PJL 118-XII, parte 3: conceitos.
Escreveu o Tozé Brito que «Quando compras o CD, aquilo que estás a comprar é um suporte físico com obras nele incluídas e o direito de as ouvir as vezes que muito bem entenderes […] Mas a propriedade das obras não é tua, elas continuam a pertencer ao seu autor, e, para voltarmos ao conceito de cópia privada, qualquer cópia só pode ser feita desde que autorizada por ele ou por quem legalmente o represente.»(1) Ao que respondeu a Maria João Nogueira, «O que eu compro é o direito de ouvir um conteúdo a que acedi legalmente. O conteúdo não passa a ser minha propriedade, com certeza que não, mas o seu usufruto, sim. […] Só faz cópia privada quem adquiriu o conteúdo, certo? Cobra a cópia privada na venda do conteúdo. Inclui, acrescenta o preço da cópia privada ao custo do conteúdo»(2). Há aqui vários conceitos que é útil para alguns baralhar mas importante para a maioria que sejam esclarecidos.
Legalmente, não é preciso pagar pelo direito de ouvir músicas, ler livros ou afins. Se o autor decidiu publicar a sua obra, esta tornou-se parte da cultura de cuja fruição todos temos direito, quer pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (3) quer pela Constituição da República Portuguesa (4). E a cópia privada não é apenas a cópia do CD que comprámos. É «A reprodução [...] em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos» na condição apenas de não «atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.»(5)
“A obra” é um conceito puramente abstracto. Não corresponde a nada real. Por isso, nem pode ser propriedade nem pode ser afectada pela cópia. Aproveitando o exemplo que o Tozé Brito escolheu, quando o Chico Buarque compõe passa-se algo de maravilhoso no seu cérebro. Pondo as ideias em prática, ele canta, toca, grava e, eventualmente, uma máquina produz um CD que serve para reproduzir o som e criar no nosso sistema nervoso uma réplica pálida daquilo que se passou no do Chico. A “obra”, que a Maria João e o Tozé concordam ser do Chico, não pode ser o CD, porque esse vende-se e até foi a máquina que o fez. Também não pode ser o que acontece no cérebro do ouvinte, porque o Chico não é proprietário dos pensamentos dos outros. E nem sequer pode ser o que se passa no cérebro do Chico porque décadas depois de ele morrer a editora ainda nos vai cobrar pela cópia “da obra”. O que quer que “a obra” seja, não é nada que exista neste universo. E se existe no universo das Formas platónicas, gravar num CD virgem o mesmo padrão de bits do CD que o Chico vendeu nunca afectará “a obra” na sua imutável transcendência abstracta.
A invocação demagógica da propriedade sobre conceitos abstractos serve apenas para disfarçar o único factor relevante dos “direitos patrimoniais”: ter um monopólio sobre a distribuição é bom para o negócio. E se é verdade que o autor tem direito a remuneração, também é verdade que o seu direito é igual ao de qualquer outra pessoa. É o direito de ser pago de acordo com o que lhe prometeram em troca do seu trabalho. Também não se remunera cozinheiros proibindo a partilha de receitas nem matemáticos taxando cada conta que façamos. A promiscuidade público-privada do Estado coagir pagamentos em benefício de negócios privados, seja pela taxa Canavilhas seja proibindo a cópia, não tem nada que ver com remuneração justa. É apenas fruto do poder político dos distribuidores. Mas isso é conversa para outra oportunidade. Neste post queria só abordar mais um conceito importante. Os direitos do autor.
Os nossos direitos acabam onde começam os dos outros. O meu direito de dizer o que penso é o direito de não me calarem. Não é o direito de proibir os outros de dizer coisas que me desagradem, ou o direito de os obrigar a ouvir-me. O meu direito de constituir família é o direito de escolher com quem vivo, mas não o de obrigar alguém a viver comigo ou de proibir outros de viverem juntos só porque discordo da escolha. O meu direito de propriedade é sobre as minhas coisas, e não me dá o direito de mandar nas coisas dos outros. O meu direito de ser remunerado pelo meu trabalho é o direito de negociar essa remuneração com outros e receber o que livremente me prometeram. Não é o direito de os obrigar a pagar-me só porque fiz um bonito. E assim por diante.
Da mesma forma, meu direito de autor é o direito de decidir se publico, e o direito de distribuir, de copiar e de alterar o que crio como eu quiser. O meu direito como autor deste texto não deve ser o de vos retirar o direito de escreverem isto num papel, de mostrarem ao primo ou de enviarem por email. Nem sequer com a desculpa de que isso me lixa algum negócio. O direito do autor devia ser apenas o direito, inalienável como os outros, de fazer o que bem entender com a sua obra, e nunca o direito de mandar no que os outros fazem em suas casas com as suas coisas.
Eu compreendo que para discutir o PJL-118/XII queiram passar por cima destes problemas. Mas é um risco ajudar a perpetrar estas confusões, quer pela necessidade crescente de corrigir a lei que temos quer pelas leis, ainda piores, que andam a tentar impingir-nos. É importante perceber que o sistema vigente, em vez de garantir ao autor o direito de distribuir, transformar e usufruir da sua obra, concede a um “titular de direitos” o poder de proibir isso a todos, incluindo ao autor. Estes conceitos de remuneração, propriedade e direitos foram deliberadamente deturpados para criar a ilusão de que a forma justa do autor trabalhar é vendendo um monopólio à editora, em detrimento das liberdades de todos. Enquanto não ficar claro que isto é fundamentalmente errado, todas as outras batalhas serão muito mais difíceis.
1- Tozé Brito,DE UMA VEZ POR TODAS
2- Maria João Nogueira Caro Tozé Brito, bem-vindo ao debate público sobre o #pl118
3- Artigo 27º, ponto 1: «Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.»
4- Artigo 73º, ponto 1: «Todos têm direito à educação e à cultura.» E ponto 3: «O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais.»
5- CDADC, Artigo 75º. Se bem que o significado disso é outro imbróglio: Ilegais? Porquê?, Ilegais? Porquê? – (in)conclusão., e Ilegais? Porquê? – Desta é que foi. Mais ou menos...
Convém não esquecer que a Declaração Universal dos Direitos do Homem também diz, no seu artigo 27º/2:
ResponderEliminar"Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor."
Por seu lado, a Constituição portuguesa também diz, no artigo 42º/2, que:
"Esta liberdade (de criação cultural) compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor."
A resolução do problema exige sempre a ponderação, harmonização e concordância prática entre diferentes direitos e interesses em colisão, de acordo com princípios de proporcionalidade e justiça.
Mais um artigo que (apesar de assumir a evolução sem a demonstrar) acaba por reconhecer que a melhor maneira de ser criativo é imitar os designs do Criador...
ResponderEliminarEntretanto, a procura de uma causa natural para a origem da vida continua na estaca zero...
"Também não se remunera cozinheiros proibindo a partilha de receitas nem matemáticos taxando cada conta que façamos"
ResponderEliminarSucede que os matemáticos não criam a matemática, mas apenas a descobrem...
...se a matemática dependesse da criatividade dos matemáticos 2+2 seriam 5 sempre que o matemático quisesse...
Mesmo supondo que a matemática descobre-se (apesar de ser uma disciplina...), suponho que o perspectiva não acredita que as receitas não são apenas apenas descobertas.
Eliminar1) As invenções são sempre descobertas ( "descobri uma maneira de", "descobri como" ). Normalmente, devem-se a um problema e são uma descoberta que o resolve. Se não foram fruto de um problema, foram acidentais, mas continuam a ser invenções, como a penicilina, o teflon, o plástico e as bolachas com petitas de chocolates.
Eliminar2) Dizer que a matemática não é criada, é descoberta, é como dizer o mapa não é criado, é descoberto. Por exemplo, os astros e as suas propriedades não foram criados por humanos, mas a astronomia é uma criação humana.
3) Apesar de ainda existirem alguns matemáticos que seguem a filosofia platónica, mas as entidades matemáticas existem tanto como existe o eixo imaginário sobre o qual a Terra roda.
Por correspondência biunívoca foram criados os números e as operações aritméticas foram criadas como instrumentos para auxiliar contagens, abstraíndo de pedras, ossos e riscos. São instrumentos que são facilmente confundidos com os problemas em si, mas não são aplicados sem mais nem menos quando se comprares um levas dois ( não basta fazer 2 + 2 = 4 ) ou se juntares duas moléculas de oxigénio ( resultam numa ).
Talvez o perspectiva aceite que a notação posicional decimal é claramente uma invenção para facilitar os cálculos, em vez de recorrer, por exemplo, ao sistema romano. Senão, gostaria de saber por que é que acha que não foi inventado. Se acha que foi inventado, gostaria de saber por que é que acha isso e por que é que acha que a restante matemática não foi.
* Math Forum
Eliminar* Lambda the Ultimate:
"If algorithms are math, then algorithms are discovered rather than invented, which might make software unpatentable.
The silly thing is, if math is a language, and language are there to formulate thoughts, then no idea is invented. They are just discoveries of meaningful sequences of words."
Pierre-Simon Laplace:
"The invention of logarithms, by shortening the labors, double the life of the astronomer."
"It is India that gave us the ingenious method of expressing all numbers by means of ten symbols, each symbol receiving a value of position as well as an absolute value; a profound and important idea which appears so simple to us now that we ignore its true merit."
Jónatas,
EliminarA matemática é uma linguagem que podemos usar para descrever coisas. Por exemplo, com 1+1=2 podemos descrever o que acontece quando juntamos uma laranja a outra laranja. E com 1+1=1 podemos descrever o que acontece quando juntamos um rebanho de ovelhas a outro rebanho de ovelhas. Ou quando temos a disjunção de duas proposições verdadeiras. A álgebra de Boole é tão válida como a outra. E obviamente que têm de ser inventadas, porque senão não podia ser 1+1=2 e 1+1=1 também.
parte 3 + 3 perspectivas ...é a trindade a transfigurar-se em blogue?
ResponderEliminarpoder político dos distribuidores...é uma cadeia de serviços distribuidores vendedores cria emprego...gera bit con's virtuais
ResponderEliminaralimenta a economia de casino
logo há que mantê-la
senão quem é que aceita os bit con's de krippahl se não há correntes de electrões para os transportar?
Um off topic interessante:
ResponderEliminarUm estudo sobre a origem das línguas corrobora Génesis e o episódio de Babel por ser independente da genética das populações e ser relativamente recente...
... como corrobora outros mitos.
EliminarQuentin Atkinson não defendeu a dependência entre genética das populações e a origem das línguas. Se alguém é filho de chineses que não sabem português, mas nasceu e vive em Portugal, o mais provável é saber português por aprendizagem. Não herdou a língua por uma maldição divina. Os criacionistas é que têm se baseiam nessas ideias absurdas.
O que Atkinson fez foi recorrer a um método matemático - que dirias ser uma apenas uma descoberta, não uma invenção - para um contexto e de modo que Cysouw considera inapropriados:
"Atkinson, who is a biologist and psychologist by training, found that the highest levels of phoneme diversity occurred in languages spoken in southwestern Africa. Furthermore, according to his statistical analysis, the size of the phoneme inventory in a language tends to decrease with distance from this hotspot."
Talvez fosse bom conhecer em primeira mão o que os criacionistas dizem sobre a origem das línguas. Também neste domínio interessa seguir a evidência
EliminarAtkinson era mais um etologista que um psicólogo mas vá lá...
ResponderEliminarJá viu a nova lei ACTA que o parlamento europeu quer passar? É chocante. Inclusivamente, pode impedir os próprios actores de alterarem as suas obras. Estes dois vídeos são elucidativos:
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=citzRjwk-sQ
http://www.youtube.com/watch?v=p_bERAf5KAg
Sim, obrigado. Já há bastante tempo que sigo este tratado. Mas, como o João Vasco comentou, pode ser que se resolva tudo rapidamente.
EliminarSamuel Lourenço,
ResponderEliminarTrago-lhe boas notícias:
«Joseph Daul, líder do Partido Popular Europeu (PPE), foi o primeiro a dizê-lo: “ACTA c’est fini.” (o ACTA está acabado). As palavras do eurodeputado surgiram depois de manifestações durante o fim-de-semana em 130 cidades de 30 dos 39 países envolvidos nas negociações do Acordo Comercial Anticontrafacção, protestando contra um tratado transnacional negociado "secretamente" e que, na prática, equivalia ao fim da privacidade online e da livre troca de informações.»
Mais sobre esta vitória aqui:
http://esquerda-republicana.blogspot.com/2012/02/vitoria-contra-o-acta.html