Há duas semanas, o Patriarcado de Lisboa publicou a norma pastoral para os Sacramentais e as Exéquias cristãs. Isto porque a «unidade fecunda entre a lex agendi e a lex credendi» por vezes «fica comprometida pelos que, a pretexto da eficácia pastoral, desprezam as normas que regulamentam as celebrações da Igreja»(1). Por muito que seja o ganho na “eficácia pastoral”, defende o documento, não se deve desprezar os regulamentos por se pôr em causa a “eficácia sacramental”. Esta norma interessou-me não só por regular exorcismos e orações de cura, temas importantes no diálogo com quem alega que catolicismo não é superstição, mas também por isto da eficácia. Fiquei com curiosidade de saber como mediram a eficácia pastoral e sacramental para determinar que o aumento de uma diminui a outra. Infelizmente, da eficácia apenas dizem provir do «mistério pascal da paixão, morte e ressurreição de Cristo» e não esclarecem como apuraram a sua magnitude e origem. No entanto, as partes sobre as orações e os exorcismos compensaram o tempo investido na leitura do documento.
Na página 4, aprendi que «a realização das celebrações litúrgicas com o fim de obter de Deus a cura [exige] a licença explicita do Bispo diocesano e requer, para a realização de orações não litúrgicas com o mesmo fim, a vigilância do mesmo Bispo». O catolicismo é muito atreito a mistérios, e é sem dúvida misterioso como um deus todo poderoso, criador do universo e que nos ama a todos, só aceita liturgias a pedir a cura se vierem com o carimbo do senhor Bispo. Um mistério tão misterioso como este, a par de outros como o Mistério da Fé, o Mistério da Salvação e o Mistério da Ressurreição, merece com certeza um nome. Eu proponho Mistério do Tacho.
Mas a parte melhor é a que regulamenta a prática de expulsar o demo, mafarrico ou, como é referido no texto, o “Maligno”, que, salientam, «Não se trata de uma ficção da inteligência para racionalizar o Mal [...]. O Maligno é criatura que por desobediência e inveja, não só perdeu a sua bondade como fez entrar no mundo o mal e a morte.» Não explicam o que teria levado Deus a criar um ser tão pérfido e, pior ainda, a dar-lhe tanto poder. É outro Mistério. O Mistério do oops, desculpem lá, nem sei onde tinha a cabeça nesse dia.
Adverte a norma que «A pessoa que se diz atormentada pelo demónio pode estar a sofrer apenas de alguma doença, especialmente psíquica, ou a ser iludida pela própria imaginação. […] Mas também há que estar atento, para se não deixar iludir pelas artes e fraudes que o diabo utiliza para enganar o homem, de modo a persuadir o possesso a não se submeter ao exorcismo, sugerindo-lhe que a sua enfermidade é apenas natural ou do foro médico». Para ajudar o exorcista na difícil tarefa de distinguir entre maluqueira, parvoíce, disparate ou Possessão Demoníaca®, a norma enumera uma série de critérios. Isto parece-me um erro grave. Deve o sacerdote certificar-se de que os males não são atribuídos pela vítima a má sorte ou maldição, que não se agravaram na sequência de consultas a «feiticeiros ou pretensos exorcistas», que os afectados não sofreram traumas e que não se sintam tentados a abandonar a prática religiosa. Caso se verifique alguma destas condições, o ministro da Igreja deve prestar auxílio espiritual «mas de modo algum [recorrer] ao exorcismo». Ora, sendo Satanás exímio nestas coisas, facilmente aproveitará este buraco procedimental acossando pessoas supersticiosas ou traumatizadas, ou tentando as vítimas com mais umas horas de sono nas manhãs de Domingo. Assim, facilmente se safa de ter de abanar a cama, projectar vómito, torcer o pescoço ou o que raio faz quando confrontado por um exorcista. Eu propunha que o sacerdote simplesmente perguntasse a Deus se o aflito sofre um ataque do Maligno, se tem pancada ou se porventura é afligido por outra entidade sobrenatural. O gato das botas ou o Saci-pererê, por exemplo. Se é para inventar, ao menos não compliquem.
E também o combate contra o Maligno está sujeito à burocracia eclesiástica. Em cada freguesia onde exorcise, o exorcista precisa do papelinho próprio. «Segundo o cân. 1172- §1 ninguém pode legitimamente exorcizar os possessos, a não ser com licença especial e expressa do Ordinário do lugar [… e sempre] sob a orientação do Bispo diocesano uma vez que é a ele que pertence, no âmbito da sua Diocese, o ordenamento da sagrada Liturgia». Ou, como diria Eric Cartman, “Respect my authoritah!”
Por coincidência (ou providência divina, quem sabe), depois de ter começado a escrever isto descobri no Companhia dos Filósofos um post do Pedro Ferreira da Silva onde se lê «Jesus quis curar o leproso. Tal como ele, procuremos pedir a Jesus que nos cure.»(2) Sim, mas só com o papelinho do Bispo. Sem papelinho, não há cura. E se quiserem mandar demónios para os porcos tem de ser em triplicado e com o selo branco da paróquia. Senão ninguém se entende.
Nota: pelas minhas contas, esta é a treta da semana número 100000000. Ok, é em binário, mas mesmo assim é um número jeitoso...
1- Documento disponível em Normas Pastorais para a celebração dos Sacramentais e Exéquias Cristãs, via o Patriarcado de Lisboa, a agência Ecclesia e o Ricardo Alves no Facebook.
2- Pedro Ferreira da Silva «Se quiseres, podes curar-me»