terça-feira, maio 24, 2011

A primeira costura?

A ACAPOR, a associação de clubes de vídeo, tem-se batido pelos “direitos de autor”, denunciando centenas de «utilizadores da internet, com IP nacional, que estiveram a partilhar, sem a devida autorização, obras cinematográficas, cometendo assim o crime de usurpação de direitos»(1). Este “crime de usurpação de direitos” consiste em dar à cópia de uma obra um uso que a lei estipula ser exclusivo do autor ou daqueles a quem o autor cede esse direito. Mas mesmo um paladino da justiça como a ACAPOR tem de subordinar esta luta a valores mais elevados. Como os seus lucros.

Neste momento, a ACAPOR está a “reagir” aos preços dos filmes para aluguer. Parece que os detentores dos direitos exclusivos do Biutiful(2) e do Mad Dog(3) decidiram vender estes filmes por €9,90 para uso pessoal, mas por cerca de €40 para quem quiser ganhar dinheiro alugando os DVD destas obras. Segundo a ACAPOR, os direitos de autor não vão tão longe que permitam aos seus detentores decidir quanto exigem pelo direito de aluguer. Assim, a ACAPOR decidiu que «irá apoiar juridicamente os seus associados que» alugarem os DVD comprados ao preço de uso pessoal, para qualquer «título colocado no mercado de aluguer que, em simultâneo ou com uma janela de exclusividade não significativa, supere em mais de 100% o valor do preço de venda ao público.»(2)

A ACAPOR não acha que a privacidade, a liberdade de expressão, o direito de partilha ou de acesso à cultura justifiquem desrespeitar a vontade dos gestores de direitos. Ignorar estes monopólios comerciais só se justifica em nome do sagrado lucro dos clubes de vídeo.

Há anos que o sistema de monopólios sobre a cópia ameaça rebentar pelas costuras. Mas, até recentemente, pensei que se abrisse primeiro pela incompatibilidade entre os direitos pessoais e a aplicação, ao domínio privado, de monopólios que deviam ser só comerciais. Afinal, é aqui que estão os problemas mais graves desta legislação. Mas, em retrospectiva, reconheço que fui ingénuo. Por um lado, porque a aplicação da lei ao domínio privado tem sido difícil demais para preocupar as pessoas. As tais mil denúncias dão notícia nuns jornais mas, enquanto não prenderem o filho de algum político por copiar ficheiros, ninguém de peso se vai ralar com o absurdo desta lei. E, por outro lado, porque os lobbies só estão onde está o dinheiro. Direitos pessoais não pagam vivendas.

Por isso, parece que a primeira costura a ceder vai ser nas aplicação comerciais do copyright. A palhaçada da ACAPOR* é apenas um exemplo à portuguesa mas, na Irlanda, o ministro do trabalho já admitiu que o copyright, como está, prejudica a economia. «Algumas empresas apontaram que a legislação presente não se adequa ao ambiente digital e chega a criar barreiras à inovação e ao estabelecimento de novos modelos de negócio»(4) e, por isso, está a ponderar excepções para usos comerciais sem restrições monopolistas.

Entretanto, a RIAA ganhou 105 milhões de dólares no caso contra a LimeWire, por violação de direitos de autor, mas já decidiu que «todos os fundos serão reinvestidos nos programas de educação e anti-pirataria»(5) em vez de servirem para compensar os autores. Os advogados estão primeiro. Os advogados e os ordenados milionários de quem gere associações como a RIAA, cujo presidente, em 2009, recebeu mais de três milhões de dólares (6). Se as coisas continuarem assim, talvez até a Mariza perceba que não são os fãs quem está a roubar (7).

* A justificação jurídica da ACAPOR é o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 332/97, «sempre que o autor transmita ou ceda o direito de aluguer relativo a um fonograma, videograma ou ao original ou cópia de um filme a um produtor de fonogramas ou de filmes, é-lhe reconhecido um direito irrenunciável a remuneração equitativa pelo aluguer». Infelizmente, parecem nem perceber que o direito do autor a ser remunerado pelo aluguer não tem nada que ver com os clubes de vídeo alugarem DVD cujo aluguer é proibido pelos detentores dos direitos.

1- ACAPOR, ACAPOR apresenta 1000 denúncias por pirataria online
2- ACAPOR, Reacção da ACAPOR ao caso "BIUTIFUL"
3- ACAPOR, Direito de Aluguer justifica aumento de 330% sobre preço de venda ao público
4- Rick Falkvinge, Irish Job Minister: “Copyright Monopoly Is Bad For Our Businesses And Economy”
5- Ernesto, LimeWire Pays RIAA $105 Million, Artists Get Nothing
6- Cory Doctorow, RIAA boss takes home $3 mil+
7- «Há um aviso fantástico que vejo em casa, quando vejo os meus concertos e filmes em DVD, que mostra uma pessoa a roubar uma carteira, a partir o vidro de um carro, a assaltar uma loja. [...] A mesma coisa se passa com um download: é roubar», na Blitz, Músicos contra pirataria: Mariza, Alice Cooper e Bryan Adams comentam

15 comentários:

  1. "A esmagadora maioria dessas denúncias (970) reportam-se a utilizadores da internet, com IP nacional, que estiveram a partilhar, sem a devida autorização, obras cinematográficas, cometendo assim o crime de usurpação de direitos, punido pela legislação portuguesa com pena até 3 anos de prisão."

    Como se encontra a situação francesa? Sempre avançaram com punição por partilha?

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  2. É curioso que os defensores dos direitos de autor dizem que achar um CD/DVD/etc demasiado caro não é desculpa para o ir sacar da net. Não são bens de primeira necessidade, portanto não se compram e pronto! (até acho q foi aqui neste blog que tive uma dessas discussões)

    Mas pelos vistos, para a ACAPOR, se acharem que um DVD de aluguer é demasiado caro, já é perfeitamente legítimo alugar a versão cujo aluguer não é autorizado. Giro...

    A "remuneração equitativa pelo aluguer" devida aos autores, de facto nada tem a ver com o preço dos DVDs de aluguer. Quem compra os direitos de distribuição define os preços que bem entender! Até podiam vender os DVDs para uso doméstico a 1€ e os DVDs de aluguer a 100.000€. Estavam no seu direito de acordo com a lei. É o detentor de direitos que tem de autorizar o aluguer, e autoriza-o nos termos que entender. Ou nem autoriza sequer.

    É por isso que a afirmação que isto é um "abuso da posição monopolista que [o distribuidor nacional] exerce sobre o catálogo que detém, prejudicando com isso o mercado concorrencial e em particular o mercado de aluguer" só pode ser para rir. Os Direitos de Autor e Direitos Conexos são precisamente monopólios de exploração concedidos pelo estado que, por definição, prejudicam a livre concorrência. Sempre que alguém se serve destes direitos para praticar preços acima daqueles que seriam praticados num mercado livre, está a servir-se deste monopólio. Os "abusos" acontecem, portanto, TODOS OS DIAS, e não só quando os clubes de vídeo são prejudicados!

    Eu até entendo os clubes de vídeo. Têm de lidar com estas tretas pois, na Europa, o aluguer requer autorização. Nos EUA não é assim. Os clubes de vídeo compram os DVDs aos mesmos preços que a generalidade das pessoas (até menos pois vão directo ao distribuidor). E os estúdios de Hollywood não se parecem preocupar que no seu mercado nativo as coisas se passem assim.

    Mas parece-me que a ACAPOR está a reagir da forma errada ao desrespeitar direitos dos quais se faz grande defensor noutros contextos. Se acham que a ZON Lusomundo pratica preços altos para beneficiar a sua plataforma de aluguer, então que façam queixa à Autoridade da Concorrência. Mas se a Prisvideo e a Castello Lopes fazem o mesmo... qual é então a explicação?

    Deste modo a ACAPOR junta-se ao role de exemplos de hipocrisia. Infelizmente é bastante típico que quando certas organizações se sentem prejudicadas pela violação de direitos de autor, "caia o Carmo e a Trindade". Mas quando lhes interessa, violam esses direitos (e burlam artistas e criadores) sem grandes escrúpulos.

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  3. nmhdias,

    Sim avançou. A autoridade HADOPI já anda para lá há quase um ano a recolher IPs e mandar emails e cartas registadas de aviso. Só há terceira é que está previsto o corte da ligação à internet (que pode ir até a um ano). Da última vez que li números andavam a mandar uns poucos milhares de avisos por mês, mas não me consta que alguém já tenha sido punido. Até porque com a coisa a funcionar a este nível, dificilmente alguém será apanhado 3 vezes no espaço de um ano como a lei exige.

    E o pessoal também se vai refugiando noutros métodos que não o P2P. Houve uma notícia há uns meses em como o Megaupload viu o número de utilizadores franceses multiplicarem-se por seis.

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  4. Qual pirataria, quais criadores, qual quê! O problema é só mesmo quanto é que o sindicato do aluguer ganhar. Grande ACAPORca!

    Vá lá que ao menos assim as pessoas vão percebendo ao que vem.

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  5. Obrigado Nelson.
    Será interessante observar o desenvolver de serviços para ocultar os IPs como o anonymizer caso o policiamento na net venha a crescer.

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  6. nmhdias, desde VPNs a Seedboxes há mta forma de usar bittorrent de forma segura. Mas o que está na moda, mesmo nos outros países, é usar sites de alojamento e download directo (megaupload, hotfile, fileserve, filesonic, etc, etc). Por isso é que na espanha e noutros lados querem ir atrás dos sites que postam links.

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  7. nmhdias,

    Nem é preciso ir tão longe. Coisas como a HADOPI não servem de nada para serviços como rapidshare, megaupload e companhia, newsgroups e assim. O que estão a fazer é, novamente, a empurrar a partilha para sistemas cada vez mais difíceis de monitorizar.

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  8. E o bloqueio de sites vai dar ao mesmo. Há sempre proxies, VPNs, etc, para lhes aceder. E há sempre novos sites a surgir.

    Os EUA andam todos contentes a apreender domínios (.com e .net principalmente). Resultado: os sites refugiam-se em domínios nacionais, o google ajuda a transferir quem procura pelos antigos, e até há uma extensão para Firefox que automatiza a transferência. Até já se fala num sistema DNS completamente distribuído de domínios .p2p, sem regulação centralizada (basta uma pequena aplicação que actualize uma lista colocada no ficheiro hosts do Windows).

    As autoridades governamentais ainda não perceberam que os sistemas de vigilância, monitorização, filtragem, bloqueio, e afins, devem ser guardados apenas para as coisas verdadeiramente importantes. Tipo pornografia infantil, terrorismo, medicamentos falsificados, e afins. Se o fizeram serão poucos os interessados em neutralizar esses sistemas e a coisa poderá ser sustentável. Usá-los contra sites de venda de contrafacção já é esticar um pouco a corda, mas ainda é capaz de funcionar.

    Já se usarem esses sistemas contra a partilha de conteúdos culturais e de entretenimento, e... ficam sem eles. Isso já revolta muita gente. Gente com capacidades técnicas e financeiras para fazer serviços que neutralizam a vigilância e bloqueio. E os pedófilos e afins agradecem!

    É o problema de insistir em colocar milhões de cidadãos à margem da lei. Acabam por ficar mais largas as margens do que o rio!

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  9. A atitude dessa coisa que dá pelo nome de ACAPOR, em português vernáculo, traduz-se no seguinte ditado popular:

    "Pimenta no cú dos outros, é refresco!"

    Já agora, sobre a estupidez francesa:

    http://arstechnica.com/tech-policy/news/2011/05/france-halts-three-strikes-ip-address-collection-after-data-leak.ars

    Melhores cumprimentos

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  10. OT,

    Ludwig, tu dás aulas na Nova, certo?

    Estive lá um dia desses. Procurei-te no lugar onde eu sei que passas horas e horas em meditação (na igreja à saída) mas nem sinal. :-|

    Foto 1, e foto 2.

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  11. Ludwig,

    Cuidado com os autos de fé que eles "andem" aí...

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  12. Mats,

    Eu dou aulas na FCT. Isso parece-me ser a reitoria, em Campolide.

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  13. AF,

    Sim, é outro belo exemplo das parcerias público-privadas :)

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  14. Nelson,

    «As autoridades governamentais ainda não perceberam que os sistemas de vigilância, monitorização, filtragem, bloqueio, e afins, devem ser guardados apenas para as coisas verdadeiramente importantes.»

    Algumas já. Por exemplo, o MI5 e MI6 opuseram-se a medidas como a HADOPI precisamente porque o uso generalizado de proxies e encriptação dificulta imenso a vigilância de terrorismo, contrabando de drogas e outra criminalidade perigosa.

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  15. Bem,

    http://arstechnica.com/tech-policy/news/2011/05/french-three-strikes-anti-piracy-software-riddled-with-flaws.ars

    Se não fosse tão triste, dava pra umas boas gargalhadas!

    Quis custodiet ipsos custodes?

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