sábado, maio 28, 2011

Treta da semana: resposta gradual.

Segundo Eduardo Simões, o director-geral da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP), «O problema da pirataria na Internet tem conhecido diversos movimentos legislativos que fazem crer que a situação não vai permanecer como até aqui»(1). Este “movimento na situação do problema da pirataria” é a “resposta gradual”, um eufemismo para o procedimento administrativo de cortar o acesso à Internet a uma família se houver três queixas. Vale a pena detalhar um pouco este procedimento que tanto alegra o Eduardo.

Como implementado na França pela Haute Autorité pour la Diffusion des Œuvres et la Protection des Droits sur Internet (HADOPI), à primeira queixa enviam um email de aviso e o ISP fica obrigado a monitorizar as ligações desse cliente. À segunda suspeita, o aviso repete-se em carta registada. À terceira, o acesso é cortado por um período entre dois meses e um ano e essa pessoa fica impedida de obter um novo contrato de acesso, ainda que continue a pagar aquele que foi suspenso. Todo o processo depende apenas de queixas e suspeitas. O acusado não é ouvido em tribunal, não se exige evidências da ser ele o culpado, basta o endereço IP (2), e a recolha dos endereços para denuncia está a cargo de uma parceria publico-privada tipicamente incompetente e irresponsável (3). Além disso, o castigo aplica-se a todos que habitem na residência afectada, sejam inocentes ou culpados, vedando a todos um serviço cada vez mais importante para comunicações pessoais, trabalho, educação, cultura e cidadania.

O Eduardo defende esta lei absurda com o resultado de um inquérito conduzido pela HADOPI, segundo o qual metade dos franceses acham bem que lhes desliguem a ligação à Internet, e porque, segundo ele, estas medidas fazem as pessoas comprar mais música. Mesmo que fosse verdade, não seria aceitável tomar medidas coercivas como estas só para proteger o negócio da cópia, especialmente quando copiar e distribuir é tão trivial que hoje em dia qualquer pessoa pode fazê-lo. Mas nem é esse o caso, como mostram os número do Eduardo:

«No Reino Unido [...], no 1º trimestre de 2011, as vendas de música gravada caíram 9,1 por cento e o mercado digital cresceu 17,8 por cento […] Em França [...] as vendas de discos caem 9,3 por cento em valor e as vendas digitais sobem 13,2 por cento […] Na Irlanda, no início de Maio, o mercado digital tinha crescido 19,3 por cento.»(1)

Primeiro, é de notar que a França, que tomou a dianteira na “resposta gradual” e tem as medidas mais fortes, está na cauda destes três. Em segundo lugar, a Alemanha, que não tomou quaisquer medidas destas, entretanto ultrapassou o Reino Unido e é agora o terceiro maior mercado mundial de música (4). Finalmente, as vendas de CD continuam a cair a pique, por muito afincado que seja o combate à pirataria, enquanto sobem as vendas digitais. Se o problema fosse a pirataria, seria de esperar que as vendas digitais fossem mais afectadas do que os CD. Um CD sempre é algo tangível, tem capa, vem numa caixa, dá para embrulhar e oferecer e pode-se vender em segunda mão ou pousar uma caneca em cima. Em contraste, o ficheiro comprado é igual – ou pior, se tiver DRM – ao que se descarrega de graça. O CD só não pode competir com os ficheiros porque é um suporte obsoleto. Mas serviços de distribuição digital com qualidade, mesmo pagos, podem competir facilmente com o P2P e o Rapidshare se oferecerem algum valor adicional. Mais comodidade, integração fácil em vários aparelhos, disponibilização rápida de novidades e assim por diante.

É só no final do texto que o Eduardo Simões acerta no verdadeiro problema da música. «Eduardo Simões é duro de ouvido e não toca qualquer instrumento, mas foi ao lado dos músicos que construiu uma carreira. Advogado de formação, o diretor-geral [da] Associação Fonográfica Portuguesa...». Exactamente. A música, e a arte em geral, é comunicação. A obra é a forma do criador se exprimir perante o seu público. Os editores e distribuidores tiveram um papel importante quando a tecnologia era outra, quando só por meios industriais um autor conseguia ter audiência. Mas agora são apenas uma de muitas formas de o fazer, e já não se justifica terem direitos exclusivos, controlarem os canais de distribuição ou ditarem condições e preços. O que mais preocupa os Eduardos é estar-se a acabar este curto período da história em que foi preciso licenças, contratos e advogados para se criar e ouvir música.

Cortar a Internet a quem ouvir música de graça não ajuda os músicos nem a música. Só beneficia quem monopoliza os outros canais de distribuição. Aqueles que, mesmo duros de ouvido, fazem carreira “ao lado dos músicos”. O problema da música não é haver fãs que partilham, curiosos que descarregam ou multidões que ouvem sem pagar, pois todos esses contribuem para a base de admiradores que sustenta o músico. O problema da música não é piratas.

O problema da música é parasitas.

1- Opinião: Os primeiros resultados da Lei Hadopi e as subsequentes alterações de comportamento, via ovigia.
2- Wikipedia, HADOPI law
3- TorrentFreak, Major Vulnerability Found in Leaked Anti-Piracy Software
4- Guardian, Global recorded music sales fall almost $1.5bn amid increased piracy

quinta-feira, maio 26, 2011

Competitividade.

Este é outro termo na moda, ocorrendo 9 vezes no memorando, 25 no programa eleitoral do PS (1) e mais de 100 no do PSD (2). O que não admira; os programas deste partidos são, fundamentalmente, o memorando da troika resumido no triplo das páginas. E, como ser competitivo faz ganhar e ganhar é bom, muita gente aplaude a competitividade. Infelizmente, é mais um termo ao serviço do embarretamento do eleitorado.

Na economia, a competitividade até é um conceito bastante abrangente. No entanto, no contexto das políticas de direita destas eleições, a competitividade nacional parece reduzir-se a um só factor: salários baixos. Por exemplo, o programa eleitoral do PSD fala em “desvalorização fiscal”, que consiste em baixar os impostos das empresas e compensar com o aumento do IVA. Ou seja, reduzir os ordenados, porque as empresas pagam menos e os trabalhadores descontam mais. Isto aumenta a competitividade das empresas em algumas condições mas, infelizmente, não nas condições que nos poderiam ajudar.

Baixar os salários permite à empresa baixar os preços, assumindo que os trabalhadores não se vão embora. Se o mercado for dominado pela procura então baixar os preços permite tirar clientes à concorrência. Mais competitividade. É o que faz a China, onde os trabalhadores nem sindicatos podem ter, e que produz tanta tralha quanto o resto do mundo queira comprar, empurrando qualquer outro produtor de coisas rascas para fora do mercado do muito e barato.

Mas noutras condições o resultado é diferente. Por exemplo, com bens de maior valor. Estes tendem a ser limitados pela oferta, porque exigem mão-de-obra com qualificações especiais enquanto a procura raramente é problema. Além disso, os trabalhadores qualificados têm mais mobilidade. Se lhes cortam regalias e ordenados num sítio vão trabalhar para outro lugar. Neste contexto, a “desvalorização fiscal” é um tiro no pé. No mercado de bens com maior valor acrescentado, a competitividade consegue-se atraindo a mão-de-obra mais qualificada e não cortando nos ordenados para baixar os preços.

Portugal já há anos que sofre com este problema, tendo uma grande taxa de emigração de pessoas com formação superior. Que já não não são os emigrantes de há poucas décadas, que partiam para mandar dinheiro para a família e juntar algum para voltar. Os emigrantes qualificados dos últimos anos vão para viver onde o seu trabalho seja mais apreciado e melhor recompensado. Este é um dos grandes problemas na nossa competitividade, e este problema só se irá agravar se tornarem o trabalho em Portugal ainda menos atractivo.

O plano das troikas é de competir com os chineses, o que me parece pouco viável. Por muito que espremam os trabalhadores portugueses, não iremos vingar no mercado saturado das luzes de Natal e dos sucedâneos de Tupperware. O que vamos ganhar com estas medidas de “competitividade”, além de menos dinheiro pelo nosso trabalho, será um país cada vez mais sangrado de talento e qualificações. Que não será mais competitivo, obviamente, mas talvez assim continue receptivo a esta liderança que tanto tem lucrado enquanto nos afunda.

1- Programa-Eleitoral-PS-2011-2015.pdf
2- Cujo PDF tirei daqui porque a versão que está no site do PSD é uma treta para ler.

terça-feira, maio 24, 2011

A primeira costura?

A ACAPOR, a associação de clubes de vídeo, tem-se batido pelos “direitos de autor”, denunciando centenas de «utilizadores da internet, com IP nacional, que estiveram a partilhar, sem a devida autorização, obras cinematográficas, cometendo assim o crime de usurpação de direitos»(1). Este “crime de usurpação de direitos” consiste em dar à cópia de uma obra um uso que a lei estipula ser exclusivo do autor ou daqueles a quem o autor cede esse direito. Mas mesmo um paladino da justiça como a ACAPOR tem de subordinar esta luta a valores mais elevados. Como os seus lucros.

Neste momento, a ACAPOR está a “reagir” aos preços dos filmes para aluguer. Parece que os detentores dos direitos exclusivos do Biutiful(2) e do Mad Dog(3) decidiram vender estes filmes por €9,90 para uso pessoal, mas por cerca de €40 para quem quiser ganhar dinheiro alugando os DVD destas obras. Segundo a ACAPOR, os direitos de autor não vão tão longe que permitam aos seus detentores decidir quanto exigem pelo direito de aluguer. Assim, a ACAPOR decidiu que «irá apoiar juridicamente os seus associados que» alugarem os DVD comprados ao preço de uso pessoal, para qualquer «título colocado no mercado de aluguer que, em simultâneo ou com uma janela de exclusividade não significativa, supere em mais de 100% o valor do preço de venda ao público.»(2)

A ACAPOR não acha que a privacidade, a liberdade de expressão, o direito de partilha ou de acesso à cultura justifiquem desrespeitar a vontade dos gestores de direitos. Ignorar estes monopólios comerciais só se justifica em nome do sagrado lucro dos clubes de vídeo.

Há anos que o sistema de monopólios sobre a cópia ameaça rebentar pelas costuras. Mas, até recentemente, pensei que se abrisse primeiro pela incompatibilidade entre os direitos pessoais e a aplicação, ao domínio privado, de monopólios que deviam ser só comerciais. Afinal, é aqui que estão os problemas mais graves desta legislação. Mas, em retrospectiva, reconheço que fui ingénuo. Por um lado, porque a aplicação da lei ao domínio privado tem sido difícil demais para preocupar as pessoas. As tais mil denúncias dão notícia nuns jornais mas, enquanto não prenderem o filho de algum político por copiar ficheiros, ninguém de peso se vai ralar com o absurdo desta lei. E, por outro lado, porque os lobbies só estão onde está o dinheiro. Direitos pessoais não pagam vivendas.

Por isso, parece que a primeira costura a ceder vai ser nas aplicação comerciais do copyright. A palhaçada da ACAPOR* é apenas um exemplo à portuguesa mas, na Irlanda, o ministro do trabalho já admitiu que o copyright, como está, prejudica a economia. «Algumas empresas apontaram que a legislação presente não se adequa ao ambiente digital e chega a criar barreiras à inovação e ao estabelecimento de novos modelos de negócio»(4) e, por isso, está a ponderar excepções para usos comerciais sem restrições monopolistas.

Entretanto, a RIAA ganhou 105 milhões de dólares no caso contra a LimeWire, por violação de direitos de autor, mas já decidiu que «todos os fundos serão reinvestidos nos programas de educação e anti-pirataria»(5) em vez de servirem para compensar os autores. Os advogados estão primeiro. Os advogados e os ordenados milionários de quem gere associações como a RIAA, cujo presidente, em 2009, recebeu mais de três milhões de dólares (6). Se as coisas continuarem assim, talvez até a Mariza perceba que não são os fãs quem está a roubar (7).

* A justificação jurídica da ACAPOR é o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 332/97, «sempre que o autor transmita ou ceda o direito de aluguer relativo a um fonograma, videograma ou ao original ou cópia de um filme a um produtor de fonogramas ou de filmes, é-lhe reconhecido um direito irrenunciável a remuneração equitativa pelo aluguer». Infelizmente, parecem nem perceber que o direito do autor a ser remunerado pelo aluguer não tem nada que ver com os clubes de vídeo alugarem DVD cujo aluguer é proibido pelos detentores dos direitos.

1- ACAPOR, ACAPOR apresenta 1000 denúncias por pirataria online
2- ACAPOR, Reacção da ACAPOR ao caso "BIUTIFUL"
3- ACAPOR, Direito de Aluguer justifica aumento de 330% sobre preço de venda ao público
4- Rick Falkvinge, Irish Job Minister: “Copyright Monopoly Is Bad For Our Businesses And Economy”
5- Ernesto, LimeWire Pays RIAA $105 Million, Artists Get Nothing
6- Cory Doctorow, RIAA boss takes home $3 mil+
7- «Há um aviso fantástico que vejo em casa, quando vejo os meus concertos e filmes em DVD, que mostra uma pessoa a roubar uma carteira, a partir o vidro de um carro, a assaltar uma loja. [...] A mesma coisa se passa com um download: é roubar», na Blitz, Músicos contra pirataria: Mariza, Alice Cooper e Bryan Adams comentam

domingo, maio 22, 2011

Treta da semana: mesmo que o mundo acabe, a treta continua.

Não há muito de novo a dizer sobre disto. O presidente da estação californiana Family Radio (1), Harold Camping, recorreu à sua fé (evangélica) e profundo conhecimento da Bíblia para prever que o mundo acabava ontem. No entanto, não parece ter acertado (2). Se, por um lado, é difícil crer que alguém monte uma campanha na rádio e em 2000 outdoors para anunciar o fim do mundo sem estar mesmo convencido disso, por outro lado os milhões de dólares que os totós que cairam na esparrela lhe deram (3) revelam, mais uma vez, que a fé tem facetas mais complexas que a mera crença pessoal. Mais curioso ainda, este senhor já tinha previsto o mesmo para 1994, com sucesso idêntico.

Seja por burla ou parvoíce, este tipo de coisas surge sempre do mesmo problema, transversal a todas as religiões, superstições, crendices e afins. Um tipo diz “eu sei”, por manha ou tontaria, e uma data de gente acredita que ele sabe mesmo sem lhe pedir que explique como. Por vezes o resultado é inofensivo, como quando dizem saber que Maria era virgem ou que um deus são três. Por vezes é lucrativo sem prejudicar muito, como quando dizem saber que o fantasma da Maria Clara do Menino Jesus anda no céu a interceder por nós, e compre lá a estatueta, bem em conta, para facilitar o pedido de favores. Mas outras vezes o resultado é terrível, como quando dizem saber o que é que deus manda ou proíbe que as pessoas (especialmente as mulheres) façam. Ou quando muita gente se arruína por enfiar mais um barrete acerca do fim do mundo (4).

Seria fácil prevenir estas coisas se, sempre que algum líder religioso, espiritista, astrológico – ou tretológico, em geral – afirmasse saber algo de extraordinário, lhe exigissem que demonstrasse como é que se obtém tal conhecimento de forma imparcial e isenta. Infelizmente, pensar e questionar dá muito mais trabalho do que ter fé. Quem se convence de que sabe as respostas já não se chateia com perguntas.

1- www.familyradio.com
2- International Business Times, Harold Camping's 21st May Doomsday prediction fails; No earthquake in New Zealand
3- Yahoo Finance, May 21 End of the World: Harold Camping's $72M business
4- Está aqui uma lista incompleta.

Miscelânea Criacionista: como um pássaro.

O Mats cita uma notícia segundo a qual se pode reduzir a força de arrasto num avião fazendo a cauda menor, como têm os pássaros (1). Se, para um criacionista convicto, isto parece ser mais uma prova de que a Terra foi criada pelo menino Jesus há poucos milhares de anos (2), para as restantes pessoas não é notícia de grande monta. No entanto, é uma boa oportunidade para apontar uma diferença importante entre design e evolução.

Quando o Mats diz que «Aviões deveriam se parecer com pássaros», não se está a referir ao chilreio, alimento, tamanho ou ovos. Nem sequer ao aspecto geral. Mesmo com uma cauda menor, um A300 não seria muito parecido com um pássaro. Noventa toneladas de plástico e metal, com cinquenta metros de envergadura, a 800Km/hora não é o que nos vem à mente quando pensamos num pardal. Quando o Mats fala em aviões serem parecidos com pássaros refere-se apenas a certos atributos pontuais, como a cauda menor para reduzir o arrasto. E que têm de ser ponderados com outros atributos, como a capacidade de levar centenas de pessoas a outro continente em poucas horas. É provável que a aerodinâmica da carriça não seja tão útil nestas condições tão diferentes.

O avião é produto de um design inteligente e isso nota-se porque os atributos do avião servem os propósitos dos seres que o conceberam. Ao contrário do que os criacionistas alegam, repetidamente, o design inteligente não se revela na mera complexidade ou na “informação” que algo contém. Um pedaço de sílex amarrado a um pau ou um pico de cacto com um buraco para passar linha revelam design inteligente mesmo sendo ferramentas simples, enquanto que uma nuvem ou um floco de neve, por muito complexos e maravilhosos que sejam, não revelam qualquer desígnio. Isso também distingue o avião do pássaro. O avião só se “deve parecer” com um pássaro naquilo que nos der jeito. O pássaro, por seu lado, tem as características que servem aos pássaros.

Pássaros, aves e bicharada em geral existem de muitas formas e feitios, espalham-se por qualquer sítio onde possam viver, especializam-se em imensas maneiras de viver, e a função principal da sua vida – aquela que todos têm em comum – é fazer mais bicharada parecida. À parte de alguns seres domesticados, nada se vê entre os seres vivos que revele um propósito inteligente ou o desígnio de um criador. Chilreios, grunhidos, ovos, dentes, bicos, sementes, patas, barbatanas, da bactéria à sequóia e do cogumelo ao lince, as características dos seres vivos são simplesmente aquelas que permitiram aos seus antepassados deixar descendentes. A vida surge e perpetua-se por um processo retrospectivo, sendo hoje o resultado cego daquilo que aconteceu no passado.

O design é o oposto. É prospectivo. Resulta de escolhas inteligentes por parte de seres capazes de antecipar o futuro e prever o que lhes vai dar jeito, seja uma lança para espetar o almoço seja um avião para jantar em Nova Iorque.

Os criacionistas cristãos insistem em provar a intervenção do deus deles (e só daquele, rejeitando milhares de histórias da criação alternativas) pela complexidade da vida, a beleza das penas do pavão ou a forma extraordinária como as mandíbulas do leão servem para abrir melancias*. Mas nada disto é relevante para provar design inteligente. Da próxima vez que o Mats estiver num avião, sugiro que pense nos atributos dessa máquina e imagine quem servem. Porque é que o avião tem assentos e portas, porque voa rápido, transporta pessoas e tem casa de banho em vez de chilrear, comer minhocas e esvoaçar de árvore em árvore à procura de sexo. Talvez o ajude a perceber esta diferença. O que é criado com inteligência revela essa origem mostrando a utilidade que tem para quem o criou. Em contraste, o que resulta da evolução revela essa origem mostrando ter apenas as características que geram seres com características semelhantes.

*Não estou a gozar. Infelizmente...

1- Inovação Tecnológica, Aviões deveriam se parecer com pássaros?
2- Mats, Aviões deveriam se parecer com pássaros? Sim!

sexta-feira, maio 20, 2011

Crise.

Produtividade, PIB, poder de compra, taxas de juros, dívida pública e afins são os problemas mais populares do momento. Mas, de vez em quando, notícias como esta dão um vislumbre daquilo que talvez seja o problema mais fundamental. As prioridades.

Festa do FCP provoca estragos na Feira do Livro

quinta-feira, maio 19, 2011

Paridade do Poder de Compra.

Há dias propus que a “produtividade” de que os economistas falam nem tem o sentido que normalmente damos à palavra nem tem as implicações de valor necessárias para que dela se possa inferir algo normativo. Se uma pessoa é pouco produtiva, no sentido comum do termo, podemos concluir que trabalha mal e devia trabalhar melhor. Mas se o termo é tal que considera apenas o valor monetário e descura tudo o resto será preciso mais do que essa “produtividade” para justificar qualquer medida social ou política (1). A Priscila Rêgo escreveu que «Azar dos azares, não concordo com quase nada»(2), mas parece-me que descurou o ponto mais importante para focar o IVA (que deixo para outra ocasião) e a paridade do poder de compra (PPC).

Eu mencionei que a produtividade, na economia, considera que quem serve bicas onde as bicas são mais caras é automaticamente mais produtivo. A Priscila corrigiu-me apontando que esses cálculos são ajustados pela PPC e que esse problema «não figura no rol» dos problemas deste conceito. Agradeço a explicação, que me motivou a aprender um pouco sobre isto, e até lhe dou alguma razão. No entanto, o problema persiste porque a própria medida da PPC tem problemas fundamentais. Principalmente quando comparamos países que usam o euro.

A PPC assenta na premissa de que o mercado é livre, não há custos de transporte ou barreiras à concorrência, e, por isso, os bens transaccionáveis têm um preço único no mercado. Seja em dólares, euros, patacas ou rupias, pode-se encontrar uma taxa real de câmbio que converta todas estas moedas no mesmo preço real. Por exemplo, no preço de um Big Mac (3) ou na média de um cabaz de produtos (4). Isto não precisa ser válido para cada produto individualmente, desde que seja válido em média. Se, em média, as mesmas coisas custam duas chalapas na Chalapândia mas só uma biloga na Bilogónia, assumindo a premissa enunciada acima concluímos que uma biloga vale duas chalapas. Se medirmos a produtividade relativa nestes países fazemos este ajuste pela PPC.

Mas imaginemos que o que se produz em São Brás da Murrunhanha tem um preço inferior aos produtos equivalentes em Lisboa. As couves da D. Hermínia, o pão do Sr Zé, e assim por diante, são a metade do preço. Se fizermos as contas com esse valor – o valor nominal – a produtividade destas pessoas será metade da dos lisboetas, só pela diferença de preço. É o tal erro que a Priscila disse não constar do rol. Só que também não faz sentido assumir que o pão do Sr. Zé e as couves da D. Hermínia estão em equilíbrio de preço com o pão e as couves de Lisboa, que não há barreiras nem custos de transporte e que as diferenças são apenas porque o euro vale o dobro em São Brás da Murrunhanha. O que se passa é precisamente o contrário. Por haver custos de transporte e mais dificuldade no acesso ao mercado, o preço do que produz a D. Hermínia e o Sr. Zé é mesmo mais baixo. Como se torna evidente quando a D. Hermínia quiser comprar um tractor novo ou o Sr. Zé precisar que lhe arranjem a máquina de misturar a massa. Ninguém lhes vai trocar cada euro da Murrunhanha por dois euros de Lisboa.

Portugal é a Murrunhanha da Europa. Tem enchidos, ar puro e praias mas está longe de tudo e tem um mercado interno minúsculo. Os economistas podem fazer de conta que não há custos de transporte nem outras barreiras ao comércio e fingir que o euro em Portugal vale €1,2 enquanto o euro alemão só vale €0,96 (5). Mas estes números são apenas médias de preços, alguns aproximadamente em equilíbrio e outros longe disso. E, como usamos a mesma moeda, aqueles que estão em equilíbrio têm o mesmo preço nominal. Os nossos euros não valem mais quando queremos comprar um Nokia ou um BMW. O que se passa é que, como o que produzimos tem um preço mais baixo para os outros, acaba por ter também um preço mais baixo por cá. Só que isto é só para o que produzimos. O poder de compra que ganhamos no pastel de nata, por não o conseguirmos exportar, não compensa o que que perdemos no automóvel por o que se produz cá valer menos.

No entanto, esta nem é a questão mais importante. Podemos discutir se, quando dois países usam a mesma moeda, faz sentido assumir as premissas da PPC ou se é melhor usar os valores nominais para comparar a produtividade. Parece-me haver méritos e defeitos em ambas as abordagens e, desde que fique claro que descritor se está a calcular, tanto me faz qual usem. O importante é perceber que estes descritores não têm valor normativo. Quer se use preços nominais ou se ajuste pela PPC calculada com um cabaz de produtos ou pelo Big Mac, esse indicador não justifica sacrifícios nem medidas de austeridade. Basta pensar como seria aumentar a idade da reforma nas aldeias, reduzir os salários nos meios rurais e aumentar o IVA no interior do país com a justificação que era para as pessoas de lá serem mais “produtivas”. Além de imoral, é absurdo tomar medidas económicas coercivas para obrigar as pessoas a “produzir” mais quando o problema dessa “produtividade” depende mais de outros factores do que da vontade dessas pessoas.

1- Produtividade
2- Priscila Rêgo, no “A douta ignorância”, Re: Produtividade. Obrigado ao João Vasco pela referência.
3- Economist, The Bug Mac index
4- Wikipedia, Market Basket
5- OECD.StatExtracts, Table 2.2: Purchasing power parities in national currencies per euro

Editado para corrigir as patacas, menos pacatas do que inicialmente. Obrigado ao one hundred trillion dollars pela dica.

segunda-feira, maio 16, 2011

Treta da semana (passada): como se faz leis, parte 2.

No passado dia 2, na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), a ministra da cultura apresentou a nova proposta de lei para a cópia privada (2). Um ponto polémico, que chegou até ao Boing Boing, foi o autor não poder renunciar à compensação pela cópia privada, levantando a questão de se tornar ilegal as licenças Creative Commons (1). A interpretação da CC Portugal é de que a lei é compatível com as licenças CC 3.0 (2) mas, para mim, a necessidade de interpretação é um problema grave. Quando a lei não é explícita, a interpretação dos tribunais tende a favorecer a parte que tem mais dinheiro para advogados em vez da que tem a posição mais legítima, o que é vantajoso para a SPA, FEVIP, AGECOP, APEL e afins, todas representadas na elaboração da proposta (3). É mais uma indicação de como se faz estas leis.

A proposta diz conciliar dois direitos, «o interesse patrimonial do autor» e «a obtenção de cópias de obras protegidas para seu uso privado.»(3) O fraseado é enganador porque omite uma distinção importante. A cópia privada é um direito negativo. O direito de copiar é como o direito de coçar o nariz; não é o direito de que mo cocem, apenas de que mo deixem coçar. Em contraste, a «razoável e justa compensação pelos danos sofridos pela prática social da cópia privada» é uma treta. Não há justiça nenhuma em obrigar toda a gente a compensar um autor pela sua decisão livre e voluntária de criar e publicar uma obra. Se queria compensação, tivesse negociado antes com quem lhe quisesse pagar. E ninguém sofre danos pela cópia privada. O máximo que pode acontecer é vender menos, mas é absurdo invocar um direito à venda, cuja violação tenha de ser compensada, porque ninguém tem obrigação de comprar.

Faz sentido subsidiar os autores, mas não desta forma. O imposto devia ser cobrado dos rendimentos em vez de agravar os obstáculos económicos ao acesso à cultura, isso sim uma violação de direitos fundamentais. E devia incentivar a criatividade, apoiando a formação e projectos dos autores em vez de apenas recompensar o que já foi feito. Esta lei equivale a pagar aos atletas pelas medalhas que conquistaram quando eram novos em vez de lhes financiar os treinos. Para perceber porque se criam leis tão más é preciso compreender o seu propósito. Há vários indicadores que apontam o caminho.

Primeiro, a definição de autor e criatividade. O CDADC exclui, logo à partida, «as ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas»(4), enquanto a lei proposta pelo PS «não se aplica aos programas de computador nem às bases de dados constituídas por meios electrónicos» e estipula que a cobrança e distribuição do dinheiro está sujeita a «gestão colectiva obrigatória». Ou seja, um autor, trocando por miúdos, é alguém que cria uma obra que possa dar lucro às editoras – vídeo, música ou livro – e que pertence à SPA ou afins. O resto não interessa.

Depois, a proposta de que o direito à “compensação” seja «irrenunciável e inalienável». A justificação alegada é que isto protege os autores e artistas nos contractos que celebram. É treta. Se os quisessem proteger, acabariam com o sistema vigente de “direitos” de autor que permite às editoras, efectivamente, contratar autores e artistas sem qualquer ordenado, pagando-lhes apenas com a promessa de eventuais lucros. Nenhum outro profissional tem tão pouca protecção legal. E, na prática, este direito não é irrenunciável porque só recebe dinheiro quem pertencer à SPA. Eu, por exemplo, nunca receberei um cêntimo pela cópia privada dos slides e gravações das aulas, das apresentações que faço, dos artigos que publico ou dos posts que escrevo aqui no blog. Esta lei apenas protege o monopólio de cobrança da SPA.

Finalmente, o alargamento do âmbito destas taxas aos suportes digitais, supostamente para «acompanhar a realidade e as incessantes inovações do mercado tecnológico», é inconsistente com os dois aspectos mais importantes desta tecnologia: a sua rápida evolução e a possibilidade de copiar conteúdos à distância. Esta lei não reconhece a capacidade tecnológica de cidadãos privados copiarem ficheiros pela Internet. Estende a taxa da cópia privada ao suporte digital sem alterar a treta dos “downloads ilegais”, ficando assim a cópia digital a ser taxada mas, ao mesmo tempo, efectivamente proibida. E a taxa a pagar «é determinada em função da capacidade de armazenamento dos equipamentos». Por exemplo, um disco rígido é taxado a 2 cêntimos por gigabyte. Nos últimos quinze anos a proporção entre capacidade e preço aumentou cerca de dez mil vezes. O meu primeiro disco rígido tinha 105MB e custou mais do que um disco de 1 TB custa hoje. Mas esta gente quer «acompanhar a realidade e as incessantes inovações do mercado tecnológico» cobrando cada vez mais conforme a capacidade aumenta. Se este progresso continuar, daqui a quinze anos vão cobrar vinte mil euros de taxa por um disco rígido que custa cinquenta.

Esta lei não concilia direitos legítimos. A cópia privada não causa danos que devam ser compensados, pois nem o autor é obrigado a publicar nem os cidadãos têm a obrigação de comprar. Nem incentiva a criatividade de forma justa ou eficaz. É um imposto regressivo que dificulta o acesso à cultura, presume que os suportes digitais servirão principalmente para copiar obras de autores portugueses (uma premissa pouco realista) e canaliza o dinheiro para sociedades de cobrança em vez de apoiar novos autores. Leis como esta apenas servem os interesses das editoras, tornando mais barato o trabalho dos artistas, e das sociedades de cobrança como a SPA. O que não é de admirar, pois são estes grupos que as inventam.

1- Mind Booster Noori, PC Manias, Boing Boing.
2- Proposta de Lei da Cópia Privada NÃO ilegaliza licenças CC, via Kluwer Copyright Blog
3- Texto integral da proposta disponível no FU-BAR, Proposta (do PS) de Lei da Cópia Privada Rui Seabra
4- CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS

Editado às 22:37 para corrigir o preço relativo do meu primeiro disco. Obrigado ao ardoRic pela dica.

domingo, maio 15, 2011

Produtividade.

Uma grande virtude da economia, enquanto ciência, é ter conceitos rigorosos e quantificáveis. Um grande defeito da economia, enquanto política, é dar a esses conceitos o mesmo nome que, na linguagem comum, damos a conceitos diferentes. Um exemplo disto é a “produtividade”.

Tem-se falado muito da baixa produtividade dos trabalhadores portugueses, que é cerca de metade da produtividade dos alemães. Isto é evidente em gráficos e tabelas, com rigor matemático: a produtividade média dos portugueses é de 30,8 dólares por hora de trabalho e a dos alemães é de $53,1 (1). Daqui vem a mensagem política de que não podemos viver com as mesmas regalias. Mais do que isso, não temos sequer o direito moral de as exigir, pois só produzimos metade. Temos todos de arcar com o fardo destas dívidas e crises porque a culpa é nossa por não produzirmos.

O problema é que estas duas “produtividades” são muito diferentes. A produtividade na economia é simplesmente a diferença entre o preço de venda daquilo que o trabalhador gerou e o preço ao qual se comprou aquilo de que ele precisou para o trabalho. Na linguagem comum, a produtividade é um conceito muito menos preciso porque sugere uma utilidade para o que é gerado e não apenas um preço. Por exemplo, se em dez horas de trabalho um agricultor produz legumes que valem mais 50€ do que lhe custou o gasóleo, adubo e rega, o economista dirá que este trabalhador tem uma produtividade horária de 5€, e que é vinte vezes menos produtivo do que o astrólogo que, em meia hora, ganhe 50€ por uma consulta. Em contraste, quem não for economista dificilmente defenderá que a astrologia é uma actividade mais produtiva do que a agricultura, precisamente porque a noção comum de produtividade não se limita ao preço. E sem essa exigência adicional não se pode inferir da produtividade nada acerca do mérito ou do sacrifício a exigir. Por exemplo, ninguém iria aceitar ser necessário facilitar o despedimento e reduzir os salários dos agricultores por não serem tão produtivos quanto os astrólogos.

Outro problema do preço como única medida da produtividade é desligar esta última daquilo que o trabalhador faz, ao contrário do que sugere o sentido mais comum do termo. O mesmo empregado de mesa a servir o mesmo número de pratos com a mesma qualidade dará um rendimento monetário muito mais baixo numa aldeia do interior do que daria na baixa de Lisboa. Como a Europa adoptou uma moeda comum sem distribuir o dinheiro equitativamente por todas as regiões, o mesmo efeito ocorre entre países pela diferença no volume das economias locais. O mesmo trabalho, com a mesma qualidade, feito onde há mais dinheiro é muito mais produtivo, no sentido económico, do que se for feito onde há menos dinheiro porque, ainda que produza o mesmo, vende-se mais caro.

Outra consequência da definição económica é a relação entre a produtividade e o crescimento económico. A ideia que os políticos nos passam é a de haver uma relação causal, o que é intuitivo para a produtividade que usamos na linguagem comum. Se criarmos mais coisas úteis ficamos a viver melhor por causa disso. Mas esta ideia não faz sentido na definição económica de produtividade. Se a produtividade é calculada, por exemplo, dividindo o PIB pelas horas de trabalho, dizer que a economia cresce porque a produtividade aumenta é como dizer que eu estou mais gordo porque o meu peso aumentou. É uma explicação ilusória porque não exprime uma relação causal. É apenas uma tautologia, assim por definição.

O que me traz, finalmente, à história que a nossa troika PS-PSD-CDS conta acerca das medidas da outra. Os nossos políticos alegam que as medidas visam aumentar a produtividade diminuindo salários, aumentando os impostos de forma regressiva (impostos “ao consumo”, para punir quem, por exemplo, usa electricidade) e diminuindo as contribuições sociais das empresas. Ou seja, reduzindo o poder de compra da maioria da população e encolhendo o PIB. O plano dos políticos parece ser aumentar a fracção PIB/horas de trabalho reduzindo o numerador.

Infelizmente, muita gente parece acreditar nesta história e julga que a outra troika vem cá arrumar-nos a casa, pôr isto nos eixos, obrigar o pessoal a trabalhar como deve ser e a economia a crescer. Mas o objectivo dos economistas da troika FMI-UE-BCE é, como é regra em economia, muito mais concreto e quantitativo. O que eles querem é simplesmente garantir os 6% de juros do dinheiro que nos vão emprestar. O que fará do seu trabalho um dos mais produtivos da Europa, no sentido económico do termo.

1- OECD.org, Labour productivity levels in the total economy

sábado, maio 14, 2011

Fantochada perigosa, take 2.

O post sobre a moral segundo Craig gerou as confusões do costume, que penso já serem um pouco forçadas. Apesar de eu ter escrito explicitamente que «Não quer dizer que a moral de todos os religiosos seja má. Felizmente, muitos religiosos são pessoas decentes e com discernimento suficiente filtrar o que lhes tentam impingir as religião que lhes calham.»(1), vários comentadores me acusaram de estar a generalizar do Craig para todos os crentes.

O problema que apontei é diferente. Da premissa de que o bem moral se define pela vontade de um deus seguem duas consequências inevitáveis. Uma é que quem assume tal coisa fica, como o Craig, incapacitado de rejeitar como imoral seja o que for que esse deus faça. Até o genocídio tem de ser louvado como moralmente bom. A outra, relacionada, é que deixa de fazer sentido dizer que esse deus é bom, porque a bondade desse deus torna-se uma tautologia vazia, como ilustra o Bernardo Motta:

«A moral de Deus é boa porque Deus é bom. Deus é o sumo Bem, e o garante da moralidade (boa ou má), pois estabelece, pela sua essência boa, o que é normativo.»(1)

Este raciocínio circular deixa por justificar porque é que se considera bom esse deus. Se o deus do Bernardo for bom por algum mérito que tenha, no sentido que normalmente damos a estes termos, então tem de haver algum critério independente pelo qual o possamos julgar. Por outro lado, se é bom só por definição, então não conta para nada. Se eu definir “Bem” como querendo dizer “tudo o que eu faço”, apenas estou a deturpar o significado da palavra. Não estou a criar fundamento para moral nenhuma.

O António Fernando disse discordar de que assentar a moral num deus é uma fantochada perigosa. No entanto, justificou a sua oposição exprimindo, por outras palavras, o mesmo que eu defendo: «Todo o crente que se demitir de aferir o valor ético de qualquer norma contida na Bíblia, aceitando-a ou recusando-a, através do crivo último da sua consciência, não é crente mas um alucinado;»(2) Precisamente. Se delegamos o fundamento da moral num deus deixamos de ter uma moral de verdade. Passa a ser um fantoche. E que isto é perigoso é perfeitamente evidente na história, e no presente, de todas as religiões.

O Alfredo Dinis aponta, talvez inadvertidamente, a causa principal deste perigo: «Acredito que muitas pessoas confiam em Deus». Provavelmente, essas muitas pessoas acreditam que confiam num deus. No entanto, o que se passa é que só confiam no que outros lhes contam acerca do tal deus, um deus que ninguém vê, ouve ou cheira. Dizem-lhes que nasceu de uma virgem, que falou a Maomé, que exige isto ou aquilo, que quer que os homens casem com várias mulheres, que não se pode trabalhar ao sábado e mais o que lhes passar pela ideia. Olhando para a panóplia de normas e regulamentos religiosos, o que sobressai com regularidade é apenas que foram inventados por homens – mamíferos bípedes do sexo masculino – sem contributo sequer de membros do outro sexo, quanto mais de deuses. E o Alfredo desvia-se também do problema ao apontar que «há muitas pessoas que condenam as posições dos cristãos com demasiada rapidez e superficialidade». Até pode haver, mas eu não condeno “as posições dos cristãos”, que são muitas e diversas, só por serem dos cristãos. Umas são boas, outras são más e outras nem isso. O que critico é a ideia de que a moral vem de um deus ou de uma religião. Porque se derivamos a nossa moral de uma religião deixamos de poder avaliar a moralidade daquilo que essa religião recomenda. Passa a ser como o deus do Bernardo: bom porque é bom. E isso nem é moral nem é sensato. É uma fantochada perigosa.

1- Treta da semana (passada): a bem das criancinhas.
2- Mesmo post, mas no Diário Ateísta

domingo, maio 08, 2011

Treta da semana: como se faz leis, parte 1.

Como ando sem tempo, vou partir esta em duas partes. Os detalhes são diferentes mas o tema central é o mesmo. Cada vez mais me parece que as leis são fruto dos lobbies em vez das necessidades reais da sociedade. Talvez as leis boas já estejam todas feitas, e agora só se possa progredir eliminando as más e evitando asneiras como esta.

Nos EUA era prática corrente os pediatras perguntarem aos pais acerca de possíveis perigos para as crianças, para melhor os aconselhar acerca da prevenção de acidentes com piscinas, no automóvel, a andar de bicicleta ou patins e assim por diante. E, sendo os EUA como são, perguntavam também se os pais tinham armas em casa, aconselhando que as guardassem em locais seguros, separadas da munição e longe do alcance das crianças.

Agora, sob pressão da National Rifle Association of America, alguns estados estão a proibir os pediatras de perguntar se os pais têm armas em casa. A alegação é que levam as «crianças ao pediatra para cuidados médicos, não para juízos morais nem para intromissões na vida privada»(1). A lei aprovada recentemente na Florida só permite aos pediatras fazer perguntas sobre armas de fogo se isso tiver uma relação directa e clara com o estado de saúde da criança – por exemplo, se a criança revelar tendências suicidas – mas não se for para acautelar os pais acerca dos perigos. Num país onde morre uma centena de crianças por ano em acidentes com armas de fogo (2), é difícil encontrar uma utilidade social em proibir os pediatras de mencionar este perigo. A única utilidade que me ocorre é a cada vez mais comum e preocupante utilidade comercial para alguns grupos influentes.

Mais sobre isso para a semana que vem.

1- NPR, Florida Bill Could Muzzle Doctors On Gun Safety. Via Boing Boinb
2- Wikipedia, Gun violence in the US

sábado, maio 07, 2011

Treta da semana (passada): a bem das criancinhas.

William Lane Craig é um famoso apologista cristão. Um dos argumentos a que mais recorre para provar que o deus dele existe – e que engravidou Maria, morreu na cruz e essas coisas todas, por arrasto – é que existem deveres e valores morais objectivos, e que essa tal coisa dos deveres objectivos só pode existir porque o deus dele existe. A apologética justifica esta alegação pela premissa de não poderem existir deveres morais objectivos na natureza, premissa com a qual até concordo para certas definições de “deveres morais objectivos”. Mas deixa por explicar como é que esse tal deus cria deveres morais que sejam realmente objectivos. Este é um problema bicudo, como ilustra um artigo de Craig no Reasonable Faith.

Alguns leitores pediram-lhe para justificar a moralidade do genocídio que Deus mandou cometer contra os povos da terra prometida, ordenando aos Judeus que matassem todos os homens, mulheres e crianças (Deut. 7:1-2; 20:16-18). Craig é evangélico, por isso leva a Bíblia mais à letra do que os católicos. Mas mesmo interpretando esta chacina como uma metáfora, ela não abona nada em favor do deus que a ordenou. A mensagem é clara, e nada compatível com o que consideramos ser benevolente. Uma justificação de Craig para este comando divino é que

«De acordo com a versão do mandamento divino ético que eu defendo, nossas obrigações morais são constituídas pelos mandamentos de um santo e amoroso Deus. Uma vez que Deus não emite ordens a si mesmo, Ele não tem obrigações morais para cumprir. Ele certamente não esta sujeito às mesmas obrigações e proibições a que nós estamos. Por exemplo, eu não tenho nenhum direito de tirar a vida de um inocente. Para mim, fazer isto me tornaria um assassino. Mas Deus não tem tal proibição. Ele pode dar e tirar a vida como Ele decidir.»(1)

Isto demonstra bem a inconsistência dos tais “deveres objectivos” que estes religiosos defendem, um problema já conhecido desde Platão, pelo menos. Se houvesse mesmo um fundamento objectivo para a moral, então até Deus seria julgado à luz desses preceitos, sendo bom ou mau conforme agisse de acordo ou contra o que fosse o seu dever objectivo. Mas, nesse caso, não seria preciso Deus para haver moral. Mesmo sem deuses já haveria um fundamento para os valores e deveres morais. Para que o seu deus não seja supérfluo, apologistas como Craig defendem que a moral tem de vir dos mandamentos divinos. Mas, nesse caso, a moral é um capricho arbitrário desse deus, e deixa de fazer sentido classificar Deus de bom se o bem for tudo o que lhe der na divina gana. Isto é o contrário de um fundamento objectivo para a moral.

A outra justificação é, na prática, ainda mais perigosa:

«Além do mais, se nós acreditarmos, como eu acredito, que a graça de Deus é estendida para aqueles que morreram na infância ou como pequenas crianças, a morte destas crianças era verdadeiramente sua salvação. Nós somos tão apegados à perspectiva naturalista terrena, que nós esquecemos que aqueles que morrem estão felizes por deixar esta terra pela alegria incomparável do paraíso. Então, Deus não faz nada errado ao tomar suas vidas.»

Além de reduzir a ética ao capricho de um ser imaginário, estas religiões alegam o que lhes der jeito acerca dos factos para justificarem os seus preconceitos. Se alguém matar uma criança é um assassino porque é pecado matar crianças. Tal como pode ser pecado sair à rua sem autorização do marido, cortar as patilhas ou usar preservativo. Como não há forma de testar a alegação de que algo é pecado, cada religião pode escolher a lista de pecados que mais lhe convir. Por outro lado, se é por mandamento divino que alguém mata crianças, sejam cananitas ou outras vítimas de terrorismo religioso, então pode-se inventar que essas crianças vão para o paraíso e que o homicida, afinal, é um herói que lhes salvou a alma. Almas, paraísos e mandamentos divinos são outra área de especulação fácil dada a impossibilidade de testar o que se alega.

É por estes aspectos que a moral religiosa é uma fantochada perigosa. Não quer dizer que a moral de todos os religiosos seja má. Felizmente, muitos religiosos são pessoas decentes e com discernimento suficiente filtrar o que lhes tentam impingir as religião que lhes calham. Mas estes princípios de que vale tudo o que Deus mandar e que é legítimo alegar factos impossíveis de conhecer são o contrário da ética. Em vez de ter um fundamento sólido para as regras morais, a moral passa a reflectir apenas os caprichos e conveniências daqueles que se dizem representantes dos deuses. Precisamente o que se vê nos meandros da religião profissional.

1- Tradução no blog Fé Racional do artigo de Craig no Reasonable Faith. Obrigado a quem me enviou, em privado, a ligação para a crítica no AlterNet.

quinta-feira, maio 05, 2011

You shall not pass.

Quando se fala em demónios, muita gente imagina o Balrog de Moria ou Sachiel a destruir Tokyo-3. A realidade é bem diferente, como se pode ver neste documentário do Mats. Afinal, parece que um demónio é apenas uma treta que faz as pessoas deitarem-se ao chão a dizer disparates. Não é preciso um Gandalf ou Eva para o derrotar; basta partir as garrafas enfeitiçadas que alguém trouxe do Brasil.

Louvado seja o Senhor, e mais o poder da Fé, que livra os homens destes males. Se for uma infecção ou uma perna partida tem de ser mesmo com medicamentos e gesso mas, para males fictícios, não há melhor do que uma intervenção divina.

segunda-feira, maio 02, 2011

Evolução: selecção para o mesmo.

David Tyler é um “perito” criacionista que acredita que a Terra só tem seis mil anos e que tudo na Bíblia é literalmente verdade. Num post recente, propõe que um fóssil de grilo com cem milhões de anos prova que a teoria da evolução não serve para nada. O argumento é o costume, parte aldrabice e o resto ignorância. Cita o Economist, «o insecto ilustra a “primeira regra da selecção natural”: “se funciona, não lhe mexas”», para dizer que «O problema com a teoria da evolução hoje é que não aprende nada de significativo com estes exemplos de permanência. “Se funciona, não lhe mexas” parece esgotar os seus poderes mentais»(1). É como se o Economist fosse a maior autoridade da biologia moderna. E ignora que o fóssil nem sequer é de grilo, mas de uma família próxima dos grilos, que não é idêntico aos insectos modernos dessa família, se bem que seja parecido, e que, de qualquer maneira, um fóssil apenas nos dá a forma do organismo. Não revela os genes, comportamento, fisiologia e uma data de outras coisas que podem ter mudado bastante.

Mas o que me interessa aqui é a alegação de que os biólogos não aprendem nada com isto e que «A teoria da evolução ganha sempre: se os animais permanecem na mesma, então estão adaptados ao ambiente e o ambiente não mudou. Se os animais mudam, então a selecção natural está a operar, agindo sobre variações naturais.» Na verdade, uma característica manter-se durante cem milhões de anos é evidência de selecção natural, porque só eliminando as mutações que vão surgindo é que essa característica pode resistir ao passar das gerações. São as mudanças que podem ser por acção da selecção natural ou pela acumulação aleatória de mutações neutras. E não é verdade que a teoria da evolução “ganhe sempre” no sentido de não gerar hipóteses testáveis. Estas hipóteses podem ser testadas pela análise estatística dos genes.

Um gene, no sentido molecular, é um trecho de uma molécula de ADN que determina a síntese de uma proteína. Como estas reacções são de tal forma que várias variantes do ADN podem resultar na mesma proteína, é possível que uma mutação no ADN não altere a proteína produzida. Por isso, parte das mutações são silenciosas, sem efeitos significativos. Podemos assim calcular, para um conjunto de genes homólogos em diferentes organismos, a proporção esperada entre diferenças com impacto nas proteínas e diferenças silenciosas, assumindo que todas as diferenças entre genes se devem à acumulação aleatória de mutações. E podemos comparar esta estimativa, segundo a hipótese nula de evolução neutra, com a proporção que observamos.

Se as diferenças silenciosas forem em número superior ao esperado, isto quer dizer que houve uma pressão selectiva para eliminar mutações que alterassem essas proteínas. As mutações ocorrem ao acaso, mas se têm um impacto negativo na capacidade reprodutora do organismo, tendem a não ser propagadas à geração seguinte. Uma proporção pequena entre diferenças genéticas com impacto nas proteínas e diferenças silenciosas (2) indica uma selecção estabilizadora, a tal pressão que mantém a característica ao longo das gerações por eliminar os organismos que manifestem diferenças nesse atributo.

Se as diferenças silenciosas forem em número menor do que o esperado, então temos evidência de uma pressão selectiva para alterar aquela característica. As mutações, como sempre, surgem aleatoriamente. No entanto, se mutações que alterem uma característica conferirem vantagens reprodutivas, irão propagar-se às gerações seguintes com maior probabilidade do que mutações neutras como as mutações silenciosas. Assim, quando, muitas gerações mais tarde, contarmos as diferenças genéticas entre os descendentes que sobreviveram veremos uma proporção de diferenças não silenciosas acima do esperado.

A terceira possibilidade é mais complexa. Se a proporção entre diferenças silenciosas e não silenciosas estiver dentro do intervalo esperado de uma acumulação aleatória de mutações neutras, isto tanto pode ser porque essa linhagem de genes não esteve sujeita a pressões selectivas – como acontece quando se trata de uma característica irrelevante para a reprodução desses organismos – ou pode ser porque diferentes partes do gene estão sujeitas a diferentes tipos de pressão selectiva. Mas, mesmo assim, é teoricamente possível distinguir estes casos analisando cada posição do gene individualmente (se bem que, na prática, isto pode exigir um conjunto muito grande de dados).

O ponto principal deste post é que, se querem criticar a teoria da evolução, têm de ir mais longe do que uma notícia no Economist(3). A teoria em si não é igual às versões populares apresentadas, de passagem, só para apontar uma curiosidade como um fóssil de grilo. A alegação do David Tyler, de que a teoria da evolução não aprende nada com estas coisas, é apenas indicativa de que o David Tyler não aprendeu nada acerca destas coisas.

1- David Tyler, A modern cricket fossilised in the Lower Cretaceous
2- Wikipedia, Ka/Ks
3- Para um exemplo escolhido totalmente ao acaso ;) podem ver Milheiriço et. al., Evidence for a purifying selection acting on the beta-lactamase locus in epidemic clones of methicillin-resistant Staphylococcus aureus.