Treta da semana: resposta gradual.
Segundo Eduardo Simões, o director-geral da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP), «O problema da pirataria na Internet tem conhecido diversos movimentos legislativos que fazem crer que a situação não vai permanecer como até aqui»(1). Este “movimento na situação do problema da pirataria” é a “resposta gradual”, um eufemismo para o procedimento administrativo de cortar o acesso à Internet a uma família se houver três queixas. Vale a pena detalhar um pouco este procedimento que tanto alegra o Eduardo.
Como implementado na França pela Haute Autorité pour la Diffusion des Œuvres et la Protection des Droits sur Internet (HADOPI), à primeira queixa enviam um email de aviso e o ISP fica obrigado a monitorizar as ligações desse cliente. À segunda suspeita, o aviso repete-se em carta registada. À terceira, o acesso é cortado por um período entre dois meses e um ano e essa pessoa fica impedida de obter um novo contrato de acesso, ainda que continue a pagar aquele que foi suspenso. Todo o processo depende apenas de queixas e suspeitas. O acusado não é ouvido em tribunal, não se exige evidências da ser ele o culpado, basta o endereço IP (2), e a recolha dos endereços para denuncia está a cargo de uma parceria publico-privada tipicamente incompetente e irresponsável (3). Além disso, o castigo aplica-se a todos que habitem na residência afectada, sejam inocentes ou culpados, vedando a todos um serviço cada vez mais importante para comunicações pessoais, trabalho, educação, cultura e cidadania.
O Eduardo defende esta lei absurda com o resultado de um inquérito conduzido pela HADOPI, segundo o qual metade dos franceses acham bem que lhes desliguem a ligação à Internet, e porque, segundo ele, estas medidas fazem as pessoas comprar mais música. Mesmo que fosse verdade, não seria aceitável tomar medidas coercivas como estas só para proteger o negócio da cópia, especialmente quando copiar e distribuir é tão trivial que hoje em dia qualquer pessoa pode fazê-lo. Mas nem é esse o caso, como mostram os número do Eduardo:
«No Reino Unido [...], no 1º trimestre de 2011, as vendas de música gravada caíram 9,1 por cento e o mercado digital cresceu 17,8 por cento […] Em França [...] as vendas de discos caem 9,3 por cento em valor e as vendas digitais sobem 13,2 por cento […] Na Irlanda, no início de Maio, o mercado digital tinha crescido 19,3 por cento.»(1)
Primeiro, é de notar que a França, que tomou a dianteira na “resposta gradual” e tem as medidas mais fortes, está na cauda destes três. Em segundo lugar, a Alemanha, que não tomou quaisquer medidas destas, entretanto ultrapassou o Reino Unido e é agora o terceiro maior mercado mundial de música (4). Finalmente, as vendas de CD continuam a cair a pique, por muito afincado que seja o combate à pirataria, enquanto sobem as vendas digitais. Se o problema fosse a pirataria, seria de esperar que as vendas digitais fossem mais afectadas do que os CD. Um CD sempre é algo tangível, tem capa, vem numa caixa, dá para embrulhar e oferecer e pode-se vender em segunda mão ou pousar uma caneca em cima. Em contraste, o ficheiro comprado é igual – ou pior, se tiver DRM – ao que se descarrega de graça. O CD só não pode competir com os ficheiros porque é um suporte obsoleto. Mas serviços de distribuição digital com qualidade, mesmo pagos, podem competir facilmente com o P2P e o Rapidshare se oferecerem algum valor adicional. Mais comodidade, integração fácil em vários aparelhos, disponibilização rápida de novidades e assim por diante.
É só no final do texto que o Eduardo Simões acerta no verdadeiro problema da música. «Eduardo Simões é duro de ouvido e não toca qualquer instrumento, mas foi ao lado dos músicos que construiu uma carreira. Advogado de formação, o diretor-geral [da] Associação Fonográfica Portuguesa...». Exactamente. A música, e a arte em geral, é comunicação. A obra é a forma do criador se exprimir perante o seu público. Os editores e distribuidores tiveram um papel importante quando a tecnologia era outra, quando só por meios industriais um autor conseguia ter audiência. Mas agora são apenas uma de muitas formas de o fazer, e já não se justifica terem direitos exclusivos, controlarem os canais de distribuição ou ditarem condições e preços. O que mais preocupa os Eduardos é estar-se a acabar este curto período da história em que foi preciso licenças, contratos e advogados para se criar e ouvir música.
Cortar a Internet a quem ouvir música de graça não ajuda os músicos nem a música. Só beneficia quem monopoliza os outros canais de distribuição. Aqueles que, mesmo duros de ouvido, fazem carreira “ao lado dos músicos”. O problema da música não é haver fãs que partilham, curiosos que descarregam ou multidões que ouvem sem pagar, pois todos esses contribuem para a base de admiradores que sustenta o músico. O problema da música não é piratas.
O problema da música é parasitas.
1- Opinião: Os primeiros resultados da Lei Hadopi e as subsequentes alterações de comportamento, via ovigia.
2- Wikipedia, HADOPI law
3- TorrentFreak, Major Vulnerability Found in Leaked Anti-Piracy Software
4- Guardian, Global recorded music sales fall almost $1.5bn amid increased piracy