terça-feira, junho 12, 2007

Comunismo Digital.

Já me acusaram de comunista por defender que não se deve aplicar direitos de cópia à partilha de conteúdo digital. E até sou. De certa forma. Aqui em casa vivemos os quatro como comunistas. Partilhamos recursos e o fruto do nosso trabalho, de cada um conforme pode e a cada um conforme precisa. É o sistema ideal porque temos objectivos comuns, e é estável porque cada um beneficia mais colaborando neste sistema que com qualquer alternativa.

Mas não é o benefício do grupo que importa. O mesmo sistema aplicado ao prédio em que vivo beneficiava-nos a todos, mas não funcionava. A economia de escala permitia poupar em comida, água, e outros recursos consumíveis. Partilhar os ordenados de vinte famílias dava mais segurança perante algum percalço financeiro, e aumentaria bastante a qualidade de vida dos menos favorecidos. Mas não funcionava porque cada um podia ganhar ainda mais guardando para si o que conseguisse esconder dos outros. O que é vosso é de todos, mas o que é meu é meu. Nestas circunstâncias, só funcionava com a polícia secreta do comité central a mandar para o gulag de Trás-os-Montes quem não alinhasse.

O capitalismo tem o mesmo problema. Só à força é que um casal com filhos pequenos ia funcionar num modelo de compra e venda de bens e serviços. As anedotas são outro exemplo, por razões diferentes. Quem sabe uma anedota engraçada tem mais a ganhar contando-a que tentando vender a anedota, porque outro qualquer pode contá-la primeiro. Só coagindo os outros é que alguém podia ganhar a vida a inventar anedotas sem ter qualquer dom artístico adicional mais difícil de duplicar (o sucesso do Fernando Rocha é inexplicável num modelo racional).

Como descrição das interacções humanas o capitalismo e o comunismo são ambos consequência da racionalidade ao serviço do interesse próprio. Na ausência de coacção, agimos de uma forma ou de outra dependendo das circunstâncias. E nem sempre é mau um pouco de coacção. Aceito que me forcem a partilhar um terço do ordenado com quem mais precisa, em impostos e segurança social. E aceito que haja limitações de cópia em actividades comerciais para manter uma concorrência saudável que nos beneficia a todos. Mas como ideologia sou pouco comunista e pouco capitalista. Pode ser bom uma pitadinha da ideologia adequada, mas sem exageros.

Que não nos obriguem a partilhar o ordenado todo com os vizinhos, nem nos proíbam de contar anedotas. E os ficheiros no computador são como as anedotas. São informação, podem ser duplicados sem custo, e cada indivíduo tem mais a ganhar partilhando que ficando fora da partilha. É possível descarregar ficheiros sem os partilhar, mas dá mais trabalho que simplesmente deixar os bits correr de um lado para o outro. E neste caso não há razão prática ou moral para coagir milhões de pessoas a adoptar um modelo contrário aos seus interesses.

Há coisas que queremos vender e há coisas que queremos partilhar. Pode-se forçar um pouco, mas forçar demais dá asneira, seja para que lado for. Por isso liberalizar o tráfego de bits para fins pessoais não é comunismo, é bom senso. E tentar que seja ilegal não é capitalismo. É disparate.

9 comentários:

  1. So' nao concordo com o custo da duplicacao ser nulo. Gosto de dizer que tende para zero, e que isso e' bom e um argumento a favor da partilha.

    Duplicar uma musica no PC ou custa mais uns bytes num disco (uma fraccao de centimo), ou um bocadinho de largura de banda e uns bytes no disco doutra pessoa qualquer, mas gosto de olhar para isso como algo positivo.

    As empresas de discos rigidos prosperam pq partilhamos mais e guardamos mais, e a economia continua a andar, com o dinheiro a ir para uns lados em vez de outros.

    Tb escolhemos o restaurante com musica ambiente, e pagamos sempre ao restaurante, nao ao musico.
    O dono do restaurante pagou, mas os clientes com quem partilha a musica nao pagaram, nao vao a tribunal, nao vao presos, nem deixam de la ir comer. ;) Negocio evoluido este da musica em estabelecimentos comerciais!

    Acho tb que o negocio da musica tem, deve, e ja tarda em evoluir.
    Permitam que as capas originais dos CDs e os seus codigos de barras deem descontos nos bilhetes de concertos, por exemplo. Facam com que quem tem o CD tenha algo mais que quem nao tem. Sorteios de proximos albuns gratis (ou descontos) a quem ja tenha um original, previlegios de reserva de bilhetes, conteudos nao digitalizaveis, backstage pass (por sorteio novamente), e a lista continua.

    Mas sim (ludwig), nao nos obriguem a um modelo contrario aos nossos interesses, nem me obriguem a organizar os meus electroes pelos quais paguei da maneira que eles querem. ;)
    Bom post!

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  2. Lwd,

    Bem equacionado.
    Na sua metáfora do prédio-célula (rua-célula, cidade-célula, mundo-célula) acrescentaria mais um grau de complicação além da diluição do sentido de grupo com o aumento de escala. Tem que haver uma consideração de proporcionalidade entre esforço e compensação, no grau da partilha. Apesar desta dificuldade ser um lugar comum nas diatribes anti-socialistas que não são para aqui chamadas, tem ainda assim razão de ser no seu post. É que, na partilha justa, há "ficheiros" e há "ficheiros" pela mesma razão de que há "autores" e há "autores". No caso da música, como noutro caso qualquer: se eu debulhar ao piano uma sonata de Mozart, ficaria até lisonjeado se uma cópia circulasse na internet. Agora vejamos o caso de Alfred Brendel. Estaria este tipo disposto a trabalhar uma vida inteira num grau de especialização estratosférico para depois servir desprendidamente os manuéis do prédio-célula? Ou trocar o seu trabalho em 128 bits por um dos Bate na Avó do 3º esquerdo?

    Concordo com o "comunismo digital" se enquadrado no peso e medida prescrito no seu post que, receio, sejam as regras de mercado neste momento... sob pena de ficarmos todos a ouvir os Bate na Avó, a fazer contas em Fortran, ou a falar por latas com um fio. Existe uma trágica afinidade entre os génios e os direitos de autor.
    (Ironia da coisa: é bem provável que o Brendel saiba menos de direitos de autor do que os Bate na Avó)

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  3. Calhandro,

    Concordo que o custo não é exactamente zero. Mas o custo, em última análise, é um factor psicológico. Um custo de 1€ não é igual para toda a gente, depende de quantos €€ têm.

    E o custo de partilhar pode até ser negativo, neste sentido. Supõe que tens um disco de 200Gb e uma ligação que te dá 20Gb de trafego nacional por mês. Não partilhar terá um custo de oportunidade por não aproveitar estes recursos, e partilhar terá um custo negativo porque evita que «pagues» esse custo de oportunidade.

    É claro que o dinheiro vai para algum lado, e neste caso é para os ISP e fabricantes de discos, em vez de ir para os músicos. Mas se fosse para forçar o dinheiro a ir para quem mais contribuiu, a fatia maior tinha que ser para a família de Plank, Heisenberg, Bohr, e esses sem os quais não tínhamos nada disso.

    Hmmm.. isto dá um bom post sobre externalidades. Fica para breve :)

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  4. Caro Bruce,

    Não me parece que o esforço que Alfred Brendel dispendeu ao longo da sua vida lhe seja tirado quando alguém partilha um ficheiro. Não é o mesmo que lhe tirar o ordenado e dar aos outros.

    Primeiro porque não se tira nada que seja dele. O computador não é dele, a rede não é dele, nem o disco, nem os bits, nem aquela sequência de números em abstracto, porque isso é de todos. Simplesmente pode acontecer que alguém não compra um disco dele, mas isso é um direito do consumidor. Ninguém deve ser obrigado a comprar o que não quer comprar.

    Em segundo lugar porque pessoas como Brendel não fazem dinheiro com os discos. É a Phillips que ganha com os discos. Brendel ganha com os concertos, e ganhará tanto mais quanto mais gente o ouvir tocar, seja pagando à Phillips ou não.

    Finalmente, penso que a partilha permite precisamente o oposto desse cenário terrível de andar tudo a ouvir Bate na Avó. Se a distribuição é feita para fins lucrativos vai ser manipulada pelo distribuidor em seu benefício. Podemos ver que muitas discográficas detêm direitos exclusivos sobre obras que já não editam para não interferir com vendas de outras, ou porque o mercado é pequeno demais. Para obter essas obras só pela partilha. O que uma discográfica quer é vender cinco milhões de discos do Bate na Avó e marimbar-se para os poucos que querem ouvir um Alfred Brendel.

    A partilha permite que a música se distribua de acordo com o que os fãs querem, e isso inevitavelmente vai beneficiar os artistas que mais merecem.

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  5. Lwd,

    Obrigado pelo esclarecimento, mais uma vez de acordo excepto em:
    "O computador não é dele, a rede não é dele, nem o disco, nem os bits, nem aquela sequência de números em abstracto, porque isso é de todos". Do mesmo modo poderíamos asseverar que a atmosfera é de todos, tal como a propagação do som. Não pago bilhete nos concertos!

    "O que uma discográfica quer é vender cinco milhões de discos do Bate na Avó e marimbar-se para os poucos que querem ouvir um Alfred Brendel". Absolutamente. Premiar financeiramente a arte e o artista é uma espécie de último reduto para manter a humanidade no bom caminho. Pagar ao Brendel. (parto do princípio de que ele não se deixa sangrar com cláusulas contratuais predatórias, como as que refere na sua resposta).

    "A partilha permite que a música se distribua de acordo com o que os fãs querem, e isso inevitavelmente vai beneficiar os artistas que mais merecem", parece-me algo especulativo mas vou daqui satisfeito.

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  6. Bruce:

    «Do mesmo modo poderíamos asseverar que a atmosfera é de todos, tal como a propagação do som. Não pago bilhete nos concertos!»

    Exacto. Se ficares à porta a ouvir não estás a fazer nada de ilegal nem de moralmente errado. As ondas de compressão não são do artista.

    Agora se ele alugou aquele espaço e está a cobrar para entrares, isso já é outra coisa. E se quiser dar um concerto num espaço público terá que ter autorização prévia para poder excluír de lá quem não paga bilhete.

    Penso que o mais importante é não ver esta questão como uma de direitos pessoais. Tu não pagas ao artista pela música que ele fez, senão nem podias cantar no duche.

    O que se passa é que impomos certas restrições ao comércio para que o mercado funcione, e sempre de forma a que o custo de restringir seja compensado pelos benefícios no funcionamento do mercado. É razoável criar mecanismos que permitam ao artista cobrar bilhetes num concerto.

    Mas se as pessoas querem cantar, ouvir CDs emprestados, escrever a letra da música, copiar um disco de um amigo, ou partilhar ficheiros já não tem nada a ver com a regulação do mercado. Isso já está ao nivel da liberdade pessoal de cada um.

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  7. Concordo com quase todas as afirmações até aqui feitas neste post e comentários respectivos, mas, uma coisa é uma cópia privada para uso pessoal, outra coisa é ter alguém a copiar o trabalho alheio com proveito financeiro. Se cada um que possuir uma cópia de uma qualquer música, e a encriptar só fornecendo a chave de desencriptação a troco de dinheiro, é chulice e só com restrições como as actuais é que isso se consegue evitar. O caso não é ficticio... Há uns idiotas a "afogar" a net com cópias encriptadas do eMule, que cedem a chave a troco de um pagamento por SMS. O eMule é gratuito!!! Só que chegar ao site dos programadores é quase impossível por causa destes chulos.
    Por isso este sistema para mim é um mal menor, o que há que se devia era restringir o preço da cópia a valores aceitáveis e restringir a transmissão de direitos. Não faz sentido que todos os direitos das músicas dos Beatles pertençam ao Michael Jackson!

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  8. Caro Anónimo,

    Não é difícil encontrar os sites oficiais do emule. Grande parte dos projectos de open source têm uma página no sourceforge.

    O emule oficial está aqui.

    O bowlfish, um dos mais famosos mods Portugueses, está aqui e aqui.

    Quanto às aldrabices que menciona, não é a lei vigente que nos protege nem alterar os direitos de cópia teriam alguma influência nessas práticas.

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  9. 26 de Junho: Dia sem música nas rádios on-line.

    Operadoras de rádio na Internet promovem “dia de silêncio” como protesto contra as taxas de royalties da industria discográfica.

    Notícia completa aqui.

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