segunda-feira, dezembro 24, 2007

Razão e ciência.

O Desidério Murcho escreveu no De Rerum Natura um post interessante sobre razão e cientismo (1). Concordo com quase tudo, mas gostava de implicar com uma parte. O Desidério dá um exemplo do João concluir que a Maria o ama como algo racional mas não científico:

«É um erro reduzir a racionalidade ao mero cálculo, à prova ou à experimentação. A racionalidade é mais vasta. Vejamos um exemplo. [...] Precisa o João de provar cientificamente, ou matematicamente, ou logicamente, que a Maria o ama para ter justificação para pensar que ela o ama? Claro que não. Ele tem justificação para pensar tal coisa porque ela age de um modo que permite concluir que ela o ama»*

Se o que o João observa permite concluir que a Maria o ama então o João tem uma prova científica do amor da Maria. A prova científica é o teste pela observação que confirma umas hipóteses e infirma outras. Se o João tivesse observado algo que desse mais suporte a uma hipótese alternativa então não se justificaria racionalmente concluir que a Maria o ama. Se se justifica concluir que a Maria o ama é porque aquilo que observou dá mais suporte a essa hipótese que às alternativas.

Admito não imaginar o João de bata branca a consultar apontamentos para calcular a verosimilhança da sua hipótese. Imagino-o tomado de paixão a acreditar no amor de Maria. E se o João está a decidir impulsivamente, sem indícios que justifiquem a conclusão ou ignorando indícios contrários (a Maria só o quer pelo dinheiro), então concordo que a conclusão do João não assenta em provas científicas. Mas nesse caso também não é racional.

É verdade que a ciência, na prática, tem muito mais que isto. Mas o aparato científico é uma extensão deste princípio. A tecnologia que a ciência usa, os modelos matemáticos, a verificação independente, a revisão de publicações e tudo o resto são apenas ferramentas que servem a procura daquelas hipóteses que as observações melhor suportam. E concordo com o Desidério que não podemos concluir nada apenas pela observação (2). Precisamos sempre de algum argumento, no sentido lato de inferir uma conclusão a partir de premissas. Mas não podemos justificar uma conclusão acerca de algo sem incluir observações nas premissas. Sem uma prova científica. A ciência é o método para chegar a conclusões justificadas acerca de algo.

Conclusões que não sejam acerca de nada não precisam de observações. “2+2=4”, enquanto mera aplicação de uma regra que substitui “2+2” por “4”, pode ser uma conclusão que não depende de observações. Mas só enquanto manipulação de símbolos. Se queremos que o “2” se refira a um número e o “+” à soma, ou seja, se queremos dar significado aos símbolos e concluir acerca de alguma coisa, aí é preciso observação. A tal prova científica. Porque dois apertos de mão mais dois dias de chuva não dá quatro de coisa nenhuma.

* O exemplo do Desidério incluía dois problemas diferentes. Um descritivo, o João saber o que a Maria sente, e um normativo, o João decidir se é melhor casar com a Maria. Como não consegui encaixar os dois no mesmo post fiquei-me pelo primeiro. Por enquanto...

1- Desidério Murcho, 20-12-07, Fé, racionalidade e cientismo
2- Desidério Murcho, 21-12-07, Provas, indícios, demonstrações e argumentos

7 comentários:

  1. O João nunca poderá ter uma prova científica do amor de Maria. O que ele observa são manifestações emocionais de Maria que atribui ao amor mas não consegue observar o amor porque o amor não se observa. Dir-me-à que o João observa indirectamente o amor e aí discordo porque isso é entrar no método científico da teoria das cordas, pelo qual não tenho muito respeito.

    E os papers são uma grande treta. A comunidade espírita portuguesa não se lembrou ainda dos papers. Já chegaram à física quântica mas esqueceram-se dos papers. Vai ver que daqui a uns tempos com meia dúzia de papers o espiritismo ganha o estatuto de ciência. Um médium pode sempre comprovar que outro médim falou com um espírito. Já pensou nisso?

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  2. Anónimo,

    O electrão também não se observa. O que se observa são efeitos que se explica assumindo que existem electrões a causá-los.

    Quanto aos papers, não percebi o que quer dizer. Comprovar em ciência é testar a ver se falha. Se os médiums fizerem isso, tudo bem. Se for só dizer sim, sim, amén, não é a mesma coisa.

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  3. Krippahl

    Pode sempre associar o efeito ao electrão mas não poderá afirmar que um determinado efeito - taquicardia, por exemplo - está inequivocamente ligado ao amor.

    Se um espírita afirmar que um espírito apareceu e acender uma luzinha para provar sua presença e outro espírita fizer a mesma experiência e chegar ao mesmo resultado temos um facto científico. É por isso que ao espiritismo chamamos "ciências ocultas". A física também se tornou uma ciência oculta: nada se vê, tudo se prova.

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  4. Anónimo,

    Inequivocamente, nunca podemos coisa nenhuma. É verdade que no caso do electrão temos muito mais evidência e podemos detalhar muito melhor o mecanismo pelo qual o electrão causa certos efeitos. Mas a diferença é precisamente na qualidade e quantidade de teorias e observações.

    Quando observamos que mulheres que cuidam de um marido doente têm o dobro da incidência de problemas cardíacos isto sugere uma relação causal, e permite alguma confiança num modelo relacionando os sentimentos e preocupações com a «taquicárdia».

    E quanto mais conhecermos sobre a fisiologia e neurologia melhor poderemos modelar estes mecanismos.

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  5. Ludwig:

    O Desidério já te respondeu.
    E eu esfrego as mãos de contente com o debate. Se bem que já esteja de saída, para um almoço natalício, e em princípio só amanhã possa ler o que tiverem escrito.

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  6. Ludwig,

    Neste particular tenho de concordar com o Desidério. Não reconheço validade ao teu argumento, porque a mera observação não constitui ciência. Isso é um dos defeitos que aponto à Economia. Tira conclusões de observações, assumindo o que lhe apetece. Um antigo manager meu dizia, "don't assume, because you are putting an ass before 'u' and 'me'". Não me parece que se possa fazer ciência assumindo o que se quer sem o comprovar. Observar o "amor", só é válido,se se puder provar que não é representação. Pode ser racional aceitar como verdadeiro o amor de alguém, não podendo aceitar como ciência essa prova pela observação. Aí o Desidério tem razão. És mesmo implicativo camarada. :-)

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  7. António,

    « a mera observação não constitui ciência»

    Nisso estamos todos de acordo. Aliás, «mera observação» nem existe. Não se observa nada sem assumir nada.

    Onde eu discordo do Desidério é que se possa usar a razão sem observações. Se sim, então a razão pode ir além da ciência. Mas eu acho que não. Sem obsevação não há razão, e aplicar a razão à observaçao é ciência.

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