sexta-feira, outubro 23, 2009

Protões, membranas e geologia marinha.

O trifosfato de adenosina, ou ATP (de adenosine triphosphate), é a molécula mais usada como fonte de energia em reacções biológicas, devido à facilidade com que perde o terceiro fosfato e se converte em ADP (difosfato de adenosina). E esta molécula, universal nos seres vivos, é sintetizada de uma forma estranha. Seja em mitocondrias, bactérias, archaea ou cloroplastos, o que alimenta a reconversão de ADP em ATP é o fluxo de protões através de uma membrana. A célula ou organelo usa energia química ou da luz do Sol para empurrar protões (iões de hidrogénio) para fora, criando uma diferença de concentração entre os dois lados da membrana. Depois, enzimas sintetizam o ATP usando a “força” que os protões fazem para voltar a entrar.

Isto é intrigante por ser uma forma rebuscada de produzir energia. É como se usássemos geradores a gasóleo para bombear água para um tanque e depois turbinas para gerar electricidade esvaziando-o. Quando Peter Mitchell propôs este mecanismo, no final dos anos 50, os biólogos torceram o nariz. Mas acabou por receber o prémio Nobel em 1978 por esta descoberta. Que se foi tornando cada vez mais intrigante e interessante.

A genética molecular trouxe ferramentas para estudar o parentesco entre organismos e genes e revelou que os dois reinos mais antigos, Archaea e Bacteria, têm em comum essa enzima que produz ATP usando a passagem de protões pela membrana. Mas Archaea e Bacteria têm membranas celulares diferentes. As membranas celulares são compostas por fosfolípidos, moléculas compridas com uma extremidade polar, com afinidade pela água, e caudas apolares que tendem a aglomerar-se como gotas de óleo em água. As ligações químicas entre estas partes, a estrutura da cauda e até o grupo glicerol que se liga às caudas são diferentes entre estes dois reinos, o que sugere que os mecanismos de síntese da membrana evoluíram independentemente.

E isto é intrigante porque indica que o antepassado de Archaea e Bacteria produzia energia usando a diferença de concentração de protões entre os dois lados de uma membrana, tal como todos os seres vivos de agora, mas não sintetizava a sua membrana. Era um bicho muito estranho.

O que nos traz à geologia marinha. Quando a água do mar reage com a olivina, uma rocha composta por silicatos de ferro e magnésio, produz calor, hidrogénio e compostos alcalinos, criando chaminés parecidas com as chaminés vulcânicas mas de temperatura mais amena. Estas chaminés são formadas pela precipitação de carbonatos, quando os produtos alcalinos da reacção são neutralizados pela água do mar. E este processo cria uma rocha porosa, com poros de dimensão semelhante à das células, onde correntes de convecção e temperaturas suaves levam à acumulação de moléculas orgânicas. Possivelmente foi aqui que viveu o antepassado das Archaea e Bacteria.

O tal bicho estranho que não sintetizava as suas membranas era um aglomerado de proteínas, ADN, ARN e catalizadores inorgânicos a viver numa poro da rocha onde a acumulação de espuma orgânica lhe dava as membranas entre o interior alcalino e o exterior mais ácido. Nesse tempo o oceano era muito mais ácido que hoje, o que quer dizer que tinha uma concentração mais elevada de iões de hidrogénio. Os tais protões usados para sintetizar ATP.

Estas condições geológicas e químicas criavam nos poros da rocha um gradiente de protões como o que as células de hoje recriam. Uma concentração mais alta no exterior, o oceano ácido, e mais baixa no interior, no poro alcalino. Esta fonte de energia mesmo à mão pressionou a evolução de enzimas que a convertessem em moléculas úteis. O ATP, que ficou para a posteridade. Daí que esta parte do processo de produção de ATP seja igual em todos os organismos modernos. O que varia, e varia muito, é a forma como os descendentes deste ermita das furnas recriam o maná inicial daquele gradiente de protões. Queimam açúcares com oxigénio, usam luz do Sol, oxidam ferro, amónia, nitritos ou sulfitos, enfim, fazem tudo o que conseguem para bombear protões para fora da célula. Depois produzem ATP com a mesma enzima de sempre.

É uma hipótese. Há muito ainda a fazer para a testar. Mas é uma boa hipótese. Quer esteja certa quer se venha a descobrir que estava errada, dá-nos mais um degrau para avançar. Porque mostra relações entre dados, explica factos intrigantes e, sobretudo, impõe restrições às condições que vamos encontrar nestes sistemas. Se o antepassado comum a todos os seres vivos evoluiu em chaminés alcalinas, então esse ambiente teve de ser compatível com os mecanismos de síntese de ADN e ARN e proteínas, entre as quais a ATP sintase, a tal que faz ATP da passagem de protões. Tudo isto produz novas hipóteses testáveis que se pode explorar, confrontar com os dados, corrigir e melhorar. Ou seja, produz conhecimento.

É muito superior às histórias da carochinha que querem impingir em vez disto...

Escrevi isto por causa de um post do Larry Moran no Sandwalk, Ode to Peter Mitchell, que me levou ao artigo Was our oldest ancestor a proton-powered rock?, do Nick Lane na New Scientist. Recomendo que leiam ambos. Para quem gosta destas coisas, as páginas da Wikipedia sobre ATP synthase, Archaea e Bacteria também podem ter interesse.

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