sexta-feira, dezembro 28, 2007

Ciência às fatias.

Infelizmente, parece que eu e o Desidério discordamos cada vez menos. Mas acho que consigo esticar um pouco mais a conversa. Concordamos com uma acepção mais abrangente de ciência que não a caracteriza por um método ou tema particular, mas o Desidério escreveu:

«Não concordo com a ideia de que isto invalide distinções iluminantes entre diferentes ciências (e talvez Ludwig não queira dizer exactamente isto, apesar de o parecer). A matemática ou a lógica, assim como a filosofia, ocupam-se daquela parte (talvez irritante) da realidade que não parece poder ser estudada pela observação, pela medição, pelos métodos empíricos, enfim, que muitas pessoas identificam com a ciência.»(1)

As distinções são muito importantes. Hoje em dia. Não se pode contribuir para o avanço da ciência sem saber o que já foi feito e o que há por fazer. Não vale a pena inventar a roda todas as semanas; a partir da quarta ou quinta vez já não dá para publicar. E como o conhecimento moderno é tão vasto e avança tão rapidamente ninguém consegue manter-se a par de mais que uma pequena fracção do que a ciência produz. Mesmo quando não tem pilhas de trabalhos para corrigir. No seu tempo, Galileu estudava óptica, cinemática, astronomia, e o que mais calhasse, e era uma autoridade em todas. Mais tarde foi preciso dividir os esforços entre química, física, biologia e assim.

Hoje as fatias são muitas e muito finas. Genética de populações, bioquímica estrutural, biologia molecular, cristalografia, bioinorgânica e milhares de outras. Eu uso algumas técnicas de inteligência artificial para modelar estruturas de proteínas. Nem sequer uma fatia me calhou. É uma azeitona daqui e meia rodela de tomate dali. Mas esta divisão não é uma característica da ciência; é uma consequência das nossas limitações. Se a nossa espécie fosse muito mais inteligente eu investigava ciência e dava aulas de ciência no departamento de ciência da faculdade de ciência.

Até aqui deve ser pacífico. Agora vem a parte engraçada. Eu proponho que é contraditório afirmar que se estuda a realidade sem ser pela observação. O conhecimento exige sempre observação. Na filosofia, e até na lógica e na matemática. A filosofia é muitas vezes empírica, mesmo no sentido restrito de fazer experiências. Não chegam a atropelar os escuteiros com o combóio mas, de resto, está lá tudo. E em casos como a filosofia da mente, por exemplo, a filosofia propõe experiências e depende dos seus resultados. Na lógica e na matemática esta dependência é menos evidente porque são linguagens, esquemas para fazer afirmações e não as afirmações em si. Mas mesmo assim não são conhecimento sem observação. Vou aproveitar o “quarto chinês” de Searle para ilustrar.

Uma pessoa está fechada num quarto cheio de tabelas. Quando chega um papel escrito em chinês ela procura os símbolos nas tabelas, copia os símbolos que a tabela indica e devolve o papel pela ranhura. Lá fora todos pensam que ela sabe chinês porque responde correctamente a todas as perguntas. Mas nem sabe chinês nem pode aprender porque não consegue descobrir o que os símbolos significam. Até pode saber de cor todas as tabelas. Nesse caso sabe as tabelas (que aprendeu por observação) mas continua sem saber chinês.

Mesmo em linguagens como a lógica ou a matemática, além de manipular os símbolos é preciso saber o seu significado. É preciso saber o que quer dizer um e dois, verdadeiro e falso, senão não serve de nada. E só a observação pode conseguir isto. Não há maneira de definir o significado de um símbolo recorrendo só a outros símbolos, sem que algum aponte para fora da linguagem.

Acho inútil, e até enganador, distinguir entre ciência empírica e não empírica. Em primeiro lugar porque todo o conhecimento depende de observação. E em segundo lugar porque a filosofia, a lógica e a matemática não são actividades isoladas mas partes do processo de adquirir conhecimento. São muito prolíficas a descrever possibilidades, mas se não as confrontamos com observações acabamos com plantas para casas em 38 dimensões, barbeiros que barbeiam todos os que não se barbeiam e flechas mais lentas que tartarugas.

1- Desidério Murcho, 27-12-07, “Ciência” na acepção ampla

6 comentários:

  1. Ludwig

    "Infelizmente, parece que eu e o Desidério discordamos cada vez menos."

    Ora este é que é o espírito: discutir pelo prazer intelectual de o fazer, trocar ideias, sair mais rico do debate e não necessariamente para ganhar ou perder. Isto não é futebol!

    A ideia das fatias das Ciências e as limitações dos homens é importante. Pena que nem todos tenham essa noção e essa humildade. Que não é necessariamente uma limitação tão forte, mas um modo mais parcelar de apreensão de uma realidade ao detalhe suficiente para dizer "eu sou especialista em".

    À minha maneira javardada, apontei como (infelizmente tarde demais, porque adoraria tê-lo confrontado) apanhei o Tim Crow em falta por querer abarcar demasiado conhecimento. Ou por outra, por fazer Ciência ao contrário: primeiro apresentar a teoria revolucionária (e quase escandalosamente criacionista, quase com um Adão e várias Evas) e só depois fazer encaixar peças de Ciência que não compreende para a provar (embora diga que é para refutar).

    E aqui voltamos à necessidade de certezas: há quem pense que não tem autoridade suficiente em quem não sabe dizer "não sei, não tenho a certeza". Há quem não aceite menos que certezas absolutas. Há quem não aceite limitações.

    "se não as confrontamos com observações acabamos com plantas para casas em 38 dimensões, barbeiros que barbeiam todos os que não se barbeiam e flechas mais lentas que tartarugas"

    Podem não ter equivalente físico, mas a construção intelectual e a elasticidade de pensamento são interessantes e um meio de atingir conhecimento em si. Claro que podemos entrar na discussão do que é conhecimento útil/aplicado... e isso já dá uma discussão ainda maior, e estica a conversa para outro lado!

    De qualquer modo, este ping-pong (que terei que reler para aproveitar ao máximo) intelectual foi o máximo, pôs-me a pensar e deu ideias para leituras futuras. Ou seja, valeu bem a pena!

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  2. "Não chegam a atropelar os escuteiros com o combóio mas, de resto, está lá tudo."

    É por isto que eu detesto a filosofia, fica sempre um passo aquém.

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  3. Herr Krippmeister

    Podes sempre ir para filósofo experimentalista, com uma daquelas coisadas todas práfrentex de instalações e o carago!

    Mantém-te é longe dos escuteiros: a minha sobrinha entrou nos escuteiros, por isso se te vejo demasiado perto de um e com más intenções... corto-te o pescoço!

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  4. Não me ameaçes que eu digo à tua sobrinha que a tia é na verdade um pequeno leguminoso penisforme.

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  5. «O conhecimento exige sempre observação.»

    Esta definição de ciência é restritiva e inaceitável, porque deixa a blinologia de fora do grupinho. Dom Mário Neto teria muito a dizer.

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  6. "mas... se não as confrontamos com observações .."

    Parece que o Dr Murcho já percebeu um bocadinho da ideia. Um bom avanço epistemológico.

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