domingo, janeiro 31, 2010

Treta da semana: iPad

A Apple lançou esta semana o iPad, que é basicamente um iPhone gigante. Como era de esperar da Apple, é imensamente cool e integra-se sem falhas com as outras iCoisas todas. É um ecrã táctil com pouco mais de um centímetro de espessura, 25 cm de diagonal e menos de um quilo de peso. Gostava ter um computador assim, se não fosse a aldrabice.

O iPad é um computador amputado. Apregoam-no como um meio excelente para navegar na Net mas, por causa da guerra entre a Apple e a Adobe, não é compatível com Flash. Mesmo não gostando de Flash parece-me que um browser sem Flash é uma treta. Não tem interface USB. No iPhone ainda havia a desculpa de ser um telefone, muito pequenino e assim. Mas o iPad tem o tamanho de uma revista. Cabia lá perfeitamente um buraquito ligar um pendisk, disco externo ou impressora. Não tem leitor para cartões de memória nem permite usar a rede para copiar ficheiros de outro computador. É como o iPhone. Para pôr algo no iPad ou no iPhone é preciso ir pelo iTunes e dá vontade de dizer iCaramba, que raio de coisa.

Mas a maior treta não é culpa da Apple. Isto funciona. Vendem hardware aleijadinho, prendem os clientes ás lojas da Apple e ganham imenso dinheiro. Espertos. A maior treta é que tanta gente aceita estas coisas. Não só da Apple. Os leitores de DVDs são fabricados para funcionar com discos de qualquer região mas, quando são vendidos, configuram-nos para só funcionar com os discos dessa região. Quem tem o Kindle aluga livros à Amazon convencido que os comprou e os telemóveis são quase todos vendidos presos a uma operadora.

É perigosa esta ideia de que o fabricante pode ditar como usamos o que é supostamente nosso. Não pela imposição de obstáculos técnicos, porque se os consumidores estiverem atentos e o mercado for competitivo esse problema resolve-se sozinho. Mas pela aceitação de obstáculos legais. O Artigo 218º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos estipula que «Quem, não estando autorizado, neutralizar qualquer medida eficaz de carácter tecnológico, sabendo isso ou tendo motivos razoáveis para o saber, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 100 dias.» Isto mesmo quando a neutralização é necessária para usufruir de um direito concedido pela lei, como fazer cópias de segurança dos jogos que se comprou ou para ver um DVD comprado no estrangeiro.

O sucesso comercial destas coutadas, dos telemóveis ao Kindle e iPhone, não é a causa do problema, mesmo que ajude a perpetuar o mal. O pior parece-me ser o desconhecimento das potencialidades desses aparelhos. Todos sabem que um livro tanto dá para ler no campo como na praia. Ninguém ia acreditar que o tabuleiro de Xadrez que comprou é incompatível com as Damas. Mas se o leitor de DVDs não dá para ver o filme comprado em Macau ou se o iPad só corre programas comprados no iTunes encolhem os ombros e pensam que tem de ser mesmo assim. Mas não tem. É aldrabice.

Links:
Guardian, Apple iPad: what it doesn't have, via o Friend Feed da Paula Simões.
Apple, iPad

Editado a 1-2-10 para corrigir um "cavia". Obrigado ao Mats pelo aviso.

sábado, janeiro 30, 2010

Ciência e outras coisas.

Até ao século XIX a biologia era filatelia com bicharada em vez de selos. Coleccionava factos. Mas depois começou a encontrar explicações e, no século XX, a síntese da genética de populações, biologia molecular e evolução tornou-a numa disciplina madura. Além dos factos, tem modelos que os explicam e teorias que unificam e geram esses modelos. Vou ilustrar com um exemplo.

Muitas espécies da ordem Hymenoptera, que inclui vespas, abelhas e formigas, tendem a formar colónias com muitos indivíduos e compostas principalmente por fêmeas estéreis. Nesta ordem de insectos as fêmeas são diploides. Têm duas cópias de cada cromossoma, uma herdada do pai e outra da mãe, tal como nós. Mas os machos são haploides. Nascem de óvulos não fertilizados e têm apenas um cromossoma de cada par, herdado da mãe.

Um modelo da evolução destas espécies explica estes dados. Um gene de uma fêmea tem 50% de probabilidade de estar em cada um dos seus descendentes, seja macho ou fêmea, pois todos herdam metade do complemento genético da mãe. Mas como o macho só tem um cromossoma de cada par, duas irmãs têm em comum todos os genes do pai e 50% dos genes da mãe. Por isso duas irmãs têm 75% dos genes em comum, mais que teriam com os seus filhos ou filhas. Assim, genes que aumentem a propensão para criar irmãs propagam-se mesmo à custa da capacidade reprodutora da maioria dos indivíduos. Este modelo permite inferir a correlação observada entre a propensão para formar este tipo de colónias e estas particularidades genéticas. E vai mais longe. Quantifica as pressões selectivas e prevê detalhes como os conflitos entre a rainha, que põe ovos de machos e fêmeas, e as obreiras, que seleccionam quais os ovos se desenvolvem e quais as fêmeas vão ser obreiras estéreis ou potenciais rainhas (1).

Por sua vez, modelos como este enquadram-se em teorias, que são esquemas mais genéricos definindo conceitos e relações mas cujo poder explicativo depende de serem instanciados em casos particulares. Como as teorias de selecção por parentesco, evolução por selecção natural, deriva genética, probabilidades e assim por diante. Esta divisão entre facto, modelo e teoria não é absoluta nem precisa. O peso de um objecto pode ser visto como um dado observado ou como algo que se infere de um modelo da balança. Mas mesmo assim é útil distinguir entre os dados, que pedem explicação, o modelo que explica um conjunto particular de dados e a teoria que é uma descrição genérica dos modelos possíveis. Observamos a posição dos planetas, explicamos o seu progresso com um modelo do sistema solar, com aquelas massas, velocidades e distâncias, e esse modelo é um caso particular da teoria da relatividade.

Esta distinção permite organizar a procura por conhecimento de uma forma mais útil que a divisão tradicional em arte, religião, ciências humanas e ciências exactas. No zero estão coisas como astrologia, teologia, criacionismo e medicinas alternativas, que nem sequer factos têm. A transubstanciação da hóstia, o dilúvio de Noé e o efeito de Júpiter no meu sucesso profissional são mera especulação, não são dados que suscitem explicação. Chamem-lhe arte, ciência ou fé, empilhar fantasias em cima de ficção não adianta de nada. Neste tipo de coisa não é possível criar modelos explicativos ou teorias que os unifiquem.

Em áreas como a psicologia, história e neurologia muito está como a biologia há dois séculos. Têm factos interessantes para explicar mas ainda poucos modelos que os expliquem. Além disso, estes modelos tendem a ser vagos, subjectivos e disjuntos, sem um esquema geral que os unifique. Noutras, como a arte e política, os modelos estão implícitos naquilo a que chamamos experiência, intuição ou “jeito”. Um bom pintor não pinta quadros bonitos só por sorte. Tem um modelo fiável para prever as melhores combinações de formas e cores. Mas esse modelo está implícito no seu cérebro e o pintor não o consegue exprimir explicitamente num manual que me ensine a ser um pintor competente.

A filosofia tem modelos explícitos mas ainda demasiado vagos para se testar. E conforme se tornam mais concretos a filosofia torna-se ciência. Foi o que aconteceu com problemas como a constituição da matéria, a gravidade ou as causas das doenças. Quase tudo o que é ciência agora já foi filosofia antes. Mas por “ciência” não quero dizer aquilo que se opõe às humanidades. Essa distinção é pouco útil. A química e a física têm dados, modelos e teorias, mas partes da linguística, da arqueologia e da psiquiatria também os têm.

Seja na física ou na linguística, o conhecimento científico é sólido porque inclui factos, explicações e teorias que unificam as explicações. Isto faz esbater divisões arbitrárias como entre orgânico e inorgânico, biologia e bioquímica ou ciências e humanidades. Em vez da divisão por temas ou premissas, proponho uma escala que vai das tretas inventadas sem factos, passa pelas colecções de dados com explicações vagas ou modelos implícitos e chega aos factos explicados em detalhe pela instanciação de regras universais. Esta escala mostra porque devemos confiar mais na astronomia e na biologia do que na astrologia ou no criacionismo. Mais importante, mostra que procurar conhecimento não é servir-se num buffet com tudo para todos os gostos e onde tudo vale o mesmo. É um processo exigente, mais avançado numas áreas que noutras e ao longo do qual muitas crenças têm de ser abandonadas por não encaixarem no resto.

1- Ver, por exemplo, Reuter e Keller, 2001, Sex Ratio Conflict and Worker Production in Eusocial Hymenoptera, American Naturalist, 158:2.

segunda-feira, janeiro 25, 2010

Em perspectiva.

Telethon raises 'record' $57m for Haiti victims
Maratona de peditório nos EUA, com o apoio de famosos como Steven Spielberg, Stevie Wonder e George Clooney angariou 57 milhões de dólares para ajudar o Haiti.

McDonald's profits jump by 23%
Os lucros da McDonalds em 2009 foram de 1220 milhões de dólares. O total de vendas nesse período foi de vinte mil milhões de dólares. Cerca de 60 milhões de dólares por dia.

Tonight Show host Conan O'Brien gets $45m pay-off
Ficou um pouco aquém do dinheiro angariado para o Haiti, mas como 33 milhões são só para ele, o Conan O'Brien não se saiu mal.

domingo, janeiro 24, 2010

Solidariedade.

Já mencionei aqui a diferença entre a solidariedade por caridade, por simpatia ou sentimento pelo sofrimento alheio, e a solidariedade como justiça e consciência social. O nosso Parlamento ilustrou bem esta diferença cumprindo anteontem um minuto de silêncio «em solidariedade para com o povo haitiano» e aprovando «por unanimidade um voto de pesar pelas vítimas do sismo que atingiu o Haiti» (1). Os deputados exprimiram também a sua «total disponibilidade para, a par com as mais diversas instituições nacionais e internacionais, ajudar na reconstrução e no auxílio às vítimas da devastação». Foram simpáticos. Foram caridosos. Mas ninguém propôs qualquer rectificação ao Orçamento de Estado (OE) para disponibilizar fundos de auxílio ao Haiti.

O OE português é de cerca de 75 mil milhões de euros. Se ocorresse por cá uma tragédia semelhante à que assolou os haitianos uma parte significativa do OE seria canalizada para auxilio às vítimas e reconstrução. Estimemos, por baixo, que seria de 5 mil milhões de euros. É certo que este dinheiro é “nosso” e “nós” não vamos gastá-lo todo em haitianos. Mas era bom saber explicitamente que fracção de um português vale um haitiano. É que se vale um décimo sempre são quinhentos milhões de euros. E mesmo que cada haitiano só valha 1% de um português, ainda assim deveríamos dar cinquenta milhões de euros de ajuda ao Haiti. E é improvável que, forçado a fazer uma estimativa explícita, algum político se atreva a defender um valor tão baixo.

É certo que há muitos factores a considerar. Questões de soberania, de aplicação eficaz das verbas e assim por diante. Mas mesmo dando uma margem confortável a estes factores, a conclusão é que estamos a agir, enquanto país, como se a vida de seres humanos nascidos noutro sítio valesse praticamente zero. Os nossos representantes manifestam «total disponibilidade» para ajudar os haitianos desde que seja com o dinheiro da caridade e que não lhes custe decisões políticas pouco populares. O minuto unânime de silêncio fica bem no boneco e não custa votos a ninguém.

E esta caridade fica muito aquém do justo. O que é irónico, visto que quem faz caridade julga fazer mais que a sua obrigação. Até agora reuniu-se em Portugal uns dois milhões de euros (2). É o preço dos bilhetes de um Benfica x Sporting. A caridade portuguesa avalia um haitiano em 0,05% de um português, mais coisa menos coisa.

O Jornal de Notícias ilustra outro aspecto deste problema. O título da notícia anuncia «Bispo do Porto ajuda Haiti com 25 mil euros»(3), o que é generoso mesmo para quem tem cama, comida e roupa lavada de graça. Mas uns parágrafos à frente esclarece: «Seguindo a agência Ecclesia, os 25 mil euros enviados por D. Manuel Clemente foram recolhidos através do Fundo Social da Diocese do Porto.» Ou o fundo social é todo do bispo ou a generosidade é mais diluída do que o título sugere.

A solidariedade por caridade disfarça a injustiça e cria uma falsa sensação de se ter ido além do dever. Sentimo-nos generosos por darmos dois milhões de euros quando é o mesmo que dizer que o bispo deu 25 mil. E esta sensação de generosidade faz-nos esquecer que isso dá apenas vinte cêntimos por cabeça. Cada um de nós ganha, em média, vinte vezes mais que um haitiano e, quando uma tragédia destas mata duzentos mil e destrói uma boa parte da infraestrutura do seu país, cada um de nós dá-lhes, em média, vinte cêntimos. Isto só pode ser caridade porque justiça não é de certeza.

1- Visão, Haiti/Sismo: Parlamento cumpre minuto de silêncio em solidariedade com vítimas.
2- Público, Portugueses já doaram 1,2 milhões de euros para o Haiti
3- Jornal de Notícias, Bispo do Porto ajuda Haiti com 25 mil euros

sábado, janeiro 23, 2010

Treta da semana: crime, dizem eles...

A ACAPOR promoveu esta semana «a maior acção popular contra o download ilegal»(1). Não qualificaram. Não foi a maior de Portugal, nem a maior deste ano. Foi a maior, ponto. Por “popular” referiram-se a clubes de vídeo e editoras e a acção foi «fazer downloads ilegais ali mesmo, na rua, durante as 24 horas que durar a concentração». Tanto repetem esta treta que já parece que acreditam. Na nossa lei o download só é ilegal se o juiz decidir que prejudica indevidamente a exploração comercial (2). Até hoje ninguém foi condenado só por downloads para uso pessoal e qualquer prejuízo que resulte desta acção da ACAPOR será por causa do ridículo – que ainda é legal – e não pelo download em si.

Segundo a ACAPOR, «a iniciativa foi um retombante [sic] sucesso» (3), talvez um deslize freudiano pelos tombos das vendas, da relevância destes distribuidores ou das expectativas para o protesto. Além de descarregar ficheiros, a outra ideia genial foi despejar DVD no chão, ironicamente alusiva ao valor da rodela de plástico neste tempo de cartões de memória e fibra óptica. «Clubes de vídeo e editores também contribuíram em massa na oferta de DVDs para a iniciativa de despejo dos mesmos. À excepção da Universal por atravessar o período transitório que todos conhecem, a Sony por não ter qualquer stock de DVDs em Portugal e a Valentim de Carvalho que não apresentou qualquer justificativo». Talvez a Valentim de Carvalho julgue que “o despejo” não abona muito em favor da causa.

«Este é provavelmente o único crime que não é investigado no nosso país, resultando em percas incalculáveis», diz a ACAPOR dos downloads. Quando fui ao cinema há dias também mostraram um aviso acerca destes alegados “crimes”. Nesse caso, dando a entender que era crime filmar ou fotografar durante a sessão. E acerca desta acção de protesto, escreve a ACAPOR que «Estivemos em plena via pública, em directo na televisão, a cometer um crime e o Estado voltou a olhar para o lado.» Mas, provavelmente, o maior ilícito foi deitar DVD ao chão. Se só descarregaram ficheiros sem os distribuir fizeram-no ao abrigo das excepções previstas para a cópia pessoal. É legal.

Só se distribuíram esses filmes, por exemplo em redes P2P, é que cometeram o crime de usurpação porque distribuíram material protegido sem autorização e sem o abrigo das excepções que permitem a cópia para uso pessoal. Mas se o protesto serviu para ajudar a partilha de alguns filmes então concordo que teve algum sucesso.

Há dias o João perguntou-me por que razão isto me incomoda tanto. Há várias, entre elas subsidiar o comércio pela censura, impor leis por tratados internacionais entre grupos de interesse (4) e à margem dos nossos representantes eleitos, e ter uma lei tão distante da prática corrente. O crime de usurpação do qual a ACAPOR se queixa cometemo-lo se respondemos a um email deixando na mensagem a cópia da mensagem anterior (distribuição não autorizada), se ouvimos música no carro com os vidros abertos (actuação pública), se rabiscamos algo de memória (criação não autorizada de obra derivada) e imensas outras coisas que fazemos todos os dias sem pensar que nos tornamos criminosos por isso (5).

Além disto, estes senhores enganam-nos acerca dos direitos que temos e abusam da autoridade que injustificadamente lhes dão. Por exemplo, a FEVIP distribui uma brochura aos gestores de salas de cinema onde recomenda:

«Coloque um aviso bem visível na bilheteira do cinema e no corredor avisando todos os clientes que “Não é autorizado a utilização de gravadores de Imagens e de Som no cinema”, que os sacos e os casacos podem ser revistados para verificar a possível existência desses mesmos artigos, e que os funcionários do cinema poderão vigiar a sala de cinema durante a exibição do filme, à procura de gravações ilegais.»(6)

O empregado da sala não tem autoridade legal para revistar seja o que for, a gravação só é ilegal se o juíz disser que é ilegal, pois a lei permite a criação de cópias para uso pessoal, e nada na lei impede que se vá ao cinema com casacos e máquinas de filmar. Estas recomendações são um atentado à privacidade, e isto sim devia ser ilegal. «Os funcionários do cinema deverão procurar a utilização de câmaras [...] usando óculos de visão nocturna ou outras ferramentas», ou «Os operadores do cinema poderão criar um registo com o nome e morada (mediante identificação apropriada) daqueles que solicitem [aparelhos auxiliares de audição]».

Respondendo ao João, preocupa-me que a lei e a nossa percepção de direitos fundamentais sejam deturpadas para conferir privilégios a alguns comerciantes. É um problema sério de justiça e de civismo.

1- ACAPOR, 24 HORAS DE LUTA CONTRA A PIRATARIA NA INTERNET. Obrigado pelo email com a notícia.
2- Ilegais? Porquê? - (in)conclusão.
3- ACAPOR, Concentração de 24 horas foi sucesso absoluto
4- EFF, EFF and Public Knowledge Reluctantly Drop Lawsuit for Information About ACTA
5- John Tehranian, advogado especialista em propriedade intelectual, escreveu em 2007 um artigo sobre esta disparidade, calculando que a aplicação plena da lei à vida quotidiana resultaria em milhões de dólares de multas e indemnizações por dia. O artigo já não está online, mas a parte mais interessante pode ser lida aqui.
6- FEVIP, Directivas de segurança para prevenir e impedir gravações com câmara não autorizada no seu cinema

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Fervura.

Quase todos sabem que a água ferve a 100 ºC, muitos sabem que foi a fervura da água que se usou para definir o 100 ºC, e alguns até sabem que a temperatura de ebulição varia com a pressão. Mas muitos não sabem porque é que a água aquece serena até aos 99 ºC e desata num borbulhar desenfreado quando chega aos 100 ºC.

Um aparte, em tom de desabafo. Um químico que não saiba quem escreveu os Lusíadas, quem foi Platão ou o primeiro rei de Portugal é um inculto. Mas é aceitável que um professor de literatura ou filosofia não saiba porque a água ferve e até tenha orgulho nisso. São coisas para cientistas, dirá. Mas a lacuna é igualmente séria, e com a agravante de revelar uma falta de curiosidade, pouco desejável num académico, acerca de algo com que se lida todos os dias.

De volta ao tópico. A temperatura é uma medida estatística da energia cinética das partículas. Se rodam, vibram ou se movem mais rápido a temperatura é mais alta, se for mais devagar a temperatura é mais baixa. Saliento que a temperatura é uma medida. Não causa o movimento das partículas; apenas o quantifica. E é uma média. As moléculas de água no púcaro movem-se a velocidades diferentes, umas mais devagar e outras mais depressa que a média. Mesmo com água fria, algumas têm balanço suficiente para vencer as forças que as ligam às outras e escapar para o ar. É assim que a loiça seca e o suor nos refresca. A cada instante escapam-se moléculas das que têm mais energia. Além de reduzir a quantidade do líquido, reduz também a energia cinética média e arrefece o líquido que resta.

Mas se a água ocupa metade de um recipiente fechado, as moléculas que se escapam – vapor de água – vão passeando na metade superior e algumas voltarão ao líquido. Este processo dinâmico atinge o equilíbrio quando a quantidade de moléculas que sai do líquido, num certo intervalo de tempo, iguala em média a quantidade de moléculas que regressa. A pressão das moléculas na parte superior do recipiente é a pressão de vapor do líquido a essa temperatura, e é maior a temperaturas mais altas porque mais energia cinética facilita a fuga do líquido para o gás.

Se o recipiente estiver aberto o gás espalha-se e não se atinge este equilíbrio, mas podemos perceber a pressão de vapor como a pressão das moléculas a escapar do líquido. Aquecer aumenta a energia das moléculas de água e aumenta a pressão de vapor. É por isso que as coisas secam mais depressa a 95 ºC do que a 5 ºC. O que acontece aos 100 ºC é que a pressão de vapor da água iguala a pressão atmosférica, ou seja, a pressão que o ar exerce sobre a superfície da água. A partir dessa temperatura a pressão do vapor é suficiente para empurrar o líquido, o vapor forma bolhas* e a água ferve.

Também explica a panela de pressão. Quando a água está a ferver não adianta aumentar o aquecimento porque a água que aqueça acima dos 100 ºC empurra a restante e escapa-se como vapor. Mas com o recipiente tapado o vapor acumula-se, aumenta a pressão e a temperatura do líquido sobe porque já não pode libertar rapidamente as fracções mais quentes. As panelas de pressão funcionam a cerca de duas atmosferas, pressão à qual a água ferve a 122 ºC.

Quem chegou até aqui ficou com uma ideia do que faz a água ferver, o que é bom. Infelizmente, deve ter também ficado com a impressão de ser esta a explicação científica para a fervura. Nem de longe. A ciência moderna explica a fervura com um modelo matemático muito mais complexo que este post mas, para lhe fazer justiça, eu precisava de saber mais de termodinâmica e de escrever umas dezenas de posts sobre uma data de coisas, da física às probabilidades. E em vez de lerem isso mais valia ler logo um livro de termodinâmica.

Além da ideia de que ser "culto” exige conhecer livros antigos mas dispensa perceber o que nos rodeia, a ciência enfrenta também esta dificuldade. Para explicar uma parte da ciência a quem não seja especialista dessa área é preciso simplificar, deixando muita gente sem ideia da profundidade, do tamanho e do detalhe dos modelos científicos modernos. Com a impressão de uma explicação científica ser algo como este post, meia dúzia de tretas e uma ideia vaga, muitos julgam que a teologia, a anatomia energética, o criacionismo ou qualquer coisa que dê uma história engraçada serve como via de conhecimento alternativa à ciência. Mas não serve. Infelizmente, é nos detalhes que isso se nota.

* As que se formam no fundo do púcaro e sobem em fila, ou as grandalhonas quando a água ferve em cachão. As pequeninas agarradas ao púcaro quando começa a aquecer não são de vapor de água. São gases do ar que se dissolvem na água fria e escapam na água quente. O processo é análogo, mas as moléculas são outras.

Editado a 22-1 para corrigir a “impressão que”. Obrigado ao Vicente pela gentil sugestão.

O autor.

World Science Festival 2009: Bobby McFerrin Demonstrates the Power of the Pentatonic Scale from World Science Festival on Vimeo.


Via O Esquema do Boi.

segunda-feira, janeiro 18, 2010

O “novo” ateísmo

já tem uns anitos valentes. Betrand Russell, há 60 anos:



Via Pharyngula

Adenda: Na verdade, a entrevista tem pouco mais de 50 anos. É o que dá olhar só para a casa das dezenas. Mas o ensaio "Why I Am Not A Christian" data de 1927.

Merece ser lido na íntegra, mas fica aqui um pedacito a propósito da bondade e do amor.

«There is one very serious defect to my mind in Christ's moral character, and that is that He believed in hell. I do not myself feel that any person who is really profoundly humane can believe in everlasting punishment. Christ certainly as depicted in the Gospels did believe in everlasting punishment, and one does find repeatedly a vindictive fury against those people who would not listen to His preaching -- an attitude which is not uncommon with preachers, but which does somewhat detract from superlative excellence. You do not, for instance find that attitude in Socrates. You find him quite bland and urbane toward the people who would not listen to him; and it is, to my mind, far more worthy of a sage to take that line than to take the line of indignation. You probably all remember the sorts of things that Socrates was saying when he was dying, and the sort of things that he generally did say to people who did not agree with him.

You will find that in the Gospels Christ said, "Ye serpents, ye generation of vipers, how can ye escape the damnation of Hell." That was said to people who did not like His preaching. It is not really to my mind quite the best tone, and there are a great many of these things about Hell. There is, of course, the familiar text about the sin against the Holy Ghost: "Whosoever speaketh against the Holy Ghost it shall not be forgiven him neither in this World nor in the world to come." That text has caused an unspeakable amount of misery in the world, for all sorts of people have imagined that they have committed the sin against the Holy Ghost, and thought that it would not be forgiven them either in this world or in the world to come. I really do not think that a person with a proper degree of kindliness in his nature would have put fears and terrors of that sort into the world.»

Pocahontas.

Há uns dias fui ver o remake da Pocahontas que o James Cameron realizou. Está bem divertido. Talvez para evitar problemas de copyright com a Disney, ele mudou os nomes dos personagens, usou peles-azuis em vez de peles-vermelhas e naves em vez de barcos. Mas manteve-se fiel à história. A Avó Salgueiro estava tal e qual.

Infelizmente, fui ver o filme em 3D. A opção pareceu boa durante os primeiros minutos. “Uau, isto parece mesmo 3D”. Mas a novidade passou depressa e fiquei o resto do filme a desejar devolver um D para ver aquilo bem focado e com imagem decente.

Mas o filme entretém e é uma boa demonstração da tecnologia. Vale o preço do bilhete. À segunda-feira. Agora fico à espera que afinem a terceira dimensão e que escolham uma história mais original para o dois.

Já agora, o Fail Blog tem aqui o guião original com a adaptação do Cameron.

Adenda: Obrigado ao Leandro Ribeiro pelo link para esta versão do trailer:



E, caso não conheçam a outra:

domingo, janeiro 17, 2010

Treta da semana: quanto mais me bates...

Caro Joseph,

Por razões inefáveis vai haver um terremoto de magnitude 7.0 perto de Port-au-Prince na próxima Terça-Feira. Será pouco depois das cinco da tarde. Avisa as autoridades para que evacuem a cidade, os católicos locais para que não se preocupem e confiem em Mim, e aos ateus, que não vão acreditar nisto, diz que cá os espero terça à noite para lhes explicar o argumento ontológico.

Que Eu te abençoe,
J, J e E.S.


Esta semana morreram mais de cem mil pessoas com o sismo no Haiti. Muitas mais ainda vão morrer de ferimentos, sede, fome, violência e doença. Se o deus dos católicos existisse, se amasse os haitianos e tivesse contacto com o Papa, seria de esperar pelo menos um aviso. É o mínimo que a decência exige, mesmo que se aceite terremotos onde as pessoas são tão vulneráveis. Ou em qualquer sítio. Bastava que tivesse feito os «pilares da Terra» como deve ser para isto não abanar tanto.

Cristãos diferentes vêem este sismo de forma diferente. Para evangélicos como Pat Robertson, se Deus manda em tudo manda nos terremotos, e se o Haiti levou com um é porque mereceu (1). É doentio, mas segue logicamente das premissas. Por outro lado, os católicos vêem neste sofrimento uma prova do amor de Deus. Cem mil pessoas morrem num sismo, portanto oremos e louvemos o criador dos terremotos. Do cima a baixo da hierarquia os católicos rezam. O mecanismo pelo qual estas preces terão efeito não é claro, mas o Papa convida «toda a gente a juntar-se a mim em oração ao Senhor pelas vítimas desta catástrofe […] implorando de Deus consolo e alívio do seu sofrimento»(2). No Colégio de Lamego, os alunos da primeira classe rezaram «pelos milhares de pessoas que morreram de forma tão trágica», também esperançosos «Que a nossa oração ajude a aliviar tanto sofrimento.»(3)

Esta ideia algo masoquista de ver amor no sofrimento é estranha mas deve ter ajudado o cristianismo a durar tanto. Todos gostaríamos de ser amados pelo grande chefe de tudo, mas o amor não chega para justificar a doutrina, as regras e o poder da hierarquia da Igreja. Para isso é preciso aproveitar doenças, sismos e outras tragédias naturais, por vezes dar uma ajuda com autos de fé e inquisição, e aferir a medida com o sofrimento eterno. Paus que complementam a cenoura do amor divino.

Mas os deuses são ficção e esta tragédia não foi apenas por culpa da geologia. No dia 17 de Outubro 1989, também por volta das cinco da tarde, o sismo de magnitude 7 em São Francisco matou 63 pessoas. É a diferença entre ter betão armado e colar os tijolos com cuspo. E não foi por falta de caridade ou de pena do pobre povo haitiano. Há dez mil organizações de caridade a operar nesse país, uma para cada mil habitantes (4). Só que cada uma tem a sua ideologia e a sua forma de operar, há pouca cooperação entre as almas caridosas e ainda menos cooperação com o governo e com o povo que querem ajudar.

Além disso, a caridade trata sintomas. Em alturas como esta os sintomas são o mais urgente e, neste momento, é preciso tudo. Até caridade*. Mas fora de tragédias e emergências a caridade ajuda o pobre sem o tirar da pobreza. Alivia sem resolver. É preciso ir além da esmolinha para atacar as causas do problema.

Em 1970, 22 dos países mais ricos prometeram na ONU dedicar um mínimo de 0,7% do seu PIB a ajudar os mais pobres. Em 2005 ainda só cinco tinham atingido a marca. Portugal contribuiu 0,21% (5). Este tipo de ajuda governamental, organizada e estruturada, isenta de ideologias e proselitismo, é essencial mas é apenas uma pequena parte do que é preciso. É também preciso melhores políticas de imigração nos países mais ricos, acordos comerciais mais justos, perdoar dívidas incapacitantes (e impossíveis de saldar), facilitar a formação e transferência de tecnologia para quem mais precisam e outras medidas que fomentem o desenvolvimento destes países. Pelo menos até que possam construir casas que não lhes caiam em cima.

E isto não se consegue com pena dos pobrezinhos ou rezando a quem nos maltrata. É um problema que se tem de resolver de forma organizada, sistemática e estrutural e, acima de tudo, contrariando a ideia que a miséria no estrangeiro conta menos que a de cá.

* Se quiserem uma sugestão para ajudar: AMI.

1- Huffington Post, Pat Robertson: Haiti 'Cursed' By 'Pact To The Devil' (VIDEO)
2- CNS, Pope prays for victims of Haiti quake; archbishop's body found
3- Colégio de LamegoPelas vítimas do sismo...
4- Tracy Kidder, The New York Times, Country Without a Net
5- Millenium Project, The 0.7% target: An in-depth look

Editado a 18-1 para corrigir o "merecu" por "mereceu" (obrigado Joaninha) e uma referência errada (obrigado Pedro).

sábado, janeiro 16, 2010

Incentivar sem proibir.

O termo “propriedade intelectual” engloba várias coisas diferentes. A marca registada permite que o consumidor saiba quem foi o produtor; a patente paga a divulgação de uma invenção com um monopólio temporário; os direitos de autor garantem o reconhecimento da autoria e de repudiar versões adulteradas da obra; e o copyright visa incentivar a criação e disseminação de obras artísticas concedendo direitos exclusivos de cópia e distribuição.

A inovação tecnológica não alterou os primeiros três. Para se confiar numa marca é preciso que alguém tenha o controlo exclusivo sobre ela, com ou sem Internet. Se alguém tem uma ideia genial que prefere explorar em segredo temos de lhe oferecer algo em troca da sua divulgação, haja ou não P2P. E o direito moral de ser reconhecido como autor ou de não ser associado a algo que se repudia continua tão importante como sempre.

Em contraste, o copyright foi uma solução de compromisso entre distribuição e criação cujo equilíbrio se alterou radicalmente com o progresso tecnológico. Restringir o acesso e a cópia dá mais segurança aos distribuidores mas, como ninguém cria do nada e todas as obras têm algo de transformativo, estas restrições também afectam a criação artística. Sendo a distribuição digital praticamente gratuita, a relação entre custos e benefícios do copyright é agora muito diferente do que era há poucas décadas atrás.

Em retrospectiva, o copyright teve um problema grave logo de início. Deu demasiado poder económico e político a quem queria aumentar, sem limite, o âmbito e período de aplicação destas restrições. Um mecanismo cujo objectivo último era enriquecer o domínio público agora bloqueia tudo durante cerca de um século, por omissão e mesmo que não haja benefício comercial. Mas, inicialmente, conceder direitos exclusivos de cópia tornou as obras mais acessíveis. Para comprar um livro era preciso que alguém montasse uma reprografia, imprimisse os livros e os transportasse até à loja, coisa que ninguém faria sem perspectivas de lucro. O copyright limitava o que se podia fazer com o livro mas permitia levá-lo do autor ao consumidor.

Hoje não é preciso subsidiar a distribuição. Há formas de distribuição que são caras, como cinemas, revistas bonitas ou encadernações de luxo, mas essas podem ficar a cargo do mercado. Terão o sucesso que merecem e, se não tiverem, não é grave porque há sempre forma de levar a obra ao público. E a tecnologia que facilita o acesso também facilita a transformação e a reutilização criativa de obras em contextos diferentes. Por isso agora temos de incentivar a criação, quer “original” quer “transformativa” (a diferença é subjectiva e arbitrária) em vez de nos preocuparmos com a distribuição.

Há três factores a considerar para os requisitos do incentivo. A criação de obras com valor comercial, a criação amadora, que não quer dizer de menor qualidade mas apenas que vem do amor pela arte, e que incentivar a criatividade serve para enriquecer a cultura que partilhamos. Por este último podemos excluir qualquer sistema que restrinja o acesso, a partilha ou a distribuição de bens culturais para uso pessoal. Se o autor decide tornar pública a sua obra, o acesso e a divulgação não devem ser impedidos pela lei.

Isto também incentiva a criação amadora. Quem gosta de criar arte precisa de ter acesso às obras dos outros para poder contribuir e inovar. Mas também é preciso eliminar restrições à transformação e reutilização de obras. Deve ser permitido juntar pedaços de músicas ou filmes, pôr desenhos animados a cantar em playback ou qualquer coisa que um artista queira fazer com obras que estejam disponíveis ao público.

E para incentivar a criação de obras com potencial comercial basta o direito a comparticipar das vendas. Não é preciso autorizações, licenciamentos e afins. Se componho uma música e a torno pública – vendendo cópias, por exemplo – deve ser legal cantá-la na festa da escola, copiar o CD para um amigo ou enviar o mp3 por email. Precisamente o que já se faz hoje, apesar da lei, sem pagar ou pedir licenças. É só se alguém decide explorar comercialmente uma obra que se deve garantir uma percentagem para o autor. O valor ao certo é um detalhe de implementação que pode depender do tipo de obra; o importante é eliminar as restrições que fazem perder grande parte da nossa cultura sem deixar de recompensar os artistas pelo seu sucesso comercial.

Uma objecção é que é difícil vender cópias se todos podem trocar ficheiros de borla. Não acho que seja grave. Basta que vendam algo que valha a pena comprar. No fundo, o mercado é isso. E dar ao autor uma percentagem das vendas é principalmente para evitar que uns ganhem dinheiro com a criatividade alheia sem dar nada em troca. Mas a melhor forma de exercer qualquer profissão é cobrando pelo trabalho. E para que os artistas o possam fazer basta acabar com este sistema pelo qual quem paga ao autor fica com direitos exclusivos sobre a obra.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Amor e família.

Deus é o nosso pai, a Igreja é a sua esposa, tal como as freiras, os padres também são nossos pais e somos todos irmãos. É amor por todo o lado. O cristianismo aproveita os laços familiares de afecto, familiares em ambos os sentidos, para persuadir que o seu deus é um deus de amor e que o universo foi criado como uma família feliz. Mas tirando os olhos do umbigo, olhando além do que gostaríamos que fosse a norma na nossa espécie, vemos que este antropomorfismo optimista não representa adequadamente a realidade.

O amor fraternal é um de muitos ideais que esta religião diz poder ser corrompido pelo exercício da vontade livre. Mas o fratricídio é comum em animais aos quais não atribuem tal capacidade. Em pássaros como o pelicano ou a garça-vaqueira é normal as crias competirem agressivamente pela comida que os pais trazem. Tão agressivamente que acabam por matar as mais pequenas, sob o olhar indiferente dos progenitores. Muitas vespas parasitárias injectam vários ovos em cada vítima e as larvas que eclodem atacam-se mutuamente até só restar uma. E alguns tubarões começam o canibalismo ainda no ventre materno, comendo os irmãos antes de nascerem.

O infanticídio por parte de adultos também é comum em muitas espécies. Os leões machos matam as crias das fêmeas quando se apossam de um bando, as fêmeas de coelho matam as crias umas das outras e em algumas espécies, como os escaravelhos necrófagos, alguns peixes e até hamsters, os progenitores matam os próprios filhos. Ao contrário do que alguns crentes sugerem, o amor de mãe não deve ser gratuitamente assumido. Como qualquer outra hipótese, também esta deve ser confrontada com os dados.

O amor conjugal dá uma bela metáfora para a relação entre Deus e a Igreja mas também tem muito que se diga. Os machos de Harpactea sadistica, uma aranha nativa de Israel, perfuram o corpo da fêmea e depositam o sémen directamente no seu abdómen (1). Muitos invertebrados “fazem amor” de formas semelhantes (2). Os patos forçam as fêmeas a ter relações sexuais, os chimpanzés amansam as futuras “amadas” à pancada (3) e se olharmos para o nosso comportamento com imparcialidade vemos que não andamos muito longe disto. Nos costumes de alguns povos, bíblicos e contemporâneos, para muitas raparigas a diferença entre a violação e o casamento é uma mera formalidade.

A hipótese que um deus criou os humanos à sua imagem e todo o universo por amor, com o amor de um pai, não é plausível. Podia parecer plausível a quem ignorava quase tudo acerca da natureza. A quem julgava que o universo teria a duração e o tamanho da sua tribo e vizinhos. Mas o que sabemos hoje indica uma alternativa. O mais plausível é que esse deus, como tantos outros, seja apenas um personagem fictício onde uns projectam o que querem fazer crer aos outros.

1- Aqui um post do Ed Yong, com vídeo para quem gostar destas coisas: Traumatic insemination - male spider pierces female's underside with needle-sharp penis
2- Wikipedia, Traumatic insemination
3- Short Sharp Science, Male chimps use sexual coercion

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Legal 10.

Ray Bradbury escreveu o Fahrenheit 451 em 1953. Pela lei dessa altura tinha 28 anos de copyright, extensível por mais 28 anos se a editora, que detinha os direitos exclusivos, quisesse pedir essa extensão. Por se exigir a renovação do copyright, 85% de todas as obras criadas em 1953 passaram ao domínio público em 1982 por falta de interesse comercial em renovar estes direitos (1). Mas o copyright do Fahrenheit 451 foi renovado por mais 28 anos. E depois a lei foi alterada, estendendo retroactivamente o período de “protecção”. Por isso esta obra que foi criada com o acordo entre editores, o autor e a sociedade para que entrasse no domínio público este ano, agora só estará disponível em 2049. Se não alterarem a lei outra vez.

Como James Boyle aponta no artigo, isto é um custo social injustificável. A promessa de 28 anos de copyright renovável por mais 28 foi suficiente para que Bradbury escrevesse o livro e a editora o distribuísse. Dar-lhe agora mais três décadas de exclusividade já não serve para o incentivar a criar esta obra.

Um problema ainda mais grave desta alteração do copyright foi condenar ao limbo todas as obras sem sucesso comercial. Hoje em dia a maior parte das obras cobertas pelo copyright não estão disponíveis comercialmente e muitas estão órfãs, não sendo sequer possível descobrir a quem se pode pedir autorização para as reproduzir. E se com livros é “só” esperar um século para que entrem no domínio público, obras menos resistentes, como filmes antigos, já estarão irremediavelmente degradadas quando finalmente entrarem no domínio público. Isto porque em vez de se registar uma obra para ter copyright, e depois de o renovar para o manter, agora o copyright cobre tudo por omissão e durante uma carrada de tempo.

Com uma tecnologia que torna a distribuição gratuita, facilita a criação de obras derivadas e impele a inovação mais do que nunca, este sistema obsoleto de incentivo por restrições tem um custo muito superior aos seus parcos benefícios. O que é preciso é incentivar sem restringir o acesso nem conceder monopólios sobre a distribuição. Mas isso fica para um próximo post.

Este quero acabar com um episódio engraçado. A HADOPI é a agência francesa que está encarregue de cortar o acesso à Internet aos malvados que sejam acusados três vezes de partilhar ficheiros. A semana passada apresentaram ao público o seu logótipo. Que foi desenhado com fontes da France Telecom que a HADOPI não tinha autorização para usar. A HADOPI já pediu desculpa pela violação de copyright, mas parece que ainda pode fazer mais duas antes de ficar sem 'net (2).

1- The Public Domain, James Boyle, Fahrenheit 451… Book burning as done by lawyers. Obrigado a quem me enviou o email com o link.
2- TorrentFreak, French 3 Strikes Group Unveils Copyright Infringing Logo

terça-feira, janeiro 12, 2010

Fronteiras 2010

Amanhã às 14:00 vou participar num debate sobre «Blogosfera, Twitters & Co», na biblioteca da FCT/UNL.

Podem também seguir o debate ao vivo na página do Laboratório de e-learning da FCT e colocar perguntas pelo Twitter ou Facebook da biblioteca. Mais informações no blog da biblioteca da FCT.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Lá vou passar a comprar jornais.

A minha sogra queria um cão. A minha mulher foi ao Portal Adoptar e contactou uma senhora que tinha salvo uma ninhada de ser envenenada. Foi buscar esta cachorra e passou por cá com ela para fazer uma surpresa aos miúdos. Que ficaram todos contentes, deram-lhe o nome e fizeram uma grande festa. Agora a minha sogra continua sem cão que esta daqui já não sai.

Nina

Se alguém quiser saber a raça, é cão puro. Não é daquelas experiências que se faz por aí de cruzar primos e irmãos para acumular duplos recessivos.

Fica a fazer companhia aos quatro porquinhos da índia. Há dois anos a minha mulher comprou duas fêmeas, mas alguém na loja deu o convexo por côncavo. O que com estes bichos até se desculpa, que a diferença é pequena. Mas agora, mesmo depois do pai morrer, ainda temos a mãe, duas filhas e um filho.

domingo, janeiro 10, 2010

Treta da semana: não sabem?

Volto ao tema da semana passada, agora com a lei já diferente. E, desta vez, foco a lamuria do João César das Neves (JCN). Já no dia 4 o JCN escreveu que «Nenhuma consideração de bom senso ou legitimidade democrática» iria impedir aqueles que «Não sabem o que fazem» de mudar o «conceito de casamento, alteração muito mais radical que a revisão constitucional»(1). Eu já estou casado há uns tempos. Faz treze anos amanhã. E posso garantir que o nem o meu casamento nem o meu conceito de casamento mudaram. A única coisa que mudou, que eu saiba, foram as exigências do contrato civil de casamento.

É a treta do costume. Como a queixa que o governo não resolve os problemas importantes. «O desemprego explode, a justiça embrulha-se, a educação discute, a saúde engorda, a economia afunda-se em dívidas sem que as autoridades manifestem sequer compreender o que há a fazer.» Estes problemas precisam de muito mais que uma alteração da lei. Não é por isso que se deve deixar por resolver os que têm solução simples. Ao contrário da economia e do desemprego, eliminar a discriminação pelo sexo nos requisitos do contrato de casamento é trivial. Basta mudar a legislação. O único empecilho tem sido os JCN que andam por aí.

Mas o mais engraçado neste artigo do JCN é que ele propõe que deixar de proibir casamentos homossexuais é mais um erro como as atrocidades do passado, «horrores antigos que temos dificuldade em entender», acrescentando que o «futuro terá dificuldade em entender os nossos.» Mais uma vez vê tudo ao contrário. Essa proibição é que era um dos erros do passado. A alteração da lei foi, finalmente, a correcção desse erro. Um erro que, infelizmente, o JCN tem muita dificuldade em entender.

1- João César das Neves, DN, Não sabem o que fazem

sábado, janeiro 09, 2010

A imponderabilidade espiritual do princípio voífero.

Um post convidado do Engº José Espírito Santo, formado em engenharia aeronáutica e investigador na área dos aspectos espirituais da aerodinâmica.

O Airbus A380-800 é o maior avião de passageiros do mundo, com 73m de comprimento e capacidade para até 850 pessoas. Sistemas de controlo electrónico e computorizados, redundância dos sistemas críticos e o uso extenso de materiais compósitos fazem deste aparelho um exemplo da mais avançada tecnologia. Mas, analisado de uma perspectiva naturalista empírica, é um mero pedaço de metal e plástico. O naturalismo pode explicar em detalhe como funcionam as partes do A380-800, e como interagem, mas não pode dar uma explicação completa daquilo que permite a um pedaço de metal e plástico voar com 850 pessoas lá dentro.

Não quero com isto menosprezar a explicação naturalista. Explicar esse nível da realidade, o nível empírico, é necessário e útil para construir, reparar e manter estes aparelhos. Mas quero apontar que se trata de uma explicação incompleta porque não explica o voo em si. Este só pode ser explicado noutro nível da realidade, um nível que não é naturalista nem passível de confirmação empírica. Para compreendermos porque o A380-800 voa, em vez de apenas como as suas partes interagem, precisamos de ir mais longe. Este aparelho voa porque está dotado de um princípio voífero. É por isso que se torna mais que mero metal e plástico. É essa a verdadeira explicação para o voo de um avião.

O mesmo acontece com um computador e com o nosso cérebro. Um processador electrónico, naturalisticamente, é apenas um quadradinho de sílica – areia! – com algumas impurezas. Ora, todos sabemos que a areia não faz contas. O estudo naturalista dos circuitos integrados pode ir muito longe na sua concepção e fabrico mas fica aquém de explicar o que realmente dota a sílica de matemática. A matemática transcende a mera matéria e, para explicar o funcionamento de um CPU, temos de vê-lo como dotado de um princípio computífero que matematiza a matéria materalizando a matemática numa relação delas consigo próprias enquanto outras.

O nosso cérebro também é apenas um amontoado de células, segundo o naturalismo empírico. Nada mais. E células não pensam. Tal como um computador, este substrato material pode ser compreendido em detalhe de forma naturalista mas esta nunca poderá explicar o porquê do cérebro fazer o que faz. Para explicar o mistério da mente é preciso perceber que o cérebro humano é dotado de um espírito e de vontade livre. É esse princípio mentalífero que explica a mente.

Os naturalistas dirão que inventar um nome para algo que não se compreende não explica nada. Mas isto mostra apenas uma limitação do naturalismo empírico, que é exigir que as explicações permitam inferir aquilo que se explica. É por isso que o naturalismo rejeita como irrelevantes explicações que são perfeitamente razoáveis e esclarecedoras, tais como “é o destino”, “porque sim” ou “é a vontade de Deus”.

Ignorando estas limitações impostas pelo naturalismo empírico deixamos de ter de fundamentar as nossas explicações pela sua relevância e pelas evidências. E assim podemos ir mais longe. Por exemplo, é fácil de ver que, por transcender a matéria, o princípio voífero de um avião tem de persistir mesmo depois do substrato material do avião se destruir. Os aviões que tenham um bom desempenho durante a sua vida útil sobrevivem assim, eternamente, ao seu fim material, persistindo no plano espiritual como princípios voíferos desencarnados.

Mais importante, o mesmo se passa connosco. Rejeitar o naturalismo empírico permite-nos convencer, a nós e a outros, que quando uma pessoa sofre de Alzheimer's, de uma trombose ou morre, o seu princípio mentalífero vive ainda de boa saúde. Aquilo que acontece com a nossa alma imortal é exactamente o mesmo que acontece com o princípio voífero de um avião ou com o princípio computífero dos processadores avariados. Todos estes elementos transcendentes sobrevivem à inevitável degradação da matéria. E, se se portaram bem, serão para sempre felizes.

Quero terminar salientando que nada disto contradiz a ciência ou o naturalismo. Estas explicações operam a um nível diferente da realidade, complementando o naturalismo empírico. Uma coisa é explicar dados que se observa com base em evidências e avaliando as explicações pela capacidade de unificar os dados e prever novas observações. Disso trata o naturalismo empírico. Outra, bem diferente, é a explicação do porquê, ao nível espiritual. Essa trata sobretudo de relações. Em parte das nossas relações com o outro enquanto Outro e com o Outro enquanto outro. Mas, principalmente, daquela relação de nós connosco próprios à qual os mais cínicos chamam de auto-engano mas que aqueles que contemplam o plano espiritual preferem apelidar de Esperança.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

O mais pirateado.

O livro mais pirateado de 2009 é uma colecção de escritos que tomou a sua forma presente há cerca de dois milénios. Foi escrito por homens mas, segundo dizem, a inspiração foi divina. Há quem o leve à letra, como se fosse um manual, e há quem o interprete metaforicamente. É, sobretudo, um relato de relações. Um relato de Amor. Refiro-me, obviamente, ao Kama Sutra.

A notícia refere que foi «o livro electrónico mais pirateado em 2009 através do sistema de partilha de ficheiros BitTorrent» e que «250.000 pessoas descarregaram ilegalmente o Kama Sutra em 2009»(1). Pirateado. Ilegalmente. Com quase dois mil anos e compilado milénio e meio antes do tratado de Berna é com certeza uma das obras com copyright mais longo da história.

Infelizmente, é possível que seja ilegal partilhar uma edição electrónica do Kama Sutra. Isto porque a lei a que chamam “direitos do autor” não tem muito a ver com o autor, a criatividade nem com o incentivo à criação de obras. É um monopólio sobre a edição e distribuição. Mesmo quem edita uma obra milenar pode ter direitos de exclusividade só porque pôs o texto naquela fonte e a fotografia naquele sítio.

Mas o pior disto é que a propaganda contra a partilha está a destruir a noção de cultura. Cultura, hoje, é aquilo pelo qual se paga, e se não se paga é crime. Dizem que a partilha de informação é uma ameaça à indústria cultural, mas a indústria cultural é cada vez mais uma ameaça à cultura.

E a ameaça à indústria é exagerada. Nos últimos 3 anos as salas de cinema em Portugal «perderam 800 000 espectadores»(2). Entre 2008 e 2009, houve uma redução de 2% em espectadores mas, no mesmo período, a receita bruta aumentou mais de 5% (3). Segundo o jornalista, a receita aumentou apesar da redução no número de espectadores «possivelmente impulsionada pelo aumento do preço dos [bilhetes]» (2). Possivelmente?... E talvez, quem sabe, o aumento do preço também tenha alguma coisa a ver com a redução no número dos espectadores.

As vendas de CD caem mas ninguém se lembra de culpar a inutilidade do CD, que já só serve para pôr copos em cima depois de ripar as músicas para o leitor de mp3. Os clubes de vídeo fecham mas não lhes ocorre que o aluguer de filmes por cabo ou a venda de DVD a 5€ nos supermercados possa ter alguma relevância. É tudo culpa da pirataria e do crime de copiar bens protegidos por direitos de autor. Como o Kama Sutra.

Agora o mercado imobiliário está em crise e as vendas de automóveis têm caído também. A ver quanto tempo demora até culparem a partilha de ficheiros...

1- Expresso, "Kamasutra" foi o livro mais pirateado em 2009. Obrigado ao NCD pelo link.
2- Destak, Salas portuguesas perderam 800 000 espectadores nos últimos três anos. Obrigado pelo email com a notícia.
3- ICA, Receita bruta e espectadores - evolução mensal 2008/2009.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

Para que serve o empírico.

Uma afirmação diz-se justificável a priori se a compreensão dos termos bastar para decidir se a afirmação é verdadeira. Um exemplo famoso é “nenhum solteiro é casado”. À partida, basta perceber o que quer dizer para concordar que é verdade. Em contraste, “já existiu água em Marte” é uma afirmação cuja verdade não podemos concluir apenas do significado dos termos. Essa só pode ser justificada a posteriori com informação adicional que nos diga se já houve água em Marte.

Isto vem a propósito do comentário do Domingos Faria: « A filosofia não é uma disciplina empírica, mas sim uma disciplina "a priori" ou que se faz apenas pelo pensamento.»(1) Ser justificável a priori não quer dizer que não seja empírico. Para perceber que nenhum solteiro é casado é preciso perceber o que é ser solteiro e casado. É preciso saber coisas acerca destas relações entre pessoas, e acerca de pessoas e assim por diante. E isso não se consegue “apenas pelo pensamento”. É preciso conhecimento empírico para perceber os termos e apurar a verdade da afirmação.

Outro exemplo. A afirmação “já existiu pelo menos um Anopheles gambiae” parece só ser justificável a posteriori. O Anopheles gambiae é um mosquito que transmite a malária. Só por si isso não nos diz se já existiu algum. No entanto, os biólogos não definem as espécies apenas por uma descrição. O que define uma espécie é um exemplar dessa espécie, catalogado e depositado onde outros biólogos o possam examinar. Por isso qualquer pessoa que conheça a definição biológica de Anopheles gambiae, que inclui saber que existe esse exemplar, sabe a priori que existe pelo menos um desses bichos. Ou seja, a afirmação é justificável a priori segundo a definição biológica de Anopheles gambiae.

E olhando com mais atenção para “nenhum solteiro é casado” vemos que determinar se é verdade é mais difícil do que parecia. Pode estar casado num país mas esse casamento não ser reconhecido noutro. Se “solteiro” é estar disponível para casar um casado pode ser solteiro se a poligamia for permitida. E assim por diante. Para que “nenhum solteiro é casado” seja verdade pela definição dos termos é preciso defini-los com cuidado. E para isso é preciso conhecimento empírico.

Podemos fazer o mesmo pelo outro lado. Se definirmos a expressão “água em Marte” como se define Anopheles gambiae, com um balde de água em Marte para ser o exemplar que define a categoria de coisas que são “água em Marte”, então qualquer pessoa que conheça essa definição saberá a priori que “já existiu água em Marte” é verdade.

Ou seja, a diferença entre ser justificável a priori ou a posteriori, ao contrário do que o Domingos e outros defendem, não está em prescindir ou depender de conhecimento empírico. Este é indispensável em ambos os casos. A diferença está apenas em quanto conhecimento empírico está carregado na definição dos termos e quanto ficou de fora. Se for o suficiente para determinar a verdade da afirmação, então é justificável a priori. Se não chegar então só é justificável a posteriori, depois de obter o conhecimento que falta. Mas em ambos os casos é preciso conhecimento empírico para dar significado aos termos e apurar a verdade da afirmação.

Concordo com o Domingos que a filosofia é mais a priori que a ciência porque a filosofia dedica-se muito à definição dos termos. Mas discordo que o possa fazer sem conhecimento empírico porque para definir termos como “bem”, “conhecimento”, “mente” ou “ser” é preciso imenso conhecimento empírico. É preciso tanto conhecimento que estas definições têm evoluido muito e ainda não se sabe bem como definir estes termos de forma adequada para o que queremos fazer com eles. Se definir “casado” já é tramado, algo como “existência” e “verdade” é um pesadelo.

E não concordo que a diferença entre ciência e filosofia seja tão clara como o Domingos defende. Quer por razões históricas (eu, bioquímico, em Inglês sou “doutor de filosofia”...) quer pela prática corrente. A ciência também dedica muito cuidado às definições para criar expressões justificáveis a priori. Muitos modelos matemáticos são assim. E a filosofia também se preocupa com o teste de hipóteses a posteriori. A filosofia da mente, por exemplo, procura avidamente hipóteses testáveis, e a filosofia da ciência muitas vezes mais parece uma ciência da filosofia.

O problema que quero apontar é a ideia que se pode tirar conclusões apenas do pensamento sem qualquer fundamento empírico. Isto é falso. De uma afirmação como “nenhum mafaguinho é calafrático” não podemos sequer saber se é justificável a priori ou não, precisamente porque nos falta o fundamento empírico necessário para compreender os termos. Esse problema afecta expressões como “Deus”, “revelação divina”, “espiritualidade”, “testemunho” e afins. Sem um fundamento empírico sólido que as defina não passam de mafaguinhos e não se faz nada disso.

1- Comentário em Equívocos, parte 2

terça-feira, janeiro 05, 2010

Equívocos, parte 2.

Como prometeu, o Alfredo começou a enunciar os equívocos que ele diz ser do ateísmo. Que são equívocos concordo, pelo que estamos parcialmente de acordo. Um, que ele chama «Equívoco geral», é o ateísmo «estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião.»(1) Diz o Alfredo que isto é porque se o ateísmo critica a religião de forma inteligente só a fortalece e, caso contrário, não a afecta. É claro que isto assume que o deus do Alfredo existe. Porque se não existe, então uma critica inteligente pode revelar que o rei vai nu e acabar com a festa.

Mas o equívoco do Alfredo é julgar que o ateísmo só faz sentido se conseguir erradicar a religião. O ateísmo, pelo menos no meu caso, é apenas uma expressão visível de duas conclusões. Primeira, que os deuses são mais uma de muitas fantasias humanas. E, segunda, que mesmo que houvesse deuses eu continuava responsável pelos meus valores e não era correcto simplesmente fiar-me num livro ou sacerdote. É por isso que não uso deuses para me guiar. É por isso que sou ateu.

No entanto, admito que era bom que a religião desaparecesse. Era bom que, crentes ou descrentes, todos vivessem essas opções como algo pessoal sem ir na conversa dos que dizem estar mais perto dos deuses. Era bom que ninguém se deixasse enganar pelas patranhas da infalibilidade ou da revelação divina calhar só a alguns. Infelizmente, é um desejo pouco realista. Continuará a haver Papas, sacerdotes e Alexandras Solnado porque haverá sempre pessoas a julgar que uns, abençoados, sabem alguma coisa acerca dos deuses.

Outro equívoco é confundir questões acerca dos factos com as definições dos termos. Escreve o Alfredo que «Não há nenhuma prova científica de que a vida humana começa no ‘momento’ da concepção». Mas este problema é apenas a definição do termo “vida humana”. Se for a vida de organismos da nossa espécie, então começou há cerca de 200 mil anos e perpetuou-se, ininterrupta, desde então. Se refere a parte do ciclo de vida correspondente a um organismo da nossa espécie, então a concepção marca o início dessa fase. E se queremos referir a auto-consciência humana, o viver como sentir que se existe, então o início da “vida humana” será talvez perto dos dois anos de idade. Se definirmos o termo com rigor a questão torna-se perfeitamente científica. Só não o é enquanto não soubermos o que queremos dizer.

Mas o equívoco principal do Alfredo é julgar que as provas mais evidentes não podem ser científicas. «Muitas das crenças humanas nas quais se fundamenta a vida das pessoas comuns baseiam-se no testemunho e no crédito que elas se atribuem umas às outras. Não são o resultado positivo de qualquer teste científico a que essas crenças são submetidas. [...] Não tenho nenhuma prova científica de que a minha mãe me amou desde que fui concebido no seu seio.»

A ciência não se faz só com tubos de ensaio. É o conhecimento que temos da realidade e a forma como o obtemos. A hipótese “esta mulher ama o seu filho” é tão científica como qualquer outra porque é tão passível como qualquer outra de se submeter ao teste das evidências. Basta pensar numa mulher que queima o seu filho com pontas de cigarro e o abandona num caixote do lixo. Se a tese do Alfredo estivesse correcta nada poderíamos dizer acerca do amor desta mãe pelo seu filho. Mas podemos. É uma hipótese testável, que carece de fundamento empírico e que pode ser refutada pelas evidências.

O ponto principal do Alfredo é este: «Continuarão a perguntar como sabemos cientificamente que os primeiros cristãos não se enganaram a respeito de Cristo. Como se eu devesse fornecer uma prova científica do amor que me têm os meus pais.» O que eu pergunto não é como sabem “cientificamente”. É como sabem, ponto. O advérbio é redundante.

O Alfredo engana-se quando diz que a crença no seu deus está além da ciência porque, sendo uma relação de amor e confiança, não está sujeita a evidências empíricas. Se uma mulher sofre agressões do marido durante anos e continua a dizer que ele a ama e que merece a sua confiança podemos afirmar com fundamento objectivo que ela está enganada. Se os pais criam os filhos com afecto e cuidado, ou se os abandonam com indiferença, ou se os torturam cruelmente temos evidências diferentes que justificam conclusões diferentes acerca do seu amor pelos filhos. O que se infere destas relações depende de evidências empíricas.

Todos os nossos relacionamentos, e em especial os de amor e confiança, têm um fundamento empírico. O amor e a confiança crescem prova a prova, teste a teste. E se nem nos nossos pais ou cônjuges devemos confiar cegamente, insensíveis às provas ou à sua ausência, muito menos devemos fazê-lo com um deus invisível e um livro de histórias antigas.

Parte 1 aqui. E, como da outra vez, o Ricardo Alves antecipou-se.


1- Alfredo Dinís, 3-1-10, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

segunda-feira, janeiro 04, 2010

O naturalismo e as razões do chá.

Se este universo não for uma ilusão as nossas ideias podem servir para construir na mente modelos do que se passa lá fora. Para construir conhecimento. Seja do que for. Seja a geometria do espaço-tempo, a reprodução dos fungos ou o amor das mães pelos filhos, para conhecer algo é preciso formar ideias que correspondam a esse aspecto da realidade que se quer conhecer. Por isso as hipóteses não são exigências, não dão garantias, não precisam ser aceites por fé nem como certezas absolutas. São ferramentas. E as ferramentas avaliam-se pela sua utilidade e não por demonstrações com prova dedutiva.

Uma destas ferramentas é o naturalismo. A ideia que, perante qualquer fenómeno, vale mais a pena procurar uma explicação natural do que perder tempo a inventar deuses, duendes, espíritos ou milagres. É uma ideia que deu provas, não no sentido matemático de “prova” mas da forma que uma ferramenta dá provas. Funciona. De doenças a tempestades e da gravidez às colheitas, nestes últimos séculos tem-se descoberto imensas coisas para as quais a melhor explicação é naturalista, ao contrário do que se pensava antes. Uma prova da utilidade do naturalismo é o seu enorme sucesso para explicar um grande conjunto de fenómenos.

Outra prova da utilidade do naturalismo é que não se consegue explicar de outra forma nada daquilo que este (ainda) não explica. É verdade que não temos explicações naturalistas para tudo. O Miguel Panão deu o exemplo do chá: «Se a água ferve porque quero fazer chá, por muito que a física, química, neurologia se esforcem, nenhuma me irá produzir uma explicação adequada da razão pela qual quero fazer chá. Existe espaço para diferentes níveis de explicação do real.»(1) Se me der vontade de fazer chá às 18:30, admito que a neurologia de agora não consegue explicar porque me deu essa vontade nessa altura. Mas se bem que a ciência naturalista não consiga explicar porque me deu vontade de fazer chá às 18:30 em vez de às 18:15, a teologia e a filosofia também não conseguem. O espaço que o Miguel refere está lá, mas está vazio, sem explicações que o preencham.

E o Miguel arrisca se infere que nunca haverá explicação naturalista para a nossa vontade baseando-se no mero facto de não haver tal explicação neste momento. Arrisca porque essas lacunas têm desaparecido quando menos se espera. Entre o pára-raios e o antibiótico, uma data de gente com certezas como as do Miguel ficou com restos de tarte na cara. A explicação naturalista até já é plausível em certos casos destes. Se alguém sofrendo de um transtorno obsessivo-compulsivo sente uma necessidade incontrolável de fazer chá às 18:30 todos os dias, as melhores explicações vêm da psiquiatria e da neuropsicologia. Não têm grande detalhe, mas a “vontade livre”, além de ser ainda mais vaga, é claramente inadequada para explicar estes casos.

O sucesso do naturalismo deve-se principalmente a três factores. Um é a flexibilidade do termo. Tempos houve quando espíritos, fadas e duendes eram vistos como algo natural. Hoje são classificados de sobrenaturais enquanto que deformações no espaço-tempo e acontecimentos sem causa fazem parte das ideias que temos da natureza. Outro factor é que a abordagem naturalista permite-nos aprofundar os modelos que criamos. Se atribuirmos um fenómeno a um milagre ou à acção misteriosa de um ser invisível temos de ficar por aí porque não há forma de investigar os mecanismos dos milagres nem os actos de seres que não podemos detectar. Mas os modelos naturalistas tendem a ser testáveis, a prever novas observações e a permitir prosseguir com a investigação.

E o terceiro factor – o mais importante – é este universo não ter vestígios de duendes, deuses, demónios ou afins. Se tivesse nem sequer nos teríamos lembrado do naturalismo porque, ironicamente, o naturalismo é muito pouco natural nos humanos. O nosso forte é lidar uns com os outros. Preferimos resolver os problemas pedindo, ameaçando, oferecendo ou negociando. Por isso os nossos antepassados passaram dezenas de milhares de anos a tentar convencer deuses a mandar mais chuva, menos chuva, a curar doenças e a fazer crescer colheitas. A ideia que essas coisas pudessem ter causas naturais surgiu só há poucos milhares de anos, tornou-se aceitável só há umas centenas e ainda hoje a maioria das pessoas vai à bruxa, reza ou lê o horóscopo.

Alguns dos que continuam fieis à tendência inata de ver desígnio e intenção em tudo afirmam que o naturalismo da ciência não pode ser “demonstrado”. Pudera; não é um teorema. É uma ferramenta. Serve para explorar a realidade, para a dissecar, para ver como trabalha e ajudar a construir na nossa mente modelos do que se passa lá fora. E nisso é muito superior a qualquer alternativa inventada até hoje.

1- Comentário em Gavetismos

sexta-feira, janeiro 01, 2010

Treta da semana: proibir casais.

A possibilidade de eliminar a lei que restringe o casamento a pessoas de sexo oposto deixa muita gente preocupada. Uns, talvez julgando que o casamento homossexual seja obrigatório, têm medo que lhes estrague o seu. Outros dizem que é um ataque às tradições, como se isso fosse mau, ou acusam o governo de dar privilégios a uma minoria. O José Policarpo, apesar de não se casar, diz que tais coisas «ferem gravemente a compreensão cristã do homem e da sociedade»(1). Seja lá o que isso for.

Isto são tretas porque não têm nada a ver com legislação. É legítimo não querer casar-se com alguém do mesmo sexo. Até partilho essa preferência. E se alguém achar que um casal homossexual fere gravemente uma compreensão qualquer, pois tem o direito à sua opinião. Mas nada disso justifica que a lei proíba casamentos em função do sexo dos nubentes. Do outro lado fala-se em discriminação e direitos dos homossexuais, o que não está errado – a lei como está é discriminatória e viola alguns direitos – mas também não é o mais importante. O problema fundamental aqui não é a homossexualidade nem o casamento. É o limite dos poderes que a nossa sociedade deve conceder aos legisladores.

Nós temos de eleger algumas pessoas para fazer as nossas leis. Não há outra forma prática de regular a sociedade. Mas não é sensato dar-lhes carta branca. São pessoas como nós, e não as queremos a meter-se nas nossas crenças, a ditar que companhias podemos ter ou o que pensamentos podemos exprimir. E entre as coisas que estão fora do âmbito legítimo da legislação estão o sexo e a orientação sexual. Até a Constituição o diz, no ponto 2 do artigo 13º:

«Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»

A alteração à lei do casamento não é apenas uma questão de direitos dos homossexuais. Nem sequer é o casamento que importa. A questão de fundo é muito mais importante. Seja qual for a opinião da maioria, do governo ou do José Policarpo, não é legítimo que uns legislem sobre o sexo ou a orientação sexual dos outros. O que está em causa é o limite do poder que damos aos legisladores, e qualquer lei que tenha efeitos em função do sexo das pessoas é uma lei abusiva que devemos rejeitar.

1- Ecclesia, Defesa do casamento é questão civilizacional