhante. Resta saber se está nessa situação. Eu acho que está. Portanto podemos decidir por ele.

    No exemplo do nevão, salvar a criança torna-se num dever já que essa criança não foi lá parar sozinha. Presume-se que o nevão tenha aparecido contra a vontade de todos já que ninguém quer ali ficar. Portanto a criança está preste a perder os seus direitos e caso não seja salva isso acontecerá. Ela já tem direitos porque já era autónoma antes do nevão. E vai perdê-los, juntamente com a sua vida, se não a tirarmos dali.

    Acresce-se o facto de ninguém reflectir assim durante um nevão... Se um explorador se recusar a salvar a vida de uma criança num nevão e for a julgamento por isso, a questão de se tratar de uma situação crítica deveria ser avaliada e deve apurar-se até que ponto ele faltou a essa responsabilidade.

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  4. Escrevi

    «Eu acho que está. Portanto podemos decidir por ele.»

    Passo a aparente decisão autocrática... Leia-se:

    «Eu acho que está. Acho que podemos decidir por ele.»

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  5. Senhor Bróculo (não estou a querer gozar, mas não tinha outro nome a usar), se alguém declara o rendimento mínimo e anda de Prosche, será que se deve vasculhar na lei e decidir o castigo? Claro que sim, mas acha que nesta matéria em causa (aborto) se deve pensar com o coração, ou ir buscar falhas na lei? Uma lei que não pode ser perfeita…mas na situação que falou até não teria lógica…será que alguém que mata uma mulher (para o gordinho), se soubesse que estava em processo de gravidez o faria? Se não sabia da gravidez não devia/poderia ser acusado de uma morte que não pretendia ou nem teria coragem de originar…

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  6. Tens razão quanto à decisão por referendo ser injusta. Mas não será mais injusto o 'não' ou o 'sim' do que um voto em branco.
    Também acho que nós, homens, não devíamos ter direito ao voto nesta matéria. A decisão absoluta só cabe
    à mulher (individual) e a mais ninguém.

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  7. Se somos responsaveis pelo nascimento de uma criança, tambem temos o direito de votar no assunto...não percebo a duvida...o "dever" não esteve sempre ligado ao "direito"?

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  8. Podemos ter direito a opinar, mas os direitos acabam aí.
    O senhor luís pestana também não gostaria que referendassem as suas liberdades individuais mais básicas, pois não...???

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  9. Sr Cardoso, não fique chateado comigo...sei que anda um pouco irritado (pelo que li no seu profile), mas melhores tempos virão, esperando eu que seja rápido.

    Sobre a questão de me dizer que só se tem direito a opinar não concordo, pois na responsabilidade de uma criança o pai não se limita a opinar "eu acho que ele precisa de se alimentar melhor", "na minha opinião ele devia ser mais acompanhado"..tem de agir!

    Logo volta-se à relação dever/direito, dai o direito à votação para todos que são responsaveis no assunto, ou seja homens e mulheres.

    Sobre se gostaria de referendos acerca de necessidades do sexo masculino, digo logicamente que adoraria, pois a liberdade tem a mesma idade do voto, ou seja, nasceram no mesmo dia.

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  10. Sr Cardoso, não fique chateado comigo...sei que anda um pouco irritado (pelo que li no seu profile), mas melhores tempos virão, esperando eu que seja rápido.

    Sobre a questão de me dizer que só se tem direito a opinar não concordo, pois na responsabilidade de uma criança o pai não se limita a opinar "eu acho que ele precisa de se alimentar melhor", "na minha opinião ele devia ser mais acompanhado"..tem de agir!

    Logo volta-se à relação dever/direito, dai o direito à votação para todos que são responsaveis no assunto, ou seja homens e mulheres.

    Sobre se gostaria de referendos acerca de necessidades do sexo masculino, digo logicamente que adoraria, pois a liberdade tem a mesma idade do voto, ou seja, nasceram no mesmo dia.

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  11. Peço desculpa..não sou gago, mas houve algum problema aqui:)

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  12. Ludwig,

    "não é admissível que o direito mais fundamental – o direito de não ser morto – seja decidido por referendo"

    Exactamente.
    É por estas e por outras que eu considero que as visitas a este blogue são sempre tempo bem empregue!
    É raro encontrarmos, hoje em dia, pessoas que estejam mesmo empenhadas em compreender a questão do aborto em todas as suas vertentes. Não só é errado abortar, em termos éticos, como é errado referendar o aborto. E é muito raro deparar-me com alguém que se tenha dado conta desta última frase: o erro do próprio referendo.
    Ninguém se lembraria de propor um referendo acerca do homicídio, e é isso que me faz falar em ética turva. Os nossos governantes ou deixaram de pensar (hipótese a ter em conta) ou apenas pensam nas suas agendas eleitorais...
    Um abraço

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  13. Senhor Pestana, não estou irritado consigo...bem talvez um bocado.
    Quanto ao poder de decisão, nestas matérias, da parte do homem, continuo a achar que é inteiramente da mulher. Claro que o companheiro pode sempre ajudar e opinar.
    Agora, note que nunca referi o "pai" mas sim o "homem" reprodutor. O "pai" só o será se a mulher o consentir, e o "homem" reprodutor não deixará de o ser, indepentemente
    da decisão da mulher.
    E para concluir: Diga o que disser, a última palavra é sempre dela, e é a ela que esta pertence.

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  14. Sr. Cardoso, sobre o “poder de decisão” já vi lhe cada um tem a sua ideia e daí não vamos sair, por isso ficamos assim.

    Tem razão quando falei em “pai” como situação posterior, se neste caso não se trata disso, mas deu para perceber o que eu pretendia explicar, a relação direito/dever.

    Sobre “a última palavra ser dela”, trata-se de um facto, mas não invalida o eu também querer votar para dar a minha opinião, sobre a acção que ela possa “legalmente” fazer com o “meu filho”.

    P.S.: Espero que esta chuvada lhe tenha retirado a irritabilidade que lhe causei, pois foi sem querer…

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  15. Caro André,

    A distinção entre pai e homem reprodutor parece-me pouco razoável. Uma mulher grávida pode identificar o pai do filho que traz no útero, e o dito fulano não se poderá safar com "Pai? Coisa nenhuma. Sou homem reprodutor, mas não sou pai disso".

    Mas o problema principal é a morte do feto. E feto todos já fomos.

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  16. Para concluir, espero eu, repito esta observação: votemos ou não, decidamos ou não, referendamos ou não, a decisão final será sempre "dela".
    A liberdade (?) que nos dão, a nós homens, para termos peso na balança decisória levará sempre a um desfechar injusto ou hipócrita.
    Se votamos 'sim', é um que é circunstancial e opinativo, e que apesar do seu peso absoluto a nossa intenção era relativa; Se é 'não', é uma intenção de limitação da liberdade das mulheres, e não da nossa mulher.
    Um voto masculino será sempre hipócrita e irrelevante ou injusto e relevante.
    Espero que me tenha explicado bem.

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  17. Quanto à distinção entre pai e reprodutor, não é uma que seja biológica ou mesmo religiosa, mas aquela que é palpável.
    Sentir-me-ei pai de duas, quatro, ou mesmo 476 células? Eu não creio.
    E de um embrião do qual eu só tenho umas estranhas (eco)imagens?
    Eu não sou pai, mas parece-me a mim que um homem só se sente pai no momento do parto...
    Quanto à mulher é um caso diferente.

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  18. Explicou-se muito bem (embora não concorde consigo) mas desta vez percebi a tua ideia.

    Abraço

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  19. Caro André,

    Tudo o que a lei condena são actos cuja decisão final está sempre com quem os pratica. O aborto não é excepção.

    Além disso a questão essencial aqui é se a vida humana merece protecção como um todo ou só a partir de certa altura. Isso não é coisa que cada mãe decida acerca do seu filho.

    Finalmente, posso dizer-lhe por experiência própria que me senti pai mesmo na ecografia, e antes até. Não me senti pai de um risco azul no teste da gravidez, e sentimos a paternidade de maneiras diferentes ao longo do processo. Mas senti-me pai logo que soube que o era.

    E há uma realidade biológica objectiva que nos torna pais na concepção, independentemente do que sentimos.

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  20. Caro Ludwig,
    Quanto à questão do conceito de pai, não discuto por falta de experiência e até dou a mão à palmatória.
    Quanto à despenalização do aborto, iria mais longe: quando é que uma vida pluricelular ou fetal passa a ser humana?
    E seguindo o seu raciocínio, quem deveria ter voz nesta matéria seria a classe médica, classe esta que concorda com um limite de 10 semanas.
    O que eu digo é que não sendo dada aos especialistas a decisão nesta matéria, a prioridade deveria passar automaticamente para as mulheres.

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  21. Caro André,

    As dez semanas não têm nada de médico; a justificação é essencialmente burocrática. Há uma distinção às 8 em embriologia, entre o feto e o embrião, mas que diz respeito unicamente à formação dos orgãos principais. Não tem nada a ver com ser humano, pessoa, ou o que o valha.

    Mas o que a biologia e a medicina nos dizem é que a vida é a mesma, quer na primeira semana, na 10ª, ao nascimento, ou quando deixa crescer o bigode. É o mesmo organismo, a viver a mesma vida. Cada um de nós só tem uma vida, e não uma antes das X semanas e outra a seguir.

    Por isso a primeira questão que temos que colocar é se faz algum sentido tentar partir a mesma vida do mesmo organismo numa vida não humana seguida duma vida humana. Até agora não encontrei uma justificação adequada para inventar algo tão distante da realidade biológica.

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  22. Talvez tenhas razão...
    Tenho que pensar mais sobre o assunto e documentar-me melhor.
    No entanto, continuo a não sentir que tenha o direito a decidir sobre esta matéria, e que (se esse direito existir) se alguém o tem serão os actuadores, ou seja, as mulheres.

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  23. Penso que estás enganado: as oito semanas são defendidas pelos burocratas, e as dez pela classe médica.

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  24. Não sei se alguém defende as 8 semanas. Mas as 10 não correspondem a nada de significativo no desenvolvimento fetal.

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