Miscelânea Criacionista: “Tipo” morcego
Os criacionistas defendem que a evolução só pode ocorrer dentro de cada tipo de organismo. Não por haver algum limite molecular para a acumulação de mutações, mas porque leram na bíblia que Deus criou cada animal segundo a sua espécie e na bíblia “espécie” quer dizer “tipo”. “Tipo”, infelizmente, não se sabe bem o que quer dizer, e os criacionistas não o definem. Deve ser gaivotas dão gaivotas.
O resultado é que os criacionistas aceitam que, por exemplo, os morcegos tenham evoluído de um morcego original – talvez um casal que Noé tenha trazido para o barco – mas rejeitam que os humanos e os chimpanzés tenham um ancestral comum. Nós e os chimpanzés somos de “tipos” diferentes, enquanto que todos os morcegos são do mesmo “tipo”. E com isto separam a micro-evolução da macro-evolução. A primeira, dizem, explica a diversidade dos morcegos. Mas para as diferenças entre chimpanzés e humanos já era preciso macro-evolução. E isso Deus não deixa.
Só que o morcego é um grande tipo. Um tipão. A imagem abaixo mostra, à esquerda, o morcego abelhão, Craseonycteris thonglongyai. É o mamífero mais pequeno que se conhece*, com um peso em adulto de 2g. E, à direita, a raposa voadora da Malásia, Pteropus vampyrus, com 2 metros de envergadura e 1,5Kg de peso. A gama de tamanhos nas novecentas espécies de morcego é como a diferença entre nós e a baleia azul. Os chimpanzés, de um “tipo” diferente do nosso, pesam cerca 60Kg.
Na alimentação também há este contraste. Os morcegos são o “tipo” de animal em que umas espécies se especializaram em comer fruta, outras carne, outras peixe, ou insectos, néctar e algumas até sangue. Nós e os chimpanzés somos ambos omnívoros. Mas de tipos diferentes.
E a ideia comum que todos os morcegos são cegos e usam sonar é incorrecta. Em geral, só os da sub-ordem Microchiroptera se orientam pelo som e muitos morcegos usam a visão também, entre outros sentidos. Também nisto a diversidade deste “tipo” é muito maior que as diferenças entre humanos e chimpanzés.
Se os criacionistas quisessem dividir os morcegos em vários “tipos” enfrentavam um grande problema. Tinham de explicar o que é um “tipo”. E explicar, ao que parece, é outra coisa que Deus proíbe. Por isso têm de considerar que tudo a que chamamos morcego é do mesmo “tipo”, evoluído do morcego ancestral que o Sr. Jeová criou naquele fatídico quarto dia**.
Assim enfrentam um problema ainda maior. Uma em cada cinco espécies de mamífero é uma espécie de morcego. A análise filogenética desta ordem mostra que a diversidade genética dos morcegos é semelhante à diversidade genética dos primatas. A diferença entre duas espécies de morcego pode ser dez vezes maior que entre nós e os chimpanzés. Se os morcegos são todos do mesmo “tipo” então os humanos são do “tipo” dos lémures e basta a micro-evolução para ir de um babuíno a um criacionista. Ou vice-versa.
Este disparate dos “tipos” vem dos criacionistas fazerem as coisas ao contrário. Começam das palavras e martelam o mundo a fingir que encaixa no que leram. Se há palavras como “morcego”, “humano” e “chimpanzé”, então têm de ser esses os tipos de animal. Se está escrito que é assim, até é pecado duvidar que seja. E esquecem-se, ou fazem por esquecer, que as palavras são inventadas por nós e só acertam na realidade se soubermos o que estamos a dizer.
Errata:
* Como notou um leitor anónimo nos comentários, o lugar de mamífero mais pequeno é disputado com o musaranho-pigmeu Suncus etruscus, conforme se conta pelo peso (ganha o musaranho) ou pelo comprimento (ganha o morcego).
** O Jónatas Machado apontou que errei aqui. Segundo a bíblia, os animais foram criados no quinto e sexto dia. Obrigado pela correcção. O quarto dia foi quando Deus criou os corpos celestes, como o Sol e a Lua. O que já fez muitos pensar que os primeiros três dias devem ter sido estranhos...
1- E. C. Teeling, M. S. Springer, O. Madsen, P. Bates, S. J. O’Brien,W. J. Murphy, A Molecular Phylogeny for Bats Illuminates Biogeography and the Fossil Record. Science 28 January 2005: Vol. 307. no. 5709, pp. 580 – 584. O artigo não está disponível de graça mas há figuras e uma descrição do método no material suplementar.
Adenda: Um leitor anónimo, a quem agradeço, encontrou o artigo integral (em .pdf).