De novo a interpretação.
O Alfredo Dinis, depois de algumas considerações sobre mim, que agradeço, aponta que «O que está em causa no ‘caso Saramago’ é a interpretação da Bíblia», acrescentando que a minha «insistência em que tudo na religião e, em particular no cristianismo, é mera opinião, é mera subjectividade, ignora que qualquer texto tem que ser interpretado de acordo com alguns parâmetros objectivos: estilo literário, época de composição, modo de composição, contexto cultural em que surgiu, significado dos conceitos utilizados no espaço cultural a que pertencem originalmente, etc. Nada disto é subjectivo.»(1)
Concordo que uma interpretação de um texto é apenas tão fiável quão relevantes forem os parâmetros em que se baseou. Mas estes atributos do texto são insuficientes para a maioria das conclusões que os católicos defendem. O post anterior ao do Alfredo, do Miguel Pedro Melo, dá um exemplo: «Foi em Jericó que Jesus curou o cego Bartimeu |Lc. 18, 35|.»(2) Nem o estilo literário, nem a época de composição, nem o modo, contexto cultural ou significado justificam concluir que Jesus realmente curou o cego Bartimeu. Porque o problema não é apenas determinar o significado do texto ou a intenção do autor. É aferir a sua correspondência à realidade. Apesar da insistência do Alfredo, ainda suspeito que os cristãos consideram verídicos estes relatos por razões meramente subjectivas e especulativas. A análise do texto, por muito objectiva que seja, não permite saber se o que lá está escrito é verdade.
Este problema é menos grave com católicos que com fundamentalistas. Como o Alfredo apontou, os católicos cedem quando as evidências em contrário são suficientemente fortes. O correcto seria aceitar como verdade apenas aquilo para o qual essa é a hipótese mais plausível mas, como o post do Miguel Melo também ilustra, este problema é mitigado por os católicos mais esclarecidos de hoje preferirem focar apenas aspectos éticos, morais e religiosos. Salvo algumas excepções importantes, os últimos séculos ensinaram os católicos a não insistir em matérias de facto. No entanto, o “caso Saramago” foi precisamente sobre a moral da Bíblia. Saramago não disse que a Bíblia era um manual de erros factuais. Disse que é um manual de maus costumes. Por exemplo, o Deuteronómio estipula que os filhos desobedientes devem ser apedrejados até à morte e que os soldados vitoriosos podem raptar mulheres que lhes agradem de entre os povos derrotados. Isto, parece-me indiscutível, eram maus costumes.
Dizem os entendidos que é preciso considerar o «contexto cultural em que surgiu» cada uma destas recomendações e, por isso, não se pode interpretá-las de forma literal. Isto é uma contradição porque, no contexto cultural em que surgiram, estas normas eram para ser levadas à letra. Era a lei. E ainda há hoje quem pratique abominações destas. A menos que no hebraico original “apedrejar até à morte” quisesse dizer “uma semana sem ver televisão”, não há interpretação que safe estas partes da Bíblia. São maus costumes. São exemplo daquilo que há de pior na humanidade: a capacidade de exaltar o mal como virtude.
Queixa-se o Alfredo que «Se a Igreja Católica nada muda, é acusada de imobilismo, de falta de liberdade de investigação, de espírito crítico, etc. Se muda, pergunta-se: quem lhe deu o direito de mudar?» Mas as histórias do antigo testamento foram consideradas sagradas porque eram a Palavra de Deus. Não foi por serem metáforas bonitas. Eram regras para se obedecer, relatos de como ele criou o mundo e afogou toda a gente e eram um aviso claro a quem o aborrecesse. A Igreja Católica manda agora interpretar literalmente umas partes, pelo contexto histórico outras e pelo estilo umas terceiras, tudo isto em função do que serve a sua doutrina, chamando ignorantes a quem não concorde com estas escolhas e recusando-se admitir que, desta forma, deixa de haver razão para considerar a Bíblia um livro diferente dos outros. Isso é mais arrogância que espírito crítico.
A raiz deste problema é que, como qualquer religião, o catolicismo assenta em “factos” inventados pelos crentes. Para os católicos Jesus curou cegos com milagres, nasceu de uma virgem e ressuscitou. Para muitos protestantes, também Jonas viveu três dias na barriga de um peixe e Moisés dividiu as águas do Mar Vermelho. Os católicos dizem que acreditar nisso é ser ignorante, mas a verdade é que nenhuma destas crenças tem fundamento. Rejeitam o feito de Jonas e aceitam a virgindade de Maria apenas porque querem, porque são alegações igualmente implausíveis.
Passa-se o mesmo com as crenças mais fundamentais do cristianismo. Não há evidências que Jesus era Deus, que temos alma, que há vida depois da morte ou que a Bíblia é mais que os outros livros. É especulação sem fundamento em que só se acredita por razões subjectivas. Daí o contorcionismo, pouco honesto, que vende como milagre aquilo que ainda não se refutou e como metáfora o que já se sabe ser disparate. E que disfarça os maus costumes com alusões vagas ao estilo literário ou contexto histórico. Como se isso desculpasse Deus de ter posto na cabeça de alguém a ideia de matar crianças à pedrada.
Só será legítimo aos católicos chamar conhecimento à forma como interpretam a Bíblia quando a interpretarem como qualquer outro texto, distinguindo factos e ficção pelas evidências em vez de pelo que gostariam que fosse verdade. Enquanto subordinarem os seus critérios alegadamente objectivos a crenças sem fundamento não podem apontar o resultado como conhecimento. É apenas fé.
1- Alfredo Dinis, Aprendemos alguma coisa com o ‘Caso Saramago?’
2- Miguel Lemos, da hostilidade à hospitalidade, da cegueira ao seguimento