quarta-feira, outubro 24, 2007

Criar, descobrir, e comunicar.

O leitor «Pensar Custa» pediu-me que comentasse um post acerca de invenção e descoberta. O post não está disponível, mas queria reconhecer a fonte da ideia para este. Parece simples distinguir criação e descoberta. Cria-se o que não existia até ser criado e descobre-se o que já existia antes de ser descoberto. Mas é mais difícil do que parece.

Por exemplo, um número primo com oitenta mil dígitos não é coisa que se crie. Ou existe e se descobre ou não existe e não o podemos inventar. E «existe» mesmo que nunca tenha sido escrito em lado nenhum. O mesmo com as peças de Xadrez. Não crio nada de novo por dispor as peças de forma a garantir um empate, mesmo numa configuração nunca antes vista. Qualquer forma de dispor as peças já «existe» implicitamente nas regras do Xadrez como todos os números já «existem» nas convenções da matemática.

E é o mesmo se substituir as peças de Xadrez por quadrados coloridos e aumentar o tabuleiro. Há quem diga que eu criei a imagem abaixo, mas apenas descobri uma configuração de cores num tabuleiro de 400 por 400 que faz ver o mesmo que eu a quem a interpretar da mesma forma que eu. E é tão pouco criativo que a máquina fotográfica faz o trabalho quase todo.



Quando um homem primitivo esmagou a cabeça do adversário com uma pedra usou apenas uma combinação de elementos que estavam, literalmente, ali à mão e que podiam ser combinados das formas que a natureza permite. O martelo foi descoberto por entre as possibilidades da natureza. O que ele criou foi a ideia de um martelo para esmagar cabeças. É isso que criamos. Ideias. O resto é descoberta.

Todos os textos em Português estão implícitos nas regras gramaticais e no vocabulário que partilhamos. Todas as representações de imagens e sons estão implícitas nas forma como vemos e ouvimos, e todos os ficheiros de computador nas combinações de zeros e uns. Podemos descobrir qualquer representação destas, mas não as podemos criar. Tal como os números ou as posições do Xadrez.

Eu crio ideias na minha mente. Mesmo pouco originais, pelo menos aqui dentro quem cria sou eu. Mas este texto descobri-o pelas regras do Português. É um de muitos que podem ser gerados com este vocabulário e gramática que partilhamos, e que eu vasculhei, escrevendo, apagando e rescrevendo até achar que tinha qualquer coisa inteligível.

E ao ler isto, se tudo correr bem, o leitor cria na sua mente estas ideias. É isso que é algo novo, que vai além da mera combinação de elementos. Por pura inspiração ou quando interpretamos uma representação, é esse elemento subjectivo que é criado e não descoberto. É o que faz de um monte de pixels uma árvore ou de vibrações no ar uma música. Comunicar ideias não é mais que descobrir combinações de elementos que levem os outro a criar as mesmas ideias.

As ideias pertencem a quem as cria. As minhas são minhas, as vossas são vossas. Mesmo iguais estão em cérebros diferentes, e cada um tem o seu. Mas não podemos pegar em ideias e enfiá-las em cabeça alheia. Para comunicar dependemos de peças de Xadrez -- palavras, cores, acordes, números -- que podemos dispor e combinar de acordo com regras partilhadas. E essas são de todos. As peças, as regras, e todas as combinações que descobrimos.

14 comentários:

  1. Quer queiramos, quer não, todas as nossas ideias provêm do ambiente que nos rodeia. Isto independentemente do facto do esforco cerebral empreendido na construção de cada ideia.

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  2. Sim. E grande parte desse ambiente é a cultura. Ou seja, as ideias que absorvemos dos outros.

    Mas há quem dê mais importância a um modelo de subsidio dos últimos cem anos do que à partilha de informação que moldou a nossa espécie nos últimos sessenta mil e picos.

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  3. «As peças, as regras, e todas as combinações que descobrimos.»

    As combinações que verdadeiramente interessam chegam-nos dos grandes mestres de xadez e dos grandes torneios internacionais. Os jogadores de xadrez que participam nesses torneios são profissionais, isto é, pagam-lhes para eles jogarem. Por isso, quando "inventam" as combinações já foram pagos para isso ou têm o incentivo do prémio final (mesmo que não o cheguem a ganhar).

    As combinações são divulgadas publicamente porque qualquer jogador de xadrez não tem garantias de ganhar um jogo se utilizar aquela combinação. Nunca se sabe se o adversário encontrou outra combinação melhor.

    A divulgação das combinações funciona, desse modo, como uma forma de divulgação do próprio jogo e não como uma fonte directa de receitas. Só o passam a ser quando são comercializadas em forma de livro ou cd. Aí entram novamente os direitos estabelecidos pelo copyright... ;-)

    Joãozinho Metralha (ex-anónimo)

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  4. Metralha,

    Mesmo em CD, as combinações e jogadas de xadrez não são protegidas por copyright. Podem ser livremente divulgadas sem problemas legais.

    Mas segundo o que conta, temos então uma excelente alternativa para o copyright na musica. Em vez de receber à cópia, os músicos que façam como os jogadores profissionais de xadrez e recebam pelo trabalho que fazem. Como aliás é norma em qualquer profissão.

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  5. O xadrez profissional funciona desse modo devido às suas características próprias. Pensei que isso tivesse ficado implícito no meu comentário.

    O mercado da música funciona de forma diferente. Se o copyright fosse abolido, o passo seguinte seria o Ludwig exigir que os concertos deixassem de ser pagos, em nome do acesso universal à cultura e às "ideias" alheias sem gastar um tostão.

    Finalmente estabeleceria o direito de cada consumidor encerrar a sua banda preferida na cave e obrigá-la a tocar quando lhe desse na real gana.

    E depois em vez do P2P o pessoal trocava mensagens deste tipo: "quem tens em casa esta semana? eh pá, tenho os radiohead mas os gajos sãos uns preguiçosos, comem que nem uns alarves, dormem o dia todo e se os mando tocar ainda resmungam. eh, pá, emopresta-mos por uns dias, dou-te os pink floyd, um deles geme por causa do reumático mas até é bom, dá uma nova sonoridade à banda. e se os gajos se tornarem chatos mistura-lhes xanax no leite".

    Joãozinho Metralha (ex-anónimo)

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  6. "E essas são de todos. As peças, as regras, e todas as combinações que descobrimos."

    Idealmente deveria ser assim. Aliás, esse pensamento provoca-me uma sensação confortante. Tudo é de todos. Óptimo. Mas depois começo a pensar. De um ponto de vista talvez um pouco meritocrata não valerá mais o indivíduo que agarrou nas peças e através de trabalho ou inteligência conquistou algo de grande valor ou beleza? Não merece esse indivíduo crédito e até talvez compensação pelo trabalho que teve?

    Até pode ser possível calcular todas as combinações num jogo de xadrez mas não merece algum mérito a pessoa que as testou até chegar às melhores? Ou a pessoa que criou o programa que vai testar combinações atrás de combinações até devolver um mapa de probabilidades sólido o suficiente para indicar que a jogada X é mais acertada que a jogada Y?

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  7. Metralha,

    É claro que o Xadrez funciona de forma diferente da música. Mas em grande parte isso é por causa do copyright. Imagine como funcionaria o Xadrez se o primeiro a fazer uma jogada ficasse com direitos exclusivos sobre essa jogada durante 100 anos. O que tinha eventualmente é o que temos na musica agora: empresas detentoras de direitos sobre imensas jogadas, e milhões de pessoas a jogar Xadrez ilegalmente.


    Nuno,

    Não são as coisas todas que eu proponho ser de todos. Não são as batatas, ou os lugares no concerto, ou o CD autografado pelo autor.

    O que proponho ser de todos são as representações que usamos para comunicar ideias. Aquilo que construimos com a matemática, o Português, a informática. As letras e palavras, os zeros e uns, os parâmetros de funções trigonométricas.

    E se isso for de todos acaba-se o copyright. E para haver copyright essas coisas têm que ser mais de uns que de outros, e castigar quem usar partes disso sem autorização dos «donos».

    Não disputo o mérito do primeiro a fazer aquela jogada genial no Xadrez ou a juntar aquelas notas ou palavras. O que rejeito é que esse mérito justifique proibir a outros que representem essas ideias da mesma forma ou de formas equivalentes. Não há mérito que justifique isso.

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  8. Ludwig,

    Continuas a misturar as coisas. O copyright está a ser excessivamente alargado, e nisso, concordo contigo, mas, insistes no que não tem insistencia possível.
    Se queres ouvir o New Years Day com a voz do Bono, pagas! Se servir a tua, podes cantar para ti à vontade. A ideia "New Years Day" é diferente da interpretação do autor da mesma. A palhaçada do copyright sobre os sites de tablaturas é ridicula, porque isso sim é por copyright sobre as ideias. Agora, o copyright dos CDs é protecção de investimento, e nisso nunca concordarei contigo.

    O mesmo se aplica a todo o resto. Se quiser lêr o que o Carl Sagan disse compro o livro, se bastar a ideia, posso pedir a um puto de 10 anos que me conte o que leu, e não pago (nem ele) copyright por isso.
    Tu queres que as interpretações individuais sejam de borla, e não as ideias. Por isso é que não concordo contigo neste tema.

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  9. António,

    Não é de borla. É livres de restrições. O preço que seja o mercado a decidir.

    O que eu proponho é que o uso de linguas e da matemática seja igualmente acessível a todos e que ninguém tenha o direito de restringir a expressão de ideias sob estas formas. Ninguém possa proibir a transmissão de uma lista de valores só porque são parâmetros de uma função que descreve a música que ele compôs, por exemplo.

    Mas isto não implica que o comércio seja desregulado (terá a regulação que for necessária, a isso dou pouca importância) e não implica que tudo fique à borla.

    Implica que seria legal partilhar o pdf de um livro do Sagan, por ninguém poder proibir a transmissão dessa informação, mas não implica que o livro em papel fosse de graça.

    Resumindo, quero que manipulem os preços de outra forma que não censurando comunicações pessoais.

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  10. Ludwig,

    Mas dessa forma todos evitavam comprar o livro de Sagan para poderem fazer o download do PDF, trazendo prejuízo não só para o autor como para a editora. Se o livro são as ideias de Sagan, a visão de Sagan sobre o assunto, a opinião de Sagan, faz sentido que se a opinião dele tem valor, então nós (os interessados) temos que pagar para ler o que Sagan tem a dizer sobre o assunto. Se não houvesse copyright nada impedia outra editora de agarrar no texto e de o re-publicar com um preço mais baixo e assim roubar todos os (poucos) clientes que tinham decidido comprar o livro ao invés de fazer o download do PDF. Então que ganhava Sagan por partilhar as suas ideias connosco?

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  11. Ludwig,

    A codificação de uma cópia não altera o objecto, nem a intenção, que é o que a lei condena e controla.
    As ideias do Sagan são universais, e tu podes falar e discutir as mesmas e discursar divulgando esse conhecimento. O que tens de pagar é para usar o material por ele criado. Se disseres o que sabes é legal, lêr o que ele escreveu numa conversa também, receber por lêr isso já é ilegal, e distribuir cópias disso também, pois não estás a divulgar a ideia, mas, a expressão individual do Sagan, dessa mesma ideia, e isso é que é ilegal.

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  12. António,

    «O que tens de pagar é para usar o material por ele criado.»

    O que se cria são ideias. Ninguém cria um mp3 ou o wav no CD. Isso não é uma criação, é uma codificação que é automática.

    Esta ideia em que insistes é errada. Não se paga pelo «material criado». Paga-se porque a lei dá direitos exclusivos a um conjunto de representações.

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  13. Nuno,

    «Mas dessa forma todos evitavam comprar o livro de Sagan para poderem fazer o download do PDF»

    Isso é falso. Se o dinheiro for para o autor, muitos iriam querer comprar. É claro que se 95% vai para a editora, já será menos atraente. Mas mesmo assim haverá quem compre.

    «Se não houvesse copyright nada impedia outra editora de agarrar no texto e de o re-publicar com um preço mais baixo»

    Também é falso. Basta que a lei regule a concorrência comercial.

    Nota que o problema do copyright é proibir o que se pode fazer a título pessoal. Isso é desnecessário como mecanismo de regulação comercial.

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  14. "Em vez de receber à cópia, os músicos que façam como os jogadores profissionais de xadrez e recebam pelo trabalho que fazem. Como aliás é norma em qualquer profissão."
    Bem dito!

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