sábado, junho 30, 2007

Treta da semana: Culturalismos.

Numa sociedade moderna convivem várias culturas, grupos de pessoas com tradições e valores que muitas vezes chocam. O multiculturalismo defende o respeito mutuo e a preservação desta diversidade. Os muçulmanos que construam mesquitas à vontade, os hindus que celebrem o casamento como quiserem. O monoculturalismo aconselha cautela. Não apedrejem pessoas só porque têm um amante e não cortem o clitóris às raparigas. E muitos procuram o equilíbrio entre as várias culturas. Não impor a nossa cultura ocidental mas defender as nossas tradições. Respeitar outras culturas sem perder a nossa identidade cultural. E assim por diante.

Mas a cultura, neste sentido, é abstracta e arbitrária. Na cultura Portuguesa incluem os descobrimentos mas não a escravatura, a religião católica mas não a inquisição e a perseguição religiosa, a tourada mas não o trabalho infantil. Agrupam umas pessoas pelo sítio onde nasceram, outras pela religião dos pais, outras por alguns costumes que a família tem. Nada disto tem mal se for só para classificar e organizar a informação. Mas é mau quando faz ver o conflito como sendo entre grupos e culturas. É treta. É entre pessoas.

Quando o pai quer cortar prepúcio ao filho há um conflito de interesses entre o pai e o filho. Não interessa se o pai é gordo, magro, judeu, católico ou simplesmente doido. Nem interessa se o pai dele lhe cortou o prepúcio, e o avô ao pai. O puto não tem nada a ver com isso. Dizer que é questão cultural assume que a criança já nasceu com a cultura enfiada e que não tem o direito de escolher que partes desta cultura lhe interessam e que partes prefere ir buscar a outras culturas. A cultura é muito bonita, mas não se deita fora o prepúcio assim de ânimo leve.

Foca-se a cultura e o grupo e perde-se o mais importante. O indivíduo. O muçulmano tem tanto direito de ser católico como um católico, e ambos o direito de ser ateus. Não é por ter os pais assim ou assado que se tem mais (ou menos) direito a uma ideologia, religião ou comportamento. E é errado dar prioridade a conceitos abstractos como cultura e tradição. Essas coisas não sentem, não sofrem, não desejam, não pensam.

Isto é grave porque qualquer cultura inclui mecanismos de preservação de tradições, de resistência a ideias novas, e de educação das crianças de acordo com os preceitos da cultura. É de esperar que assim seja, porque dura mais a cultura que melhor se preserva. Mas uma boa ideia não precisa da tradição para a justificar, e uma má ideia é má mesmo que seja antiga. Nem sempre é bom preservar a tradição, e é de desconfiar daquilo que se faz só porque sempre se fez.

Dar prioridade ao indivíduo é especialmente importante na educação. Não é correcto assumir que a criança vai seguir os preceitos dos pais. Tem o direito de os seguir, mas também tem o direito de conhecer alternativas para, quando adulta, orientar a sua vida à sua maneira. Não deve haver escolas católicas, judaicas, orientais ou ocidentais porque as crianças não são nada disso. São crianças, e as escolas devem mostrar-lhes a diversidade de opções de uma forma neutra que ensine sem coagir.

Há quem acuse isto de impor a cultura ocidental aos outros. Treta. Esta ideia não se justifica por ser do ocidente. Justifica-se porque quem sofre ou beneficia é sempre a pessoa e nunca a abstracção sociológica. Somos nós que merecemos respeito, e não as idiossincrasias dos nossos antepassados. E o problema principal é uma comunidade impor a sua cultura aos seus próprios membros. Ao contrário do que muitos julgam isto não é bom. É mau. Tão mau como impô-la aos membros de outras comunidades, porque identificarmo-nos com esta ou aquela tradição deve ser um acto voluntário e não mera função do sitio onde nascemos ou do ventre de onde saímos.

A mulher deve andar tapada dos pés à cabeça só se quiser, e não por obrigação ou tradição. A liberdade religiosa deve ser pessoal. Não deve ser a liberdade de obrigar os filhos a ter a mesma religião. As tradições valem pelo que valem. Não devem ganhar pontos por antiguidade. E, acima de tudo, a cultura de cada pessoa deve ser aquilo que ela escolhe, e não um defeito de nascença.

6 comentários:

  1. Sim, concordo!

    Mas há uma excepção. Não digo que devia haver, mas que incontornavelmente há. Uma coisa que é "cultural" mas que, ao contrário do vestuário ou do comportamento, não pode ser abandonado ou adoptado por súbita opção. Uma coisa que é "cultural" mas que não pode ser ignorada quanto falamos de ensino e de qualquer forma de comunicação:

    A língua.

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  2. Andou lendo os ensinamentos de Buda, foi?

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  3. «qualquer cultura inclui mecanismos de preservação de tradições, de resistência a ideias novas, e de educação das crianças de acordo com os preceitos da cultura.»

    Algumas até têm mecanismos de protecção das outras culturas. Uma espécie de infecção memética, o multiculturalismo.

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  4. O conceito de indivíduo é ilusória.
    É capaz de em explicar que espécie de indivíduo é possível sem uma Cultura.
    Não acredito na oposição Indivíduo- Cultura,Sociedade. O Eu é contemporâneo do Nós.
    Se é verdade que a cultura pode ser opressiva, ela também é libertadora. É a nossa "segunda natureza", para o bem e para o mal.

    Relativamente à restante parte do post é de elementar bom senso. Aliás a modernidade caracteriza-se pela oposição à tradição. No dizer de Kant, nem a igreja pela sua santidade,nem o rei pela sua majestade,devem escapar ao exame crítico da razão.Sapere aude, Ousa saber.

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  5. Caro ASilvestre,

    É claro que o ser humano tem que ter cultura, no sentido de ter conhecimentos e comportamentos adquiridos por aprendizagem. Mas isto não exige que tenha uma cultura, no sentido de ter aquele conjunto específico de comportamentos e conhecimentos.

    A oposição entre indivíduo e cultura surge quando se sacrifica indivíduos para preservar certos elementos específicos de uma cultura. Para usar a sua terminologia, quando esquecemos que o «Nós» é, em última análise, um conjunto de «Eus».

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