quarta-feira, agosto 13, 2014

O problema da indiferença.

Os teólogos chamam-lhe o problema filosófico do mal. O termo é enganador porque o problema a que se refere não está no mal em si. Está na hipótese de existir um ser infinitamente bondoso que tudo sabe e tudo pode. É essa hipótese que claramente não encaixa no que observamos. Mas como nas religiões não fica bem admitir erros, muita gente se tem dedicado, durante milénios, à tarefa fútil de arranjar desculpas para que um deus infinitamente bondoso permita tanta desgraça. Neste momento, a racionalização mais popular parece ser é a de que o mal existe porque Deus respeita a vontade de cada um e a liberdade é incompatível com a garantia de que só há bem e não há mal*.

Mesmo restringindo o problema ao mal – actos intencionais da vontade humana – esta justificação é inconsistente com o que observamos nos conflitos entre vontades diferentes. Se A tem vontade de fazer mal a B e B tem muita vontade de que não lhe façam mal, o que determina o resultado não é a justiça nem o respeito por quem tem mais vontade. É simplesmente a força física ou a arma mais eficaz. O que as evidências demonstram é que os deuses, se algum existir, respeitam mais a Kalashnikov do que a vontade livre de cada um.

No entanto, o problema é muito mais vasto do que o mal enquanto acto com intenção. Todos os anos morrem mais de seis milhões de crianças pequenas, de até cinco anos de idade. Morrem principalmente de pneumonia, complicações na gravidez, asfixia durante o parto, diarreia e malária (1). Não morrem por alguém ter desejado que morressem. Não é a maldade que as mata. São bactérias e protozoários, falta de alimentos e termos evoluído bípedes de crânio grande a partir de antepassados quadrúpedes, resultando na passagem de um feto cabeçudo por dentro de uma pélvis que tem de ser estreita para a mãe conseguir andar. As tragédias que ocorrem sem qualquer intenção, maldade ou culpa, como doenças e acidentes, são muito mais numerosas do que aquelas que se pode atribuir a um mal intencional. Seja como for, perante qualquer tragédia, a Natureza comporta-se exactamente como se não fosse governada com bondade, inteligência ou vontade. Para o universo, morrer o filho nos braços da mãe é o mesmo que cair uma gota de chuva num charco. Se alguma emoção governasse isto tudo não seria amor nem ódio. Seria a indiferença absoluta.

A tragédia é muito maior do que o sofrimento dos humanos de hoje. A nossa espécie já sofre há centenas de milhares de anos, os primatas há cinquenta milhões e os mamíferos há trezentos milhões de anos. E sabe-se lá quantas espécies capazes de sofrimento existiram nos quatro mil milhões de anos de vida neste planeta e em quantos outros planetas nos treze mil milhões de anos que dura este universo, imensamente mais vasto do que qualquer coisa que as religiões puderam imaginar. A indiferença do universo perante toda esta tragédia é um problema muito maior para a hipótese do deus bondoso do que os humanos serem mauzinhos de vez em quando, que não passa de um detalhe insignificante na história do sofrimento. No entanto, nada disto configura o problema filosófico que os teólogos apregoam. Distinguir entre o bem e o mal é um problema filosófico importante mas o mero facto de existir sofrimento e de ser possível agir com bondade ou maldade é filosoficamente tão misterioso como a existência da pedra-pomes ou a possibilidade de fazer croché.

O “problema do mal” é apenas o problema de insistir, contra as evidências, que este universo é governado por um ser infinitamente bondoso. A alegação não só é obviamente falsa como até é moralmente repugnante. Sem um deus desses, muita da tragédia que enfrentamos é simplesmente algo que acontece. Uma doença incurável, um acidente imprevisível. Um azar, sem maldade nem culpa. Mas se acreditarmos num deus desses temos de acreditar que toda a tragédia é maldade porque temos de acreditar que toda a doença tem cura, que todos os acidentes são evitáveis e que a tragédia só acontece porque o ser supremo não se importa com quem sofre. A indiferença natural de um universo que não pensa nem sente torna-se na indiferença cruel de um deus que se limita a apreciar o sofrimento quando o poderia evitar sem qualquer esforço. Isto não é um problema filosófico do mal. É um problema psiquiátrico da fé.

* Isto é inconsistente com a tese de que Deus e todas as almas no paraíso têm vontade livre mas são incapazes de praticar o mal. A própria teologia exige que a vontade livre seja compatível com a bondade perfeita. Mas como é melhor refutar disparates com factos do que com outros disparates remeti esta objecção para o rodapé.

1- OMS, Children: reducing mortality

domingo, agosto 10, 2014

Treta da semana (passada): novamente a taxa.

Passados uns anos, a ver se a malta se esquecia, voltou a ideia de taxar tudo que guarde bits para ressarcir as sociedades de cobrança pelo prejuízo de não receberem tanto dinheiro quanto gostariam de receber (1). Os problemas continuam os mesmos. A lei consente a reprodução «Para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor» (artigo 81º do CDADC). Mas, pelo privilégio de podermos usar o que é nosso, seja papel, tinta, cassetes ou fotocopiadoras, pagamos uma taxa a entidades como a SPA, que depois gerem o dinheiro muito bem gerido antes de dar algumas sobras aos autores. Esta legislação visa incluir neste sistema também o domínio digital, o que não faz sentido por várias razões.

O equipamento digital é usado quase sempre para criar e guardar obras da autoria do próprio, sejam documentos de trabalho, mensagens escritas, fotografias ou vídeos, pelo que se estará a taxar a maioria dos autores em benefício da minoria que se registou e de um número ainda menor de administradores das organizações de cobrança. Mesmo que o benefício destes últimos seja considerável, a única criatividade que isto incentiva é a de encontrar formas de importar estes aparelhos sem pagar a taxa. Além disso, se bem que haja um direito à cópia privada em suporte analógico, no domínio digital o DRM impede a cópia sempre que o detentor do monopólio o queira porque é ilegal contornar protecções digitais de cópia mesmo que seja para exercer um direito legal. Finalmente, ao contrário do papel branco ou da cassete virgem, o suporte digital serve quase sempre para guardar material pago, como livros electrónicos, jogos, sistemas operativos e músicas. No fundo, querem cobrar-nos uma taxa pelo equipamento de que precisamos para lhes comprarmos o que eles vendem. E se bem que muita gente vá descarregar muita coisa sem pagar, enquanto isso for ilegal não faz sentido cobrarem uma taxa como contrapartida por um direito que, legalmente, não temos.

Infelizmente, há um argumento forte do lado desta iniciativa. A lei: «No preço de venda ao público de todos e quaisquer aparelhos mecânicos, químicos, eléctricos, electrónicos ou outros que permitam a fixação e reprodução das obras e, bem assim, de todos e quaisquer suportes materiais das fixações e reproduções […] incluir-se-á uma quantia destinada a beneficiar os autores, os artistas, intérpretes ou executantes, os editores e os produtores fonógrafos e videográficos» (artigo 82º do CDADC). Não importa se é injusto, absurdo, prejudicial ou contra-producente. É a lei. O que revela que o problema mais importante aqui nem são estas propostas reincidentes das taxas sobre os bits. O problema é o copyright em si.

É logo de desconfiar que haja legislação específica para compensar os detentores dos direitos exclusivos de cópia. Porque, apesar de ser justo que alguém seja compensado quando sofre um prejuízo, isso já está previsto na lei. Se um condutor espeta o carro contra uma loja tem de compensar o lojista não só pelos danos mas também pelos dias que este ficar sem clientes. É justo, e normal, que os tribunais obriguem a parte que prejudica a compensar a parte prejudicada. Mas isso exige que se demonstre ter havido prejuízo. O que há de anormal no CDADC é assumir-se automaticamente que a cópia é um prejuízo que tem de ser compensado. É como assumir que guardar o dinheiro debaixo do colchão causa prejuízo aos bancos, cozinhar em casa causa prejuízo aos restaurantes, ler livros emprestados causa prejuízo aos editores e que todos estes, por esse prejuízo, devem ser compensados com uma taxa se permitirmos que as pessoas façam estas coisas. É uma ideia absurda.

No entanto, este absurdo é o fundamento do copyright. Mesmo que por vezes se alegue outros “direitos”, vêm sempre dar aqui. A alegação de que o fundamento do copyright é um direito de propriedade sobre a obra não resiste à constatação de que, além de não se poder ter direitos de propriedade sobre abstracções – seria como vender a camisa e continuar dono da posição dos botões – ninguém aceita que o autor possa proibir alguém de declamar ou cantar, de emprestar ou revender livros e assim por diante. Só de copiar. A ideia de que o copyright se justifica porque o autor merece ser remunerado pelo seu trabalho também não serve. Por um lado, porque ninguém tem direito a remuneração sem que alguém assuma o dever de o remunerar. A remuneração justa exige um contrato. Por outro lado, ninguém propõe que se pague ao autor em função do trabalho que este teve. É sempre em função do número de cópias. Ou seja, assumindo que a compensação não é merecida pelo trabalho mas porque alguém copiou.

Continuo, como dantes, contra a taxa dos bits. Mas desta vez aproveito para apontar que o problema está no copyright e não na taxa. Porque não me prejudica que vocês leiam ou copiem este texto. Porque se não quisesse que lessem não o tinha publicado. E, especialmente, porque se eu quiser ganhar dinheiro com isto sou eu quem tem de arranjar quem me pague. Não é ao legislador que compete fazer esse trabalho por mim, nem com taxas nem com monopólios.

1- Como da outra vez, a Maria João Nogueira fez um apanhado das notícias e posts sobre o assunto.

sexta-feira, agosto 08, 2014

Estado mínimo.

Eu defendo que o propósito do Estado é maximizar a liberdade e que, por isso, deve intervir apenas quando a intervenção torna as pessoas mais livres. Apesar de favorecer políticas de esquerda em quase tudo, isto põe-me com a direita no que toca ao capitalismo e ao mercado livre. Não é que me convença a propaganda de que o capitalismo é o melhor sistema. É bom numas coisas mas é mau noutras. Simplesmente considero que é um direito de cada um comprar, vender e acumular o que lhe apetecer, apenas com a restrição de que não prive os outros de direitos igualmente importantes. Por isso, sou a favor de um Estado mínimo que garanta apenas a infraestrutura sobre a qual os indivíduos depois possam fazer as suas escolhas e não concordo que o Estado se deva imiscuir nos negócios privados, gerir empresas semi-públicas ou fazer parcerias económicas com entidades privadas. Por exemplo, há umas semanas o Banco de Portugal deu o seu aval à venda de mil milhões de euros de dívida subordinada do BES e quem confiou no regulador perdeu tudo. Não é isto que o Estado deve fazer.

Infelizmente, à direita custa aceitar o tamanho que o Estado mínimo tem de ter para poder dar liberdade à iniciativa privada. Para os privados poderem fazer e desfazer os seus negócios quando entenderem sem prejudicar a sociedade é preciso que o Estado garanta a prestação dos serviços mais importantes. Por exemplo, para que os donos das clínicas privadas possam oferecer os serviços que quiserem aos preços que quiserem, ou mudar de ramo quando quiserem, é preciso serviços públicos de saúde suficientes para servir quem deles precisar independentemente do que os privados decidam. Passa-se o mesmo com as escolas, universidades e a investigação científica e devia ser assim também com os serviços postais, telecomunicações, transportes e até com a banca. A alternativa é criar relações promiscuas entre o público e o privado que apenas juntam o que há de pior nas duas abordagens.

Os transportes colectivos são um de muitos exemplos deste problema. Ao contrário das pastelarias ou cabeleireiros, os transportes colectivos beneficiam mesmo quem não seja cliente, reduzindo a poluição, o tráfego, as necessidades de estacionamento e o consumo de combustível, e são uma peça importante na gestão de qualquer cidade. Isto não permite que se deixe estas empresas competir num mercado livre porque se uma vai à falência muita gente fica prejudicada até que outra a substitua. Se queremos que o Estado interfira o menos possível no sector privado o grosso dos transportes colectivos tem de ser um serviço público, fora das instabilidades do mercado, para que os privados possam explorar à vontade as oportunidades de negócio que surgirem sem prejudicar terceiros. Infelizmente, o que temos por cá é um molho de empresas privadas de transportes colectivos cuja actividade é controlada pelo Estado que, entre outras coisas, concede a cada uma direitos exclusivos de exploração de certos percursos. Isto nem é um serviço público nem é iniciativa privada. É uma aberração na qual os contribuintes pagam a infraestrutura – estradas e túneis do Metro, por exemplo – os accionistas recolhem os proveitos da exploração de monopólios e o Estado tem de estar constantemente a policiar tudo, o que além de ineficiente é um incentivo à corrupção.

Acontece o mesmo com a banca. Para permitir que os bancos privados actuem livremente o Estado teria de controlar uma percentagem grande do sistema financeiro. Isto não seria difícil se o Estado garantisse apenas os depósitos na banca pública, deixando os privados por sua conta. Quem quisesse segurança nos seus depósitos e tivesse garantias sólidas para obter crédito preferiria a banca pública e ficaria a banca privada com os investimentos de maior risco e mais especulativos. Dessa forma a falência de um banco privado não oneraria o Estado e afectaria apenas a parte mais volátil do sistema financeiro. Não digo que fosse um sistema perfeito, mas seria certamente melhor do que a trapalhada que agora temos, com os privados a fazer asneira, os contribuintes a pagar e um regulador que não regula.

O Estado mínimo deve ser o Estado que interfere o menos possível na actividade privada e que está claramente separado desta. É um Estado que não se mete nos detalhes dos negócios. Não faz contratos com colégios privados, não concede direitos exclusivos a transportadoras, não faz parcerias com construtoras, não diz aos bancos quando podem emitir dívida nem recomenda aos accionistas que a comprem. O que for preciso regular, da poluição às relações laborais, regula de forma genérica, transparente e sem decisões ad hoc. O Estado mínimo estipula as regras e garante a infraestrutura, seja em estradas, educação, justiça ou finanças, e o resto fica com o sector privado. Mas para o Estado ser mínimo neste sentido não pode ser pequeno. Como o lastro, tem de ter o peso que for preciso para manter o barco direito.

Uma das maiores aldrabices políticas dos últimos tempos é a propaganda do Estado sem “gorduras”, que entrega coisas importantes ao sector privado e depois confia na regulação para manter o mercado na linha. Isto só é bom para quem tem cunhas. Da certificação energética à televisão digital terrestre e da banca aos transportes colectivos é evidente a facilidade com que alguns interesses privados tomam conta da regulação. Não só pelos políticos que fazem carreira desta promiscuidade entre o público e o privado mas também porque a complexidade dos problemas muitas vezes obriga a delegar a regulação nos próprios regulados, ficando a raposa a cuidar do galinheiro. O Estado deve ser mínimo, sim, mas esse mínimo é maior do que o Estado que temos agora.

domingo, agosto 03, 2014

Treta da semana (passada): dualismo e materialismo.

A propósito do post sobre o espiritismo, de há umas semanas, o leitor Cláudio Filipe comentou recentemente que eu revelo «uma total ignorância da relação entre a mente e o cérebro.» Passou então a elucidar-me para que eu só fique parcialmente ignorante, esforço que agradeço desde já:

«O problema da relação entre a mente e o cérebro é um problema muito antigo e há séculos que é abordado por filósofos e cientistas. Para simplificar, há duas posições: a posição que diz que a mente é um simples produto do cérebro que é a posição materialista também chamada de produtiva (porque é o cérebro que produz os pensamentos) e a posição que diz que a mente, embora estreitamente relacionada com o cérebro durante a vida do indivíduo, é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio. Diz-se que é a hipótese transmissiva, na medida em que o cérebro não produz os pensamentos, apenas os transmite.»

Depois de enunciar vários nomes de pessoas que favorecem a segunda hipótese, alega que esta explica perfeitamente o efeito de drogas, Alzheimer e lesões cerebrais porque «Se nós tivermos um televisor danificado, as imagens que vamos ver vão sofrer de forma correspondente. […] Mas não é o nosso televisor que produz os programas, ele apenas os transmite. Da mesma forma, o nosso cérebro pode ser apenas um transmissor e não o produtor dos pensamentos.» Se bem que esta hipótese seja atraente pela possibilidade de haver uma mente independente do cérebro e potencialmente livre do triste destino da matéria orgânica, as evidências são-lhe contrárias. Se nós tivermos danos no nervo óptico ou na retina podemos ver pior ou deixar de ver. Isto é o que se espera de estruturas que transmitem a informação. Mas danos no lobo occipital não só eliminam a capacidade de ver cores como também podem fazer perder a capacidade de imaginar cores. Não se trata apenas de olhar para o tomate e vê-lo de cor cinzenta. Trata-se da situação aflitiva de se lembrar que tem cor mas já nem sequer conseguir visualizar mentalmente o vermelho do tomate (1). Outro exemplo de evidências contra a “hipótese transmissiva” é o que acontece depois de uma comisurotomia do corpo caloso, um tratamento drástico para casos extremos de epilepsia que consiste em cortar as fibras nervosas que unem os dois hemisférios do cérebro. Mostrando ao paciente a imagem de um objecto no lado esquerdo do seu campo visual, o paciente não consegue dizer o nome do objecto mas consegue explicar o que é gesticulando com a mão esquerda, desenhá-lo com a mão esquerda ou encontrá-lo pelo tacto com a mão esquerda. Mas só com a mão esquerda. Se a imagem do objecto for apresentada do lado direito do campo visual o paciente já consegue dizer o nome do objecto e encontrá-lo pelo tacto com a mão direita, mas agora não consegue fazê-lo com a mão esquerda. Não se trata de um mero problema de transmissão. Todo o raciocínio está separado nos dois hemisférios e, se bem que só um deles controla a fala, cada um consegue identificar o objecto, perceber o que se pede para fazer e, dentro das suas capacidades, fazê-lo. Exactamente como se cortar o cérebro ao meio dividisse a mente em duas também.

A neuropsicologia já encontrou evidências suficientes para enterrar de vez esta ideia de que a mente é algo independente, com existência própria. Tudo indica que a mente é simplesmente algo que o sistema nervoso faz, tal como a circulação do sangue é algo feito pelo coração e vasos sanguíneos e a respiração é feita pelos pulmões, sangue e células, sem que circulação, respiração ou mente sejam coisas com existência própria. É por isso irónico que digam que esta é que é uma visão materialista e redutora da mente.

O dualismo de substância, a tal hipótese de que a mente «é uma entidade separada, distinta do cérebro, irredutível por direito próprio», é uma hipótese inútil porque, no fundo, limita-se a dizer que além da “coisa material” há também uma “coisa pensante”. É um análogo do princípio dormitivo de Moliére mas com o defeito de nem ser a gozar. A hipótese de que a mente é um processo em vez de uma coisa, tal como são a digestão e a corrida, além de ser muito mais útil é menos materialista e menos redutora. É mais útil porque um processo é algo que podemos tentar compreender, e a neuropsicologia avançou mais nesta matéria em poucas décadas do que as teologias todas em vários milénios. É menos materialista porque a tal “substância mental” que Descartes postulou é, no fundo, apenas um tipo diferente de matéria. Não ocupa espaço e pensa mas, de resto, é “coisa” como a matéria, partilhando com esta os atributos principais de persistência e existência autónoma. A hipótese da mente como um processo admite que, além das “coisas”, importa também a sua organização e interacção dinâmica, aspectos que não são materiais em si. E é menos redutora porque permite modelar muito mais detalhes do que simplesmente dizer que temos pensamentos porque a nossa mente é uma substância que pensa, o que é tão redutor que acaba por ser ridículo.

1- Wikipedia, Cerebral achromatopsia, em particular o famoso caso do pintor.
2- Nature News, The split brain: A tale of two halves.

sábado, agosto 02, 2014

Controlite crónica.

O Álvaro Fonseca rescindiu o seu contrato de professor universitário após quase 28 anos no ensino. Com a ressalva de que me sinto demasiado próximo do Álvaro e da situação que ele descreve para ser imparcial, tenho de dizer que concordo com as principais razões que ele apresenta. Também me desanima a crescente burocratização do ensino e a gestão cada vez mais centralizada. Parece-me que se está a degradar o ensino universitário em favor de indicadores que ficam bem na folha de cálculo mas que pouco contribuem para o que devíamos fazer. Por exemplo, avaliar os cursos pela empregabilidade dá uns gráficos porreiros mas ignora o fundamental, que é a educação de cada pessoa ser um direito seu e não um direito de um eventual empregador. Mas remeto os detalhes acerca da FCT para o post do Álvaro (1). Aqui vou abordar o tema de forma mais genérica, não só porque não tenciono rescindir o meu contrato mas também porque o problema me parece muito mais vasto.

Centralizar os detalhes é bom para maximizar o lucro do abate de frangos, se o quisermos fazer com trabalhadores mal pagos e pouco motivados (2). Põe-se a máquina a trabalhar, cada um pendura, corta ou ajeita conforme o posto em que está e quem refilar vai para a rua. Num hospital isto não funciona. Cada médico e enfermeiro tem de tomar decisões rápidas em situações complexas, não há uma medida simples de desempenho se queremos saúde em vez de lucros e, mesmo que a administração queira fazer da ética laboral o que os outros fazem aos frangos, os cuidados de saúde são muito mais sensíveis à motivação e empenho dos profissionais do que a tarefa de pendurar frangos na máquina de depenar.

A centralização paga-se cara nas tarefas mais complexas. Para a informação chegar ao decisor é preciso relatórios, inquéritos e papelada. Como a decisão também é complexa depois é preciso despachos, regulamentos e esclarecimentos antes de ser implementada. Quanto mais longo o percurso mais trabalho dá, mais tempo demora e mais provável é haver erros. O decisor também precisa de simplificar para poder decidir. Se os docentes fossem avaliados nos grupos de disciplina, escolas, secções e departamentos, podia-se considerar a qualidade das aulas que dão. Mas para centralizar o processo é preciso converter tudo numa tabela de números para ordenar centenas ou milhares de docentes de uma vez, o que exige avaliá-los por indicadores grosseiros como a nota num exame escrito ou as horas de aulas que deram e quantos alunos tiveram. Pior ainda, quando as pessoas começam a degradar o seu desempenho para maximizar estes indicadores – por exemplo, estudando para o tal exame em vez de preparar as aulas que têm de dar – os inventores destes sistemas vão se congratular pela sua gestão genial porque, apesar de estar tudo a ficar pior, as linhas no gráfico vão a subir.

Outro efeito perverso da centralização é o conflito entre objectivos. Quando os procedimentos e melhorias são decididos por quem desempenha as tarefas é fácil alinhar os objectivos dos indivíduos com os objectivos da organização. Por exemplo, se cada professor tenta melhorar a forma como lecciona tenta também melhorar o ensino na escola. Mas quando alguém é encarregue de centralizar as melhorias os objectivos começam a divergir. Por um lado, porque estará sobre pressão para justificar o seu posto e “tomar medidas” mesmo que sejam desnecessárias. O exemplo mais extremo disto é a profusão de ministros e secretários de Estado cujo desempenho é pior do que se não fizessem nada. Por outro lado, porque o desempenho da sua tarefa de gestão depende de medidas que degradam o desempenho dos outros que ele está a gerir. Uniformizar processos facilita a gestão mas trata por igual coisas que são diferentes. Recolher informação de forma estandardizada é essencial para gerir muitos dados mas descura detalhes importantes. Em geral, muito do que simplifica a vida ao gestor dificulta o trabalho a quem faz o mais importante.

Finalmente, há o impacto que estas medidas têm na motivação das pessoas. Quanto mais qualificado for quem desempenha uma tarefa mais frustrado ficará com a interferência de quem, desprezando os detalhes, pinta tudo a rolo e o obriga a fazer as coisas pior do que poderia fazer. Quanto mais empenhado estiver no seu trabalho mais desmotivado vai ficar com burocracias inúteis e avaliações inadequadas. A centralização das decisões só funciona quando o decisor é tão mais competente e motivado do que os seus subordinados que a diferença compensa o custo de centralizar as decisões. Para depenar frangos, por exemplo. Mas na função pública isto raramente acontece, não só porque o Estado emprega uma percentagem muito grande das pessoas mais qualificadas do país como também porque quem chefia é um funcionário público como os outros. Não é dono de nada nem tem mais interesse no sucesso da organização do que têm os demais. Entre pares a centralização não resulta.

Pior do que o corte nos salários, o que tem degradado mais o desempenho da função pública é um modelo de gestão que assume que os funcionários públicos que fazem o trabalho são menos competentes do que os outros funcionários públicos que dizem como o fazer. A consequente proliferação de papelada, regras absurdas e indicadores inúteis dificulta o trabalho a todos, desmotiva e disfarça os podres porque na folha de cálculo parece que está tudo bem. É por isso que queria salientar esta decisão do Álvaro. Só quando alguém tem a coragem de dizer que já chega e bater com a porta é que de fora se pode ter uma ideia do preço que estamos todos a pagar por se tentar gerir a função pública como se fosse a fábrica de embalar frangos.

1- Álvaro Fonseca, Escolher outro caminho
2- É bom para os accionistas, mas só se não comerem o frango: Guardian, Revealed: the dirty secret of the UK’s poultry industry

domingo, julho 27, 2014

Treta da semana (passada): números pares.

«11:11 – Tem Visto Números Pares Por Toda a Parte?», pergunta o título da notícia no portal Prisão Planetária, na secção sobre “Espiritualidade” (1). A primeira frase do artigo é ainda mais intrigante: «Quantos de vocês já tiveram a experiência em ver números pares (11:11) por todo o lado.» O cérebro insiste que termina num ponto de interrogação e, assim que os olhos finalmente o convencem de que não, que é mesmo uma afirmação, interroga-se como raio 11:11 é “números pares”. O enigma esclarece-se ao perceber que este artigo é uma tradução de um outro no site “Waking Times” (2) que por sua vez se baseia num “estudo” do Uri Geller (3). O potencial para a confusão é assim superior a 8000*.

Resumindo, trata-se do extraordinário, enigmático, assombroso e transformador fenómeno de olhar para o relógio e serem 11:11 da manhã ou da noite. Ou 1:11, que também dá e, aparentemente, também é par. Notem que isto vem de alguém que nos assegura «não sou um viciado em horas». Trata-se assim de um testemunho idóneo, muito diferente das alegações duvidosas de quem estiver viciado numa qualquer unidade de tempo.

Olhar para o relógio regularmente a estas horas (mas sempre sem vício) foi um «um gatilho, género de uma activação» que levou a consciência da autora do artigo original «a despertar e a recolher as informações que eu tinha esquecido antes de minhas experiências com os números 11:11. E é isto que muitas vezes acontece, quando você começa a ver estes números, algo muda dentro de si.» Isto explica porque só agora é que a humanidade está a acordar para a consciência planetária, pois este processo seria impossível com relógios de sol, clepsidras ou relógios mecânicos de ponteiro. Só com o advento do digital é que conseguimos expandir a nossa espiritualidade. Por exemplo, parando o forno de micro-ondas aos 00:01 enquanto trauteamos a música da Missão Impossível.

O artigo do Uri Geller também é muito interessante. 11:11 está relacionado com 11 de Setembro. O nome “Setembro” vem do Latim para sete, septem, de um calendário original de 10 meses. Com a adição de Janeiro e Fevereiro, Setembro passou a ser o mês nove. Por um raciocínio que escapa aos não iniciados, 11:11 passa então a referir o ataque terrorista de 11 de Setembro. Que foi uma coisa boa, segundo Uri Geller, porque «esses ataques teriam sido muito piores se os terroristas tivessem usado uma arma nuclear suja na forma de uma mala-bomba que poderia ter sido colocada em qualquer sítio de Nova Yorque, Los Angeles, Londres ou qualquer cidade populosa. Se isso tivesse acontecido as consequências teriam sido muito mais devastadoras». Por isso é que ele crê que «aqueles que morreram a 11 de Setembro não morreram em vão» e quando vê o número 1111 reza «pelas crianças doentes e pela paz mundial, a reza demora só um momento mas é muito poderosa».

O significado profundo do número 11 é comprovado não só por uma das teorias das cordas propor 11 dimensões mas, mais importante aínda, porque «Brian Greene tem 11 letras no seu nome. Para quem não sabe, ele é um físico e o autor d' O Universo Elegante, um livro a explicar a teoria das cordas». Isaac Newton e John Schwarz também têm 11 letras, e «1 pessoa + 1 pessoa = 2 pessoas = igualdade». Mais outras provas do mesmo género, das quais destaco que «se contar os dedos nas suas mãos em aritmética unária – sem zeros – então 10 dedos, em matemática unária, = 11111111111 – EXACTAMENTE 11 UNS»(3). Em rigor, isto não é verdade. Na aritmética unária usa-se um só símbolo para contar, por exemplo um traço, e para contar 10 escreve-se 10 vezes esse símbolos e não 11. Mas, no contexto, nem é dos maiores problemas.

Os mais cépticos certamente dirão que isto é coincidência. Também eu julguei que seria quando me ocorreu que 11:11 aparece no relógio uma ou duas vezes por dia. No entanto, não é só este número. «Quando comecei a entender e a perceber que ver estes números era significativo, então comecei a ver vários outros números numa base regular. Eu iria passar por um período em que via múltiplos de 5 em todos os lugares, todos os dias. E, em seguida, poderia ver múltiplos de 3, ou 4, ou 6, ou 7, ou 12, e assim por diante.»(1). Um ainda poderia ser coincidência, mas ver vários números ao olhar para o relógio é uma evidência forte de que há aí alguma coisa mais. Depois de ler este artigo fiquei sinceramente desconfiado de que os números que surgem no relógio representam alguma coisa e não aparecem aleatoriamente. Julgo que finalmente estou no caminho para uma «consciência iluminada sobre o potencial para a criação da nossa nova terra.» Ou, pelo menos, para saber ver as horas.

* 9000 foi um erro de tradução. Eu posso gozar com deuses, crenças, política e o resto, mas há coisas que levo a sério.

1- Prisão Planetária, 11:11 – Tem Visto Números Pares Por Toda a Parte?
2- Waking Times, 11:11 – Have You Been Seeing These Numbers Everywhere?
3- Uri Geller, The 11:11 phenomenon

sexta-feira, julho 25, 2014

Ciência e religiões.

No que tenho lido e discutido sobre isto tenho encontrado três reacções à incompatibilidade entre a ciência e as crenças religiosas. Uma consiste em afirmar a crença religiosa como cientificamente sólida mesmo que isso exija mentir descaradamente. É o que fazem os fundamentalistas, dos criacionistas aos cientólogos. Outra é alegar que ciência e religião são separadas e nunca interferem. É atraente para quem não quer chatices, como os agnósticos, por exemplo. A terceira é defender que ciência e religião se complementam porque lidam com realidades diferentes. Esta é popular entre os católicos que, apesar das evidências em contrário, insistem que fé e razão não se podem contradizer.

A primeira abordagem deturpa os resultados da ciência. As “evidências científicas” para o Dilúvio, para a dianética ou para a misoginia muçulmana são tão disparatadas que os crentes mais esclarecidos até pedem que não se mencione essas coisas, não vá alguém notar que “religião” abarca mais do que a versão light que estes defendem. A tese da não-interferência assume que a investigação dos factos está isolada da procura pelos melhores valores. Isto é fundamentalmente falso porque a ciência assume valores e qualquer discussão ética depende de factos. No entanto, mesmo considerando ciência e ética superficialmente independentes, as religiões não são ética. As religiões são sistemas de regras assentes em alegações acerca do que os deuses querem e toda a autoridade religiosa deriva desses alegados factos.

A tese da complementaridade deturpa a ciência, mas a deturpação passa mais facilmente despercebida. A ideia fundamental é a de que a ciência lida com a matéria enquanto “a religião” (no singular, como se só houvesse uma) lida com o espírito. Assim, como disse recentemente o filósofo Michael Ruse: «Se a pessoa de fé quiser dizer que Deus criou o mundo, não acho que se possa negar isto por razões científicas»(1). O que Deus faz está no campo da religião e fora dos assuntos da ciência. Isto parece razoável mas está errado.

O erro é julgar que a ciência lida com aspectos da realidade como a matéria, o espaço e energia como o carpinteiro trabalha com a madeira e o pedreiro com a pedra. Assim, tal como o carpinteiro não solda e o pedreiro não aduba, o cientista não toca no sobrenatural. Desde que seja aquele deus, é claro. Os religiosos não levantam objecções quando a ciência refuta as crenças sobrenaturais dos outros; só as suas é que estão fora do âmbito da ciência, noutro “nível da realidade”. Isto está errado porque o propósito da ciência é encontrar as ideias – modelos, hipóteses, teorias e afins – que melhor correspondam à realidade. Por isso, aquilo que a ciência molda, esculpe, serra e martela são as ideias e não a realidade em si.

Para se ir aproximando da verdade, a ciência confronta constantemente todas as ideias umas com as outras e com tudo o que, a cada momento, justificadamente se julga saber. Não é um processo linear nem isento de retrocessos porque por vezes revela que o que se julgava ser conhecimento era erro. Mas só isso já é uma vantagem sobre as alternativas e a história da relação entre a ciência e as religiões é uma prova de como a ciência é a mais fiável. Apesar de inicialmente terem tentado, pela força, que fosse a ciência a ceder, o que tem sempre acontecido é a ciência revelar erros nas crenças religiosas. O contrário nunca aconteceu.

Também é errado pensar que a ciência só serve para avaliar ideias que sejam empiricamente testáveis. O conhecimento não é um saco de alegações soltas. É um edifício de modelos e teorias fortemente interligados. As fundações têm de assentar em dados empíricos mas, desde que seja sólido, o edifício pode ir muito mais alto. É por isso que a ciência pode responder a perguntas hipotéticas como o que acontece se explodir uma bomba nuclear no Chiado ou como se pode cultivar plantas em Marte. Mesmo sem testar directamente as respostas pode-se avaliá-las pela sua consistência com o edifício de conhecimento que já está construído. É também assim que podemos concluir, com legitimidade científica, que a Alexandra Solnado não fala com Jesus, que o professor Bambo não tem poderes videntes e que as biópsias que a Maya faz por telefone não são de fiar. Não por podermos testar cada alegação individualmente mas porque o conhecimento que temos, assente num fundamento empírico, faz com que a hipótese mais plausível seja a de que essas alegações são falsas.

Aplica-se o mesmo às doutrinas religiosas. Considerando o que sabemos, desde a física e cosmologia à psicologia e sociologia, a hipótese que tem melhor fundamento é a de que os deuses são uma invenção humana. Se bem que a ciência não explique tudo, sem deuses explica muita coisa enquanto os deuses não explicam nada. A imaginação humana tem limites e não chegaria para inventar a mecânica quântica ou a teoria da relatividade sem ser guiada, passo a passo, por muitos indícios experimentais. Mas os mitos religiosos são comparativamente simples e vagos e estão bem dentro daquilo que os humanos conseguem inventar por si. Se a pessoa de fé quiser dizer que Deus criou o mundo, está no seu direito. Diz e acredita o que quiser. Mas é legítimo que a ciência rejeite essa hipótese porque há uma hipótese alternativa com um fundamento muito mais sólido: os deuses são personagens fictícios.

1- New York Times, Opinionator, Does Evolution Explain Religious Beliefs?

domingo, julho 20, 2014

Treta da semana (passada): Bruno, o anti-taurino.

Estava previsto que no dia 12 de Julho o Bruno Nogueira iria actuar na praça de touros de Montemor-o-Novo. No entanto, acabou por cancelar o espectáculo depois de ter recebido várias ameaças anónimas (1). Aparentemente, esta infeliz situação deveu-se ao protesto da Associação de Tradições e Cultura Tauromáquica (ATCT). Neste meio, o termo “cultura” não tem conotações como respeito pela liberdade de expressão ou pelo direito de criar arte sem fazer feridas. “Cultura”, neste contexto, designa especificamente o direito de espetar ferros nos bovinos e de ameaçar quem discorde da legitimidade de tal “arte”. Como o Bruno Nogueira tinha feito alguns programas menos lisonjeiros da arte centenária de maltratar animais em público (2), a ATCT considerou que não deveriam «oferecer ao humorista anti taurino tempo de antena, e recursos, para que possa manifestar-se, na nossa própria casa, contra a actividade que defendemos» (3).

Há várias coisas nesta alegação que me parecem incorrectas. Quase tudo, na verdade. Primeiro, parece-me muito mais anti-taurino quem se entretém a espetar ferros nos touros do que quem reprova a entretenga. Se fosse eu o visado desta “actividade” seria óbvio quem estava do meu lado e quem estava contra mim. Também me parece duvidoso que fossem oferecer ao Bruno Nogueira o espaço para se manifestar. A praça de touros de Montemor-o-Novo é gerida pela Montemor é Praça Cheia - Empresa Tauromática, Lda., que não me parece ser o tipo de entidade que se dedica a oferecer coisas. É mais plausível que o acordo celebrado com o humorista tivesse visado o proveito mútuo pela venda de bilhetes do que oferecer o uso da praça para uma manifestação ideológica. Finalmente, pelo que pude apurar, a praça de touros de Montemor-o-Novo é propriedade do Estado e não propriedade da ATCT. Em rigor, é tanto casa do Bruno Nogueira como quanto é dos sócios da ATCT (4).

Mas concedo que o Bruno Nogueira é certamente contra a “actividade” que a ATCT defende. E não é só a actividade de perfurar bovinos. Tendo as ameaças levado o Bruno Nogueira a cancelar a actuação, a ATCT declarou «Missão Cumprida!». Em vez de repudiar as ameaças de violência, limitou-se a desafiar «quem quer que o entenda fazer a mostrar e provar que [a ATCT] o tenha dito ou escrito em qualquer dos seus comunicados anteriores»(5). Este “não conseguem provar que somos culpados” parece ser mais uma defesa da actividade de coagir os outros pela violência, como se fossem touros, do que propriamente uma declaração da inocência da ATCT.

Numa nota final, gostava de comentar a exortação da ATCT de que «No que de nós depender, “pirómanos não dão palestras em Quartéis de Bombeiros!”» Também me parece estranho organizar uma palestra dada por um pirómano a bombeiros no seu quartel. Mas até pode ser boa ideia trazer um bombeiro ao asilo para falar do sofrimento injustificável que os aficionados da piromania causam a terceiros com a sua “Arte”. Admito que não são de esperar grandes mudanças da parte dos pirómanos. É doença difícil de tratar. Mas, esticando mais um pouco a metáfora, tal iniciativa pode ter um efeito salutar nas muitas pessoas que toleram a piromania só por achar que é arte ou tradição. Arte ou tradição não são desculpa para fazer mal aos outros, seja de que espécie forem.

1- DN, Bruno Nogueira cancela espetáculo após ameaças
2- TSF, Gabriela Bandarilha e Canela e João Moura Junior, o pior amigo do homem
3- ATCT, NÃO QUEREMOS QUE O ANTI TAURINO BRUNO NOGUEIRA ACTUE NA PRAÇA DE TOIROS DE MONTEMOR-O-NOVO!
4- C. M. Montemor-o-Novo, Salas de Espetáculos
54- ATCT, Bruno Nogueira em Montemor: - Missão Cumprida!

domingo, julho 13, 2014

Treta da semana (passada): A experiência.

O Facebook mostra a cada utilizador uma página com publicidade, notificações e posts seleccionados por critérios que desconhecemos mas que certamente visam manipular as nossas emoções e comportamento para maximizar as visitas. Sempre me pareceu óbvio ser esse o propósito da empresa. É um negócio de venda de espaço publicitário e não uma instituição de caridade. Surpreendentemente, muitas pessoas ficaram agora chocadas por o Facebook ter mostrado algumas páginas com publicidade, notificações e posts seleccionados por critérios que, além dos que desconhecemos, também incluíram a análise de palavras chave para estimar o seu conteúdo emocional (1).

Experiências e manipulações dessas hé em todo o lado. Na publicidade, como é óbvio, mas também nos programas de televisão que nos levam a ver os anúncios dos intervalos. Há nas notícias, tanto na forma como são dadas como na escolha do que se noticia, e há em cada montra de cada loja e em cada supermercado. Não é por acaso que os brinquedos estão logo à entrada e os legumes e o leite lá bem no fundo. E estão sempre a experimentar para nos manipular melhor. Sendo isto tão comum, é intrigante a reacção ao que o Facebook fez. Uns dizem que é um abuso da sua informação pessoal, outros que não deviam poder fazer isto sem o consentimento informado das pessoas e outros até querem leis para proibir estas coisas (2).

A reacção dos utilizadores escandalizados parece dever-se a um mal-entendido acerca da sua relação com a Facebook. Não se escandalizam quando os supermercados põem os bens de primeira necessidade longe dos acessos porque o stock é deles e arrumam o arroz onde quiserem. Mas muita gente julga que o que põe no Facebook é seu. A ilusão não é acidental porque todo o sistema está concebido para dar essa impressão. Escrevemos aqui, marcamos ali, clicamos acolá e parece que somos nós quem manda. Mas a realidade é que damos esses dados à empresa e autorizamo-la a fazer o que quiser deles. Legalmente, é o que está no contrato; eticamente, somos responsáveis por essa escolha; e, na prática, assim que os nossos dados, textos e fotografias estão nos servidores da empresa ficam fora do nosso controlo. Nem aquilo que demos à empresa é nosso nem sequer somos os seus clientes. Uma forma lisonjeira de pensarmos nesta relação é imaginando-nos como colaboradores voluntários do Facebook. Mas o mais realista é imaginar que somos mercadoria. Somos pacotes de arroz. Porque o negócio destas empresas é vender a nossa atenção aos seus verdadeiros clientes, que é quem lhes paga para fazer publicidade. Nós somos o stock e o que lhes damos é apenas a montra.

Os académicos que exigem consentimento informado também fazem confusão. É claro que uma universidade ou entidade pública que financie experiências com pessoas deve exigir que se peça o consentimento prévio aos sujeitos da experiência. Mas isto é um extremo num contínuo de situações com exigências diferentes. Os produtores de um programa de apanhados não vão pedir primeiro o consentimento informado das pessoas a quem vão pregar partidas. Só depois é que pedem autorização para publicar as imagens da figura triste que as vítimas fizeram. E um supermercado que expõe revistas junto às caixas para ver se o tédio de esperar a vez é motivação para as comprar não precisa de pedir autorização a ninguém. Esta é a situação em que está a experiência do Facebook, que simplesmente organizou a “montra” para ver como conseguir mais visitas.

Alguns legisladores é que, suspeito, protestam porque percebem bem o que está a acontecer. A manipulação faz parte da comunicação e os meios que chegam a muita gente sempre foram usados para isso. Mas cadeias de televisão, rádio ou jornais exigem uma infraestrutura pesada que os políticos sabem influenciar. Twitters e Facebooks são um bicho diferente. Surgem do nada, podem desaparecer de um momento para o outro e qualquer tentativa de os manipular dá resultados imprevisíveis. Naturalmente, isto assusta algumas pessoas que, por isso, condenam a “manipulação” do Facebook mesmo que não se oponham ao Big Brother nem à agregação da comunicação social em enormes empresas controladas por poucas pessoas.

Se não queremos que espreitem para dentro de nossas casas penduramos cortinas. Se queremos conversar em privado fechamos a porta. E se não queremos que mexam nas nossas coisas pomos fechaduras e trancas. Quem protege a nossa privacidade, em primeiro lugar, somos nós e não a “regulação”. Na Internet é a mesma coisa. Se queremos conversas em privado temos de usar encriptação e se queremos canais seguros de comunicação temos de usar redes distribuídas em vez de serviços centralizados. O Blogger, o Facebook e o Twitter são convenientes mas tão pouco seguros como um banco de jardim. Não servem para o que for privado. Preocupa-me que reajam a esta experiência da Facebook como se fosse excepção quando é a norma em todo o lado. Preocupa-me que culpem a Facebook porque o que publicamos é da responsabilidade de cada um de nós e não das empresas ou do legislador. E preocupa-me especialmente que façam tanto alarido com a informação que voluntariamente cedem quando o problema principal é a informação que Estados e empresas recolhem sem que o possamos evitar. O que devíamos exigir era, por exemplo, uma lei proibindo os prestadores de serviços de comunicação de guardar quaisquer registos que já não fossem necessários para cobrar serviços prestados. Uma vez paga a factura, deviam ser obrigados a apagar todos os registos das nossas chamadas e do tráfego de Internet. Em vez disso, a regulação vai cada vez mais no sentido contrário, obrigando a uma acumulação de dados pessoais que está totalmente fora do nosso controlo e é muito pior do que qualquer coisa que a Facebook faça com os dados que lhe dermos.

1- NY Times, Facebook Tinkers With Users’ Emotions in News Feed Experiment, Stirring Outcry
2- Guardian, Facebook reveals news feed experiment to control emotions

domingo, julho 06, 2014

Confuso.

Já foi há mais de um ano mas só agora é que o Google me levou lá: «Senhor Ludwig Krippahl Que confusão vai nessa cabeça.»(1) Não dá muitos detalhes mas, pela data e pelo nome da autora, presumo que seja a propósito do meu post do dia anterior, sobre o Fernando Ulrich e a confiança que gentilmente manifestou na capacidade dos (restantes) portugueses aguentarem a austeridade (2). Seja como for, pouco importa porque a crítica é tão certeira quanto sucinta. Há mesmo muita confusão na minha cabeça.

Hipoteticamente, se eu tivesse uma inteligência muito superior à que tenho, talvez pudesse compreender a complexidade do que me rodeia sem sentir confusão nenhuma. Mas como estou muito aquém desse ideal, compreender as coisas é uma tarefa árdua e cheia de confusões e dúvidas. Qualquer clareza que consiga arrancar à confusão é preciosa, não só pela raridade relativa mas também porque só ideias claras podem ser testadas e nos dão compreensão. No entanto, o resultado de compreender algo com clareza é, quase sempre, abrir os nossos horizontes a uma confusão ainda mais vasta que a ignorância antes escondia. Vou dar um exemplo, a ver se isto não fica mais confuso do que é necessário.

Numa entrevista em Fevereiro, Fernando Ulrich afirmou que «É um mito - e em breve vamos divulgar algumas informações sobre isso - não ter havido taxa de esforço e sacrifício para praticamente todos na austeridade» porque «As pessoas que mais ganham, tiveram cortes - seja pela via dos cortes, seja pela via da carga fiscal - muito maiores do que as pessoas que ganham menos.»(3) Realmente, o próprio Fernando Ulrich teve um grande corte no ordenado, com uma redução de 33% entre 2011 e 2012 (4). Se não pensarmos mais não há confusão: todos esbanjaram e agora todos têm de suportar a austeridade. Mas, se pensarmos, então está tudo estragado.

A menos que comprem as coisas queimando as notas como oferenda aos deuses, é impossível que todos gastem sem que ninguém ganhe. A origem da crise foi mais confusa. Foi, basicamente, uma burla. O colapso do crédito subprime aconteceu quando se descobriu que os pacotes de dívidas que os banqueiros estavam a vender não valiam nada, ao contrário do que os vendedores prometiam, porque tinham sido inventados ao desbarato com garantias fictícias e credores sem possibilidade de pagar. Um BPN à escala mundial. Como uma parte ridiculamente grande da economia assenta no negócio de fazer apostas com o dinheiro dos outros, toda a economia ficou abalada com isto e a receita fiscal caiu. O Estado teve de cortar nas prestações sociais e aumentar os impostos porque alguns banqueiros destruíram uma boa parte da economia para se reformarem milionários.

Também é confuso que o Ulrich meça a tal «taxa de esforço e sacrifício» pelos cortes no salário e pela carga fiscal porque isto presume que quem se esforça assim ainda tem salário e com que pagar impostos. O esforço e sacrifício dele, a uma taxa nominal de 33%, correspondeu a passar de um rendimento de 734,2 mil euros por ano em 2011 para 490,5 mil euros em 2012. A minha taxa de “esforço e sacrifício” foi pouco menor, mas eu ganho num ano metade do que o Ulrich ganha num mês. E eu estou muito melhor do que os ex-empregados do banco que ele gere. O BPI «fechou os primeiros três meses de 2011 com lucros de 45,3 milhões de euros» mas, ainda assim, anunciou logo que ia «fechar 47 balcões e reduzir o quadro do pessoal»(6). De 7.234 empregados que o banco tinha em 2011, já se livrou de mil e tenciona chegar aos 6.000 em 2015. No entanto, esses 1.200 desempregados podem ficar descansados porque a “taxa de esforço e sacrifício” foi bem distribuída e o Ulrich agora só ganha uns meros quarenta mil euros por mês. Curiosamente, este grande esforço do Ulrich nem foi por causa da austeridade em si. Foi porque «o BPI foi um dos bancos portugueses que recorreu à linha de recapitalização estatal para reforçar os seus rácios de capital [e] ficou obrigado a reduzir o valor do conjunto das remunerações fixas dos membros do Conselho de Administração». Só assim o banco podia contrair empréstimos usando os nossos impostos como garantia.

Admito que estas coisas me fazem confusão. Acredito que talvez fosse mais feliz se não pensasse nisto. Podia acreditar nas “informações” que pessoas como o Fernando Ulrich gentilmente nos fornecem. Podia usar este blog para contar o que me aconteceu ao pequeno almoço e pôr fotografias bonitas em vez de escrever coisas deprimentes. Quando discordasse de alguém bastava dizer que era o outro que estava confuso porque nesta cabeça nunca haveria confusão nenhuma. Infelizmente, apanhei o vício de pensar e, desde então, nunca mais deixei de estar confuso.

1- Firenghi (Ana Ulrich?), Senhor Ludwig Krippahl
2- Treta da semana: aguenta, aguenta.
3- Negócios Online, Fernando Ulrich: “Nunca provavelmente a Esquerda fez em Portugal uma política tão redistributiva”
4- CM Jornal, Ulrich perde 33% do ordenado
5- Está aqui um gráfico pouco confuso: Austeridade, parte 1: a crise da dívida pública.
6- Record, BPI despede 200 funcionários
7- Expresso, BPI antecipa fecho de 21 balcões

sábado, julho 05, 2014

Treta da semana (passada): o ultraje.

No ano passado, o estudante de arte Élsio Menau enforcou uma bandeira de Portugal como trabalho final de curso. Uma metáfora pouco subtil do estado do país. Alguém fez queixa à GNR, a GNR apreendeu a obra, o estudante foi prestar declarações, o procurador conduziu o inquérito, o estudante foi a julgamento, no julgamento o procurador pediu que o arguido fosse absolvido e aguarda-se agora a leitura da sentença (1). A fantochada toda deveu-se a um dos piores artigos do nosso código penal:

«Artigo 332.º Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»

Juridicamente, este artigo é uma asneira porque define um crime com base unicamente numa avaliação subjectiva, e até privada, do acto. É razoável que os tribunais tenham em conta a intenção com que se comete um ilícito, mas a ilicitude deve basear-se também em algo objectivo. Se um condutor mata um peão num atropelamento importa saber se o matou de propósito, por negligência ou sem culpa nenhuma. Mas não só está o facto objectivo de que o matou na base de todo o processo como as diferentes intenções implicam actos objectivamente diferentes. Se acelerou em vez de travar, se ia a falar ao telemóvel ou se o peão saltou para a auto-estrada para se suicidar, por exemplo. O crime de ultraje não é assim. É crime atar a bandeira a uma forca se na mente de quem a ata estiver a intenção de a ultrajar mas é lícito atá-la exactamente da mesma maneira se a intenção for a de criar uma metáfora.

Eticamente, este tipo de legislação é condenável porque viola direitos das pessoas – a liberdade de expressão, por exemplo – em favor de hipotéticos “direitos” de símbolos abstractos. A bandeira é um pano, a república é um conceito e o hino nacional é uma música. Nenhuma destas entidades tem as capacidades sensoriais e cognitivas necessárias para se sentir ofendida ou ultrajada. Mesmo que alguém, por alguma estranha razão, sofra psicologicamente por terceiros ultrajarem um pano, compete-lhe a si lidar com a situação, talvez pedindo ajuda especializada, mas nunca com intervenção policial. Pessoalmente, sinto-me muito mais ultrajado quando os meus alunos me entregam código sem indentação. No entanto, limito-me a descontar um valor na nota do trabalho e nunca chamei a GNR por causa disso.

Finalmente, numa perspectiva pragmática esta lei é um disparate. A GNR interveio e apreendeu a obra. O procurador instaurou um inquérito. O arguido foi ouvido, o juiz analisou o processo, marcou-se um julgamento e agora lavra-se uma sentença. Tudo à custa dos nossos impostos e sem utilidade nenhuma. Na melhor das hipóteses desperdiçou-se dinheiro e tempo enquanto prescrevem os processos de quem rouba milhões. Na pior, o homem vai mesmo para a cadeia e ainda temos de pagar mais umas dezenas de milhares de euros pela estadia dele e a multa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pela parvoíce de leis que temos.

Sei que há quem, mesmo concordando com a inocência deste artista, discordará das minhas críticas à lei por achar que devemos respeitar os símbolos da nação. Mas mesmo dando valor a essa simbologia – confesso que, para mim, um pano é um pano – há pelo menos duas boas razões para rejeitar este tipo de leis. A primeira é a severidade e frequência das atrocidades que têm resultado de dar menos valor às pessoas do que a abstracções como deuses, ideologias ou símbolos. A história e os cemitérios estão cheios de testemunhos desse perigo. A segunda é que uma lei que regula o que é subjectivo passa o poder do legislador eleito para o funcionário que decide quando é que a lei se aplica. Mesmo quem der valor aos símbolos da nação deve reconhecer que a lei tem de ser clara para quem é obrigado a respeitá-la e não pode ser um instrumento de poder discricionário para quem a aplica. Esta lei é um ultraje maior à democracia do que qualquer forma de atar uma corda a um pano.

1- I oinline, Bandeira enforcada.

quinta-feira, julho 03, 2014

Plantinga 1: crença básica.

O Domingos Faria escreveu recentemente sobre a epistemologia reformista do filósofo e apologista cristão Alvin Plantinga. Tal como o Domingos, muitos consideram que a abordagem de Plantinga é «filosoficamente prometedora»(1). Eu discordo. Talvez prometa mas não me parece que cumpra e estou disposto a dedicar uns posts a explicar porquê. Apesar disso, agradeço ao Domingos o resumo que fez das ideias de Plantinga e aproveito para recomendar a leitura a quem quiser saber algo sobre esta filosofia.

Resumidamente, Plantinga quer defender o cristianismo da crítica de que é irracional acreditar na existência de Deus sem evidências de que ele exista. Segundo esta crítica, acreditar em Deus é como acreditar em marcianos ou nos poderes ocultos da astrologia. Mesmo sem provas de que sejam falsas, estas crenças são irracionais por não haver indícios de serem verdadeiras. Plantinga contrapõe que «acreditar em algo sem indícios conclusivos é perfeitamente racional» desde que a crença seja «apropriadamente básica». Isto é, a crença tem de ser formada sem depender de outras crenças ou evidências (crença básica) e, além disso, tem de ser racional formar essa crença (daí ser apropriadamente básica). Como, alega Plantinga, a crença no deus cristão é apropriadamente básica, é racional acreditar nesse deus.

Há vários problemas com a tese de Plantinga. Um é a forma ad hoc como ele tenta justificar que a crença no deus cristão é apropriadamente básica. Invoca a impressão que a Bíblia causa no crente, a sensação de gratidão do crente e razões afins, todas igualmente apropriadas para qualquer religião ou até para a astrologia ou o vodu. O Domingos já aponta várias objecções a este aspecto da defesa de Plantinga, por isso deixo-o para o fim, se for preciso. Num próximo post tenciono abordar o problema da justificação, um requisito necessário para que a crença seja racional mas do qual Plantinga se tenta escapar. Neste começo pelo problema mais fundamental.

Toda a defesa de Plantinga exige que haja uma categoria especial de crenças que são apropriadas sem dependerem de outras crenças. Depois precisa de demonstrar que a crença no deus dele é uma dessas, mas antes é preciso que haja tal coisa. Eu defendo que não há*, e vou aproveitar o exemplo que o Domingos dá para ajudar a explicar porquê. Escreve o Domingos que a «Vera olha pela janela da sala de aula e vê uma árvore, formando assim a crença de que vê uma árvore. Neste caso estamos perante uma crença apropriadamente básica, uma vez que não adoptamos esta crença com base em outras crenças.» Dependendo do passado da Vera, esta sensação de ver a árvore podia tê-la levado a formar a crença de que estava a ver o plátano que o avô tinha plantado, ou que estava a ver um plátano, ou simplesmente uma árvore. Se tivesse crescido no deserto podia formar a crença de que estava a ver um cacto muito estranho e se tivesse crescido em Marte ficaria muito admirada com aquela rocha tão esquisita. Isto é o que acontece com qualquer crença que formamos a partir da nossa experiência sensorial. A crença apropriada nunca está sozinha. Só é apropriada como parte de uma rede de outras crenças.

Com a linguagem é fácil ilustrar isto. Num dicionário não existem palavras básicas que se definam a si próprias; todas são definidas recorrendo a outras. É certo que quando consultamos o dicionário já vimos munidos de palavras conhecidas, mas essas não são “básicas” por si. São apenas as que já conhecíamos. Também não as aprendemos a partir de palavras básicas auto-definidas. Não existe tal coisa. A minha filha tem três anos, também se chama Vera, e diz “eu figei” em vez de “eu fiz”. Ela ouve-nos dizer “eu fiz” mas também nos ouve a conjugar verbos regulares no pretérito perfeito. Dessas várias experiências inferiu que a expressão correcta é “eu figei”. Eventualmente, com o acumular de mais experiências, irá perceber que o verbo fazer é irregular mas, em cada fase da sua aprendizagem, está sempre a basear-se numa rede correlacionada de experiências e crenças que delas infere. O fundamento do seu conhecimento não é uma crença auto-justificada ou auto-evidente. Esse tipo especial de crença que não carece de outras nem de justificação simplesmente não existe.

Para tentar defender a sua fé cristã, Plantinga descura quase um século de progresso em campos que vão desde a neurologia e neuropsicologia à estatística e à modelação computacional da aprendizagem. Bastaria uma familiaridade superficial com a ciência relevante para perceber que não formamos crenças apropriadas isoladas de outras. A base do processo de formação de crenças apropriadas não é dedutivo nem parte de axiomas auto-evidentes. É um processo indutivo pelo qual se infere conjuntos interligados de crenças a partir de padrões regulares de experiências sensoriais. É por aí que começamos.

O argumento de jure contra a crença em Deus é válido. É realmente irracional acreditar em algo quando não se tem indícios ou razões nenhumas. Mas isto é pouco relevante porque há razões e indícios. A crença em Deus é um “eu figei”. Até há uns séculos, o padrão de indícios parecia suportar melhor a hipótese desse deus existir. Tal como a falta de prática com os verbos irregulares levou a minha filha a dizer “eu figei”, a falta de explicações para uma data de fenómenos naturais levou muitos a crer num criador sobrenatural. Mas essas crenças não são básicas. Fazem parte de um padrão coeso de indícios e crenças que vai mudando conforme se acumula mais informação e que acaba por indicar de forma cada vez mais clara que se diz “eu fiz” e que Deus não existe.

* A etiqueta filosófica para isto é anti-fundacionalismo. Mas é uma etiqueta perigosa, como qualquer outra, porque aplica-se também a correntes fora da epistemologia (na ética, por exemplo). Por isso, como em geral, prefiro não usar as etiquetas e só a deixo aqui para desincentivar a estratégia filosófica, infelizmente comum, de descartar um argumento rotulando-o.

1- Domingos Faria, A epistemologia reformista de Plantinga

domingo, junho 29, 2014

Treta da semana (passada): ciência criacionista.

A “Enciclopédia de Ciência da Criação” define que: «Um cientista criacionista contemporâneo é uma pessoa que está formalmente treinada em uma disciplina científica, mas que aborda um campo de estudo e/ou de pesquisa a partir da crença de que o universo foi criado por Deus.»(1). Ironicamente, a tentativa de dar ao criacionismo a aparência de ser científico acaba apenas por expor a treta. Mais importante ainda, porque o criacionismo por cá é ainda uma anomalia minoritária, isto ilustra também a inconsistência fundamental entre qualquer religião e a ciência.

O objectivo da ciência é moldar as nossas crenças à realidade. Não é um processo infalível nem acabado mas tende a melhorar gradualmente o encaixe entre aquilo que julgamos ser e aquilo que realmente é. Para esse fim, não se pode, por exemplo, abordar a geologia a partir da crença de que a Terra é plana ou a astronomia a partir da crença de que a Lua é feita de queijo. Seja qual for a crença ou problema, não é científico comprometer-se à partida com uma crença, de forma firme e persistente, porque o que se quer com a ciência é explorar as possibilidades e procurar as crenças que melhor correspondam aos dados que se vão acumulando. Para isso exige-se uma atitude céptica no sentido de adoptar ou rejeitar crenças sempre conforme o peso das evidências e nunca por vontade pessoal. O que é exactamente o contrário da crença religiosa, carente de fé e apregoada como resultando do exercício da vontade livre do crente.

Esta diferença é evidente em vários trechos da enciclopédia criacionista. O artigo sobre “Cosmologia criacionista” explica que «A idade do universo estimada atualmente está muito além do que um cientista criacionista típico aceitaria. Em resposta, muitas cosmologias criacionistas de universo jovem têm sido propostas para discutir a questão da idade»(2). É consensual na cosmologia que o universo tem quase catorze mil milhões de anos. Este valor já foi revisto várias vezes, porque valores anteriores revelaram-se incompatíveis com a informação que se ia obtendo, mas a ciência progride precisamente por encontrar alternativas que se ajustam melhor aos dados. O “cientista” criacionista faz o contrário. Primeiro decide em que hipóteses acredita «a partir da crença de que o universo foi criado por Deus» e depois limita-se a escolher as evidências que forem mais favoráveis a essas crenças.

Noutro exemplo, «Criação biológica é basicamente o estudo dos sistemas biológicos, enquanto acontecem sob a suposição de que Deus criou vida na Terra. A disciplina é estabelecida sob a idéia de que Deus criou um número finito de discretos espécies criadas»(3). Quando se usa a ciência para estudar algo não se pode estabelecer disciplinas “sob ideias” pré-concebidas nem fixar qualquer suposição. Afinal, o objectivo é perceber o que se passa e não cultivar preconceitos. Por isso, o tal “criacionismo científico” não é ciência mas apenas uma de muitas aldrabices que abusam da ciência para fazer parecer que a sua doutrina tem fundamento.

Se bem que muitos crentes concordem com este juízo acerca do criacionismo, porque rejeitam a interpretação literal dos escritos religiosos, normalmente recusam-se a reconhecer que este conflito entre religião e ciência não depende dessa interpretação literal nem é evitável enquanto a religião professar a fé em alegações acerca da realidade. Quer leiam a Bíblia à letra quer a leiam como metáfora, a fé firme na «crença de que o universo foi criado por Deus» torna-os todos criacionistas e põe-nos todos em contradição com a ciência. Nem é só pelos indícios, cada vez mais fortes, de que o universo não foi criado com inteligência nem há ninguém encarregue disto tudo que se rale minimamente com o que nos acontece ou com o que fazemos. É, principalmente, porque a ciência exige que se trate todas as crenças como equivalentes à partida e se faça distinção entre elas apenas pelo que objectivamente revelam corresponder à realidade. Isto é incompatível com qualquer fé, dogmatismo ou crença pré-concebida da qual não se queira abdicar.

1- Enciclopédia de Ciência da Criação, Cientista criacionista
2- Enciclopédia de Ciência da Criação, Cosmologia criacionista
3- Enciclopédia de Ciência da Criação, Criação

quinta-feira, junho 26, 2014

Abstencionismo, parte 2.

A minha carta aos abstencionistas suscitou algumas reacções negativas (1). O argumento pela abstenção assentou novamente nas justificações de que os candidatos não merecem o voto, de que não devemos legitimá-los com a nossa participação e que abster-se é protestar. Isto continua a não justificar a tese de que a abstenção é a melhor opção. Quero salientar que é principalmente esta ideia que eu critico. Houve certamente muita gente que não votou porque não lhe apeteceu mas que admite ser importante votar. Dessas pessoas apenas acho que deviam ter votado; no resto estamos de acordo. Mas quem tenta justificar a abstenção alegando ser a opção mais correcta está a defender que a minha opção de votar foi menos correcta do que a sua e isso já merece ser discutido.

O texto do João da Nóbrega (2) é um exemplo extremo das críticas que recebi. Em geral não foram tão extensas, detalhadas ou vigorosas. Não vou responder da mesma forma, frase a frase, mas não quero desperdiçar uma crítica assim. Por isso, tentarei focar o que me parece mais importante. Principalmente, justificar ter escrito aos que defendem a abstenção que «não vou invocar deveres abstractos de civismo e democracia para censurar a vossa preguiça». Aparentemente, foi sobretudo isto que ofendeu o João, que não gosta que o «acusem de ser preguiçoso injustamente.»

Dizer que alguém age por preguiça num caso particular não é dizer que age por preguiça na generalidade dos casos e, por isso, dizer que se abstém por preguiça não é dizer que é preguiçoso. No resto até pode ser muito trabalhador. Não faço ideia nem alego nada quanto a isso. Mas, mesmo assim, devo explicar porque afirmo que a abstenção foi por preguiça. Tenho duas razões fortes. A primeira é a de que esta abstenção, das eleições que conheci, tem sido exactamente igual à abstenção de quem vai passear ou fica a dormir a sesta. De uma abstenção revoltada seria de esperar mais barulho, mais gente nas ruas e mais protestos. Em vez disso, foi só a pacatez sonolenta de uma tarde de Domingo. Se não foi preguiça foi muito bem disfarçada. A outra razão é a de que não é preciso ter um favorito para ter razão para votar. Basta saber de algum candidato cuja eleição se queira mesmo evitar. Basta algum, ou alguns, que se deteste mais do que os restantes. Por exemplo, mesmo que não haja ninguém de jeito nas listas, a mim basta o PNR se candidatar para já não me abster. Porque o voto não é só a favor de um escolhido. É também contra os outros. Parecendo-me difícil ser-se ideologicamente tão amorfo que não se tenha por algum partido ainda menos apreço do que pelos restantes, só posso concluir que, em geral, quem se abstém sem ser por preguiça de votar ou por preguiça de escolher abstém-se por preguiça de se informar.

Contradizendo a indignação que manifestou pela acusação de preguiça, o João escreve que «a autoridade é que tem o ónus de conseguir convencer as pessoas a legitimá-la, e não o contrário. Se eu não a quero legitimar, estou no meu direito, ponto final. Se ficar em casa a coça-los, estou no meu direito.» Pedindo desculpa se ofendo, parece-me também preguiça exigir que sejam os outros a convencer-nos. Além de ser perigoso. E, se bem que o João tenha o direito de ficar a coçá-los em vez de votar, este é um direito apenas no sentido restrito de que seria pior ainda haver uma lei que o impedisse. É como ter o direito de mentir aos pais ou de fechar a porta do elevador antes que a senhora com o bebé ao colo tenha tempo de entrar. Não deve haver leis contra isto e, portanto, todos acabam por ter o direito legal de o fazer. Mas não são propriamente direitos no sentido pleno do termo. A abstenção está também nessa zona cinzenta entre a opção legítima e a que deve ser proibida.

O João também se indignou por eu ter escrito que, quando é preciso votar, muitos «ficam encostados sem fazer nada». Explica o João que «ir trabalhar todos os dias, cuidar de uma família sem ter tempo, pagar uma porrada de impostos para que se consiga ter todas as coisas que temos como os senhores querem» já é fazer muito. É verdade. E se o João não pode votar porque estava a cuidar dos filhos, a trabalhar ou na fila para pagar os impostos, ressalvo já que não o critico por isso. Votar é importante mas há coisas mais importantes. A minha crítica é para aqueles que, não só tendo ficado “em casa a coçá-los” quando podiam facilmente ter votado, ainda defendem que fizeram uma grande coisa, talvez até melhor do que os outros que votaram. É este disparate que merece oposição.

Mesmo indeciso entre alguns candidatos, é melhor votar ao acaso num desses do que se abster, porque distribuir os votos sempre contribui para fortalecer a oposição, ganhe quem ganhar. Não votar é a pior opção. Abster-se por protesto é ridículo porque não se protesta imitando a indiferença. Abster-se porque os políticos “não merecem” o voto é ingénuo porque o voto não é um prémio. É apenas a indicação anónima do candidato que se considera menos mau. E não votar para não legitimar os eleitos é treta porque o que conta é a distribuição dos votos válidos. A abstenção não tira legitimidade às escolhas de quem votou. Mas quanto mais gente se abstém maior é o risco dos votos se concentrarem demasiado num ou em poucos partidos. Pior ainda, quanto maior a abstenção mais fraca é a democracia. O problema mais grave que resolvemos com a democracia é serem uns a decidir pelos outros, como em qualquer sistema autoritário, e quanto maior for a abstenção menos são os que decidem. O João acha que os “sistemas justos” se defendem dando «um tiro nos cornos» a quem incomodar em vez de «com cruzes de merda» no papel. Eu discordo. Pelo que sei dos sistemas políticos baseados no tiroteio, preferia que houvesse mais empenho na democracia. Por muito fracos que sejam os candidatos, a alternativa do João parece-me bem pior.

1- Caros abstencionistas
2- João da Nóbrega, Resposta um.

domingo, junho 22, 2014

Treta da semana (passada): o inaceitável machismo do aluguer.

A Helena Matos escreveu um artigo de opinião sobre a possibilidade de uma mulher engravidar em substituição de outra. É pena que isto seja quase sempre discutido com tanta confusão, porque há alguns problemas éticos importantes no negócio de alugar úteros. Quando há dinheiro envolvido há sempre um incentivo para abusos e é questionável a legitimidade de um contrato obrigar alguém à decisão de dar uma criança para adopção meses antes da criança nascer. Infelizmente, a Helena Matos optou por inventar problemas fictícios e embrulhar um assunto interessante numa confusão de ideologias.

A Helena Matos opõe-se às “barrigas de aluguer” porque, «tal como a sociedade não pode obrigar uma mulher a ter filhos, também as mulheres não podem obrigar a sociedade a aceitar o inaceitável», porque os «filhos não são um direito» e porque não se pode chegar «ao ponto de achar que a gravidez doutra mulher não conta nada quer para essa mulher, quer para a criança.» Estas objecções são mera demagogia. O que se passa é que, mais coisa menos coisa, adultos A, B, e C combinam que B contribui para C engravidar e quando C der à luz dá o filho será adoptado por A e B. Pode ser por processos mais clínicos e menos prazenteiros do que é normal, mas ninguém é obrigado a aceitar inaceitáveis nenhuns. O argumento do bem da criança também é fácil de rejeitar. Basta perceber que proibir isto é impedir que a criança chegue sequer a existir, o que dificilmente a beneficiará.

Mas a maior treta no artigo da Helena Matos é a tentativa de pintar esta solução como machismo. «Seja na modalidade capitalista do aluguer ou na versão socialisto-solidária da substituição esta conversa nunca existiu. Com pénis, claro. Ou com testículos. Já com as barrigas das mulheres esta conversa acontece todos os dias. Como se sabe o corpo dos homens é uma unidade. Já o das mulheres é uma espécie de estrutura biónica». É realmente raro um homem poder cobrar pelo aluguer do seu pénis ou testículos. Mas isso não tem nada que ver com a “unidade do corpo dos homens”. Tem que ver simplesmente com o mercado. Como, em matéria de reprodução, oferecer o pénis exige muito menos investimento do que oferecer o útero, o equivalente masculino da barriga de aluguer é a doação de esperma que, por razões óbvias, paga bastante menos.

Neste caso, só é letígimo que a legislação incida sobre a natureza e força legal dos contratos que é permitido celebrar. Não há qualquer mecanismo admissível pelo qual a sociedade possa proibir uma mulher de substituir outra na gravidez. Nem qualquer razão para o fazer. A conversa de «obrigar a sociedade a aceitar o inaceitável», de «achar que a gravidez doutra mulher não conta nada» ou do alegado machismo por ninguém ter interesse em alugar testículos é simplesmente treta.

1- Observador, Os pénis de aluguer e os testículos de substituição

Editado para corrigir uma gralha no título. Obrigado pelo aviso.

domingo, junho 15, 2014

Treta da semana (passada): espiritismo, três em um.

A Associação de Divulgadores de Espiritismo de Portugal (ADEP) descreve esta doutrina como «uma ciência filosófica de consequências morais. Como ciência, investiga os factos espíritas. Como filosofia explica-os. Como ética dá-nos um roteiro moral para as nossas vidas.» Com um alvo tão grande seria de esperar que acertasse em qualquer coisa. Azar. Falha tudo.

O espiritismo «foi codificado por um professor francês de meados do século XIX: Allan Kardec» e o seu método de investigação, descrito no “Livro dos Espíritos”, consistiu em escrever o que alegou serem respostas dos espíritos às suas perguntas. Isto não é científico porque a ciência progride seleccionando as hipóteses que se destacam quando postas à prova. Podemos imaginar que é uma corrida, com as hipóteses que não tropeçam nos factos e que correm mais leves de premissas infundadas passando à frente das outras. A corrida é permanente – nenhuma hipótese ganha em definitivo – mas não se toma qualquer uma como verdadeira se nem sequer está à frente das outras. A hipótese de Kardec ter mesmo mesmo falado com espíritos que sabiam do assunto e diziam a verdade é apenas uma entre muitas outras. E, destas, a que se destaca como mais plausível, e menos dependente de premissas gratuitas, é a de que ele apenas escreveu o que lhe veio à cabeça.

Por exemplo, à pergunta «Donde vieram para a Terra os seres vivos?», os espíritos responderam que «A Terra lhes continha os germens, que aguardavam momento favorável para se desenvolverem [no] momento propício ao surto de cada espécie». Disseram também que ainda surgem seres vivos espontaneamente dos «tecidos do corpo humano e do dos animais [onde] só esperam, para desabrochar, a fermentação pútrida que lhes é necessária à existência» e que, entre “corpos orgânicos e inorgânicos”, «A matéria é sempre a mesma, porém nos corpos orgânicos está animalizada» (2). Suspeito não ser coincidência que os espíritos que falaram com o professor francês do século XIX tivessem as mesmas ideias erradas acerca da origem das espécies, do vitalismo e da geração espontânea que teria um professor francês do século XIX.

A afirmação de que o espiritismo é filosofia porque explica os factos é falsa duas vezes. Primeiro, porque a filosofia preocupa-se mais em explorar conceitos do que em explicar factos. Mas, principalmente, porque o espiritismo não explica factos nenhuns. Uma explicação é uma descrição consistente com o que observamos e da qual se pode inferir o que pretende explicar. O espiritismo não só é parco em inferências, limitando-se às alegações, como é inconsistente com a informação que temos. Por exemplo, a hipótese de termos uma alma eterna é refutada pelos efeitos cognitivos de drogas, acidentes vasculares cerebrais ou doenças como a de Alzheimer. Se houvesse algum aspecto do nosso intelecto, da nossa memória, da nossa consciência ou personalidade que se devesse à tal alma, esse seria imune a qualquer problema físico. As evidências indicam claramente que não há tal coisa.

Finalmente, dizem que o espiritismo é uma ética porque «dá-nos um roteiro moral para as nossas vidas.» No entanto, simplesmente dar um “roteiro moral” não constitui uma ética. Dizer “não roubarás” estipula uma regra moral mas ética é considerar porque é que não se deve roubar, quais os fundamentos dos direitos de propriedade, em que situações é permissível roubar e porquê, e assim por diante. Também nisto o espiritismo fica muito aquém do que a ADEP promete: «O bem é tudo o que é conforme à lei de Deus; o mal, tudo o que lhe é contrário»(3). Isto está para a ética como a fisga está para a exploração interplanetária.

Apesar de ser apelativa esta ideia de ter uma alma imortal e de ir eventualmente viver no mundo dos espíritos, é com alívio que concluo que a doutrina espírita é treta. Alívio porque, se fosse verdade, seria prova de que os espíritos imortais tinham o conhecimento, a mentalidade e a forma de se exprimir de um professor francês do século XIX. Antes acabar a minha existência com a morte do corpo do que gramar uma eternidade de disparates.

1- ADEP, O que é o Espiritismo?
2- O Livro dos Espíritos(pdf), páginas 65-66 e 74.
3- Ibid, página 310.

sexta-feira, junho 13, 2014

“Será que se ensina ciência nos cursos de ciência?"

Este foi o tema do Cépticos com Vox do Sábado passado, no Vox Café, motivado pela constatação de que um curso superior em ciência não é uma protecção eficaz contra superstições e outras tretas (1). Além do tema, valeu também pelo convívio e pela oportunidade de conhecer várias pessoas que se preocupam com estes problemas. Obrigado à COMCEPT pelo convite e organização, ao Hélder pelo acolhimento, e a todos os participantes pela conversa estimulante. Não encontrámos uma receita para acabar de vez com a irracionalidade mas o debate ajudou a identificar alguns problemas. Aqui vai o que eu fiquei a pensar disto.

Em primeiro lugar, a palavra “ensinar” dá ideia de que quem ensina controla a aprendizagem. É o que acontece quando ensinamos tarefas simples a uma criança por rotina e repetição. A criança aprende mesmo sem notar. Mas para aprender algo que exija compreensão, em vez de mera habituação, é preciso ser o próprio a tomar conta do processo. Quando se “ensina” ciência a adultos o máximo que se pode fazer é ajudar quem quiser aprender. O corolário disto é que o resultado de um curso superior depende principalmente do estudante.

É claro que o resto também faz diferença e vários factores contribuem para que um curso superior promova a capacidade de aplicar técnicas específicas a certas situações mesmo sem uma compreensão dos fundamentos da ciência. Como um curso não serve apenas para aprender mas também para obter um comprovativo, a tendência é estudar para passar nas provas. Por seu lado, a necessidade de avaliar muitos alunos obriga a focar o que é fácil de avaliar, como a capacidade dar aquelas respostas, em vez da capacidade de generalizar e compreender a razão dos métodos, avaliação essa que exigiria um contacto muito mais prolongado entre cada aluno e o professor. É bom haver muitos alunos, porque o ensino superior é um direito de todos e não um privilégio para alguns, mas não se consegue dar a alunos de licenciatura as mesmas condições que se dá, por exemplo, a alunos de doutoramento.

Também é relevante considerar o objectivo do curso superior. Pode-se ponderar se o futebol transcende as regras ou se é definido por elas e se o que importa é o espectáculo ou o espírito do jogo. O futebol tem uma longa história, tendo evoluído para melhorar a competição e atrair mais público. Mas para o Cristiano Ronaldo não importa uma compreensão profunda da história ou filosofia do futebol. Importa correr depressa e dominar a bola. Eu penso que um curso superior devia educar pessoas em vez de formar técnicos mas admito que há méritos na posição contrária. O mais forte será o facto de que muitos alunos querem o curso para ter emprego. E a realidade é que, tal como o Cristiano Ronaldo podia ser igualmente eficaz mesmo acreditando que o futebol tinha sido inventado por marcianos, também se pode ser um excelente técnico da ciência e acreditar em disparates*.

Seria possível mitigar estes defeitos diversificando os currículos e oferecendo disciplinas especificamente sobre pensamento crítico e científico. Isto favoreceria a compreensão das ideias fundamentais e reduziria a especialização que leva muitos a compartimentalizar o que aprendem. Infelizmente, isto presume que o objectivo do ensino superior não é apenas formar trabalhadores qualificados e exigiria uma maior colaboração entre departamentos e escolas para oferecer a cada aluno mais disciplinas fora da sua área. Com a ideologia económica que hoje domina e a competição aguerrida por recursos cada vez mais escassos a tendência será no sentido inverso.

No entanto, qualquer aluno facilmente ultrapassa estas dificuldades, se quiser. Até porque, em abstracto, a ideia é simples: a ciência é a tentativa honesta de formar opiniões correctas acerca da realidade. É daí que vem a necessidade de considerar alternativas, confrontá-las com os dados e ir favorecendo as que se destacam das outras. Se bem que uma educação formal possa ajudar a perceber isto, se for aproveitada nesse sentido, hoje é tão fácil encontrar informação que não faz grande falta ter diploma para pensar de forma crítica. Os obstáculos principais são outros.

Primeiro, a vontade de avaliar objectivamente alegações factuais. Muita gente carrega crenças cuja refutação pode ser desconfortável, quer por motivos pessoais quer por razões familiares ou sociais, e sem a vontade de ultrapassar esse desconforto ficará sempre com um ângulo morto no raciocínio. Em segundo lugar, o tempo. É fácil aprender em poucos anos como testar se certo aparelho funciona bem, se os ensaios dão concordantes ou se certo resultado é estatisticamente significativo. O tipo de coisas que se aprende numa licenciatura. Mas o processo de generalizar essa abordagem e torná-la numa disposição permanente é mais lento e tem de vir do próprio. Não basta aulas e livros. Finalmente, resistir à pressão dos muitos que, por interesse ou mal entendido, tentam engavetar a ciência para isolar dela as opiniões que defendem. A ciência abrange qualquer afirmação acerca da realidade. Não adianta dizer que é a afirmação é metafísica, teológica, intuitiva, sobrenatural, infalsificável ou qualquer outra desculpa dessas. Se pretende descrever correctamente a realidade é pela ciência que se avalia a pretensão. É difícil transmitir este ponto fundamental em cursos que são conjuntos de unidades curriculares independentes, cada uma focando a sua matéria. Mas, felizmente, não é preciso aulas, trabalhos e exames para aprender isto. Pode-se aprender ciência por muitas outras vias.

* Ou até ser completamente doido como o Kary Mullis.

1- COMCEPT, Cépticos com vox: será que se ensina ciência nos cursos de ciência?

Editado no dia 14 para corrigir uma gralha no "definido". Obrigado pelo aviso.

domingo, junho 08, 2014

Treta da semana (passada): para todos os gostos.

A medicina convencional tem uma grande desvantagem. Atola-se nas minudências do nosso corpo físico, também conhecido como corpo real, em vez de abordar de forma holística o nosso ser espiritual, também designado por fictício. Pela necessidade de considerar detalhes de anatomia, fisiologia, bioquímica e afins, os praticantes da medicina convencional têm de focar a sua especialização. Se um médico disser ser cardiologista, pediatra, neurocirurgião, veterinário, farmacêutico, psiquiatra, fisioterapeuta, dentista e oftalmologista achamos estranho.

O praticante de terapias complementares não sofre desta limitação. Apresento, como exemplo, o Paulo Nogueira, especialista em leitura de aura, terapia multidimensional, regressão com reiki, cura reconectiva, cirurgia psíquica, tarot, limpeza espiritual, reiki tradicional, kundalini reiki e terapia vibracional com taças tibetanas (1). A sua missão é tão modesta quanto o seu currículo: «ajudar o ser humano a tomar consciência da sua dimensão espiritual [...] a reconhecer a divindade que habita em si, a ser verdadeiramente livre e a se experienciar como um ser completo.»

No caminho para esta tomada de consciência da divindade no ser humano há também outros serviços mais particulares que o Paulo Nogueira pode prestar. Por exemplo, pela cirurgia psíquica pode extrair «bloqueios energéticos do corpo físico […] Esta técnica bastante eficaz actua dissolvendo os coágulos energéticos decorrentes de eventos negativos fazendo com que a energia vital possa circular de forma totalmente livre pelo organismo, restituindo a saúde física, mental e emocional do paciente.»(2) Os coágulos de energia são um problema quase tão grave como os defeitos na coagulação energética, que podem originar hemorragias de energia vital.

A limpeza espiritual, por seu lado, serve para remover «fluidos de negatividade tais como tristeza, desânimo, desmotivação, raiva, apatia ou vontade de isolamento social sem motivo aparente.»(3) O Paulo Nogueira tem uma concepção física inovadora dos aspectos sobre os quais incidem as suas terapias. Enquanto a energia coagula, a raiva e a desmotivação são fluidos. Podemos assim perceber a importância crucial das terapias do Paulo Nogueira, porque se uma pessoa desmotivada sofre um coágulo energético o resultado pode ser como o de puxar o autoclismo com a sanita entupida. Mas não se preocupe o leitor porque o Paulo Nogueira é tão especializado nestas coisas todas que até limpa fluidos de negatividade à distância. Isso é possível, por Skype ou telefone, porque «Somos espíritos. Somos energia. Para acedermos a um dado espírito, seja em que dimensão estiver (4ª dimensão ou superior), basta focarmos a nossa intenção nele.»(4) Assim, qualquer pessoa que esteja na 4ª dimensão (ou superior) e tenha telefone lá (ou ligação à Internet) pode limpar o seu espírito de fluidos negativos e até remover algum coágulo que esteja a incomodar. Quanto ao pagamento, pode ser por Visa, MasterCard ou PayPal. Somos espírito e energia em muitas dimensões mas nestas três todos temos contas para pagar.

A terapia vibracional com taças tibetanas é uma excepção a esta forma conveniente de limpar fluidos e coágulos à distância. Isto porque «as taças tibetanas são pousadas sobre os chakras do paciente de forma a remover bloqueios. Por essa razão, dado que envolve material físico (as taças), só pode ser realizada presencialmente no espaço Paulo Nogueira Terapias.» Sugeria ao Paulo Nogueira que se especializasse numa variante: a terapia vibracional sem taças tibetanas, que até poderia ser feita remotamente em todas as dimensões do espaço e também do tempo. Bastava gravar um ficheiro mp3 com as vibrações espirituais e depois aplicar sobre os chackras sempre que se quisesse. Tenho a certeza de que teria um efeito tão real como o de qualquer forma alternativa de desbloquear chackras coagulados.

O site do Paulo Nogueira tem muita informação acerca de outras terapias também, como o resgate da criança interior e a Mini Leitura de Aura que, pelo que percebo, está para a Leitura de Aura como estavam para as radiografias aquelas micro-radiografias que tirávamos para rastreio da tuberculose. A maior lacuna é a ausência de qualquer descrição de como o Paulo Nogueira determinou a verdade do que afirma. Como se descobriu os coágulos da energia, como se sabe que a tristeza é um fluido de negatividade e que as taças tibetanas desbloqueiam os chackras, por exemplo. Mas talvez seja por eu não aceder à Internet acima das quatro dimensões. Talvez lendo o site do Paulo Nogueira a partir da quinta ou da sexta dimensão se veja lá isto tudo bem explicado.

1-Paulo Nogueira Terapias
2- Palo Nogueira, Cirurgia Psíquica.
3- Paulo Nogueira, Limpeza Espiritual,
5- Paulo Nogueira, Consultas à distância (por Skype ou telefone)

quinta-feira, junho 05, 2014

Miscelânea Criacionista: os tipos.

No filme “Evolution Vs. God” (1), produzido por Ray Comfort (2), os criacionistas tentam mostrar os defensores da teoria da evolução como crentes incapazes de justificar as suas crenças. Comfort até diz que é preciso ter mais fé na teoria da evolução do que no criacionismo. Se bem que concorde que a fé não serve para responder a questões factuais, é curioso ver crentes religiosos a apontar a fé como um fundamento inadequado quando é o único que eles próprios têm. Para o seu propósito, além do truque de editar tendenciosamente as respostas (3), este filme recorre muito a um erro fundamental do criacionismo: a ideia de que uma posição factual se deve fundamentar numa só peça de evidência incontestável em vez de, como acontece na realidade, assentar numa rede coerente de indícios individualmente fracos mas que são persuasivos em conjunto.

Por exemplo, eu não sou capaz de dar qualquer prova isoladamente conclusiva de que a China existe. Não tenho um certificado infalível da existência da China e, mesmo que tivesse, não conseguiria provar tratar-se realmente de um certificado infalível. Podia ser uma falsificação. O que justifica acreditar que a China existe é um conjunto de evidências que favorece essa hipótese em detrimento das alternativas. É muito mais plausível que as lojas, notícias, fotografias, filmes e pessoas que dizem ser da China sejam mesmo da China do que se tratar de uma conspiração enorme só para me enganar. Com o criacionismo e a evolução passa-se o mesmo. Não é um dado isolado que resolve a questão em definitivo. É quando consideramos o conjunto de dados provenientes da geologia, paleontologia e biologia molecular e a diversidade de mitos da criação inventados por povos e religiões de todo o mundo que a teoria da evolução sobressai como uma explicação mais plausível do que o criacionismo evangélico cristão.

Como o criacionismo tem contra si todo o peso das evidências, os criacionistas têm de focar elementos isolados e, mesmo assim, aldrabar. Por isso o entrevistador pede várias vezes uma prova para mudanças no “tipo” (kind) de organismos, alegando que isso nunca se observa. Parafraseando um criacionista que nos visita regularmente, peixes dão peixes, gaivotas dão gaivotas e formigas dão formigas. Realmente, como o “tipo” de organismo é um conceito indefinido, o criacionista pode dizer, de qualquer alteração observada, que não saiu do mesmo “tipo”. No entanto, é fácil ver que é falsa a tese de que não pode haver processos naturais que alterem o “tipo” do organismo mesmo considerando diferentes definições possíveis do termo.

Vamos supor, como defendem os criacionistas, que um chimpanzé e um homem são de tipos diferentes. Se imaginarmos estes animais adultos é fácil perceber diferenças que justifiquem a distinção. Mas cada um destes organismos desenvolve-se a partir de uma célula inicial. Isto quer dizer que o “tipo homem” tem de incluir o zigoto, a mórula, o embrião, o feto e assim por diante até ao adulto porque são todas fases de desenvolvimento do mesmo organismo. O mesmo para o chimpanzé. O criacionista podia restringir o “tipo” para só admitir o feto a partir de certa fase do desenvolvimento mas então seria óbvio haver processos naturais que transformam um tipo de organismo noutro tipo de organismo. Seria desenvolvimento em vez de evolução mas seria um processo natural à mesma.

Porém, o mais provável é que o criacionista considere que o zigoto humano é do “tipo homem” e que o zigoto de chimpanzé é do “tipo chimpanzé”, incluindo no mesmo tipo todas as fases de desenvolvimento de cada organismo. Assim sendo, a distinção entre um “tipo” e outro não depende de diferenças na força, nem na inteligência, nem na postura, pêlos ou ossos. Depende apenas de diferenças nos genes dessa célula inicial. No caso do chimpanzé e do homem essa diferença é muito pequena e, mais importante ainda, nós sabemos como o património genético de cada população pode ser alterado pelos processos naturais de mutação e selecção.

Não há nenhuma prova isolada e definitiva de que o ser humano evoluiu de um antepassado distante unicelular, ou de um antepassado primata comum ao chimpanzé. Mas, perante o conjunto das evidências, a hipótese é claramente plausível. A transição da célula para o ser humano adulto é corriqueira. Todos passámos por esse processo 100% natural de duplicação e diferenciação celular, organização de tecidos e crescimento. É uma transformação espantosa mas facilmente observável. E se basta ter uma célula com as moléculas certas no lugar certo para que, em poucos meses, nasça um bebé humano, não é de estranhar que uma população de primatas com gâmetas e zigotos contendo um certo ADN possa ter deixado, ao fim de milhões de anos, descendentes que agora concebem zigotos de chimpanzé ou zigotos de humanos Comparadas com as transformações que todos nós sofremos nos primeiros meses de vida as diferenças de ADN entre estes zigotos são irrisórias. Além disso, conhecemos e observamos os mecanismos pelos quais uma população de organismos com certas moléculas pode dar origem a populações de organismos com algumas moléculas ligeiramente diferentes.

Há muitos detalhes por esclarecer mas, no geral, não há grande mistério. Basta juntar as peças. Sabemos que há um processo natural que transforma zigotos unicelulares em animais adultos conforme os genes no zigoto e sabemos que há um processo natural que modifica os genes de populações com o passar das gerações. Juntando os dois deixa de haver problema em passar de um “tipo” para outro. Não é preciso fé nenhuma para isto. O que exige fé, além de outros problemas cognitivos, é achar mais plausível que tenhamos sido criados magicamente do barro só porque alguém escreveu isso num livro.

1- YouTube, Evolution Vs. God Movie
2- O da banana
3- PZ Meyrs, Ray Comfort confesses

quarta-feira, junho 04, 2014

Oito anos.

No dia 4 de Junho de 2006 publiquei os primeiros dois posts deste blog. Com este são agora 1810 posts e 71.600 comentários, dez mil dos quais meus. Cerca de mil e quinhentas pessoas comentaram aqui* e 325 comentaram pelo menos dez vezes, o que já dá uma conversa. Segundo o Blogger, este blog teve um milhão e duzentas e oitenta e seis mil pageviews. Este esforço colectivo de escrever, ler e criticar tem dado bons resultados. Pelo menos para mim.

Se bem que o blog ainda sirva para desabafar, a consciência de que outros lêem isto fez-me escrever com mais cuidado e tornou o blog num meio para discutir problemas que considero importantes. O embaraço que sinto ao reler o que escrevia há oito anos também sugere que algo melhorou entretanto. Penso que consigo organizar melhor as minhas ideias e a forma como as apresento. Em parte graças ao exercício de escrever centenas de posts mas, sobretudo, pelo trabalho de quem cá veio comentar, criticar, apontar defeitos ou simplesmente insultar. De uma forma ou de outra, todos me motivaram a pensar melhor, a procurar argumentos mais sólidos e a ser mais conciso. Muitos subestimam a importância de se ser breve e claro no que se escreve, mas é o que mais vezes determina se um texto estimula o diálogo ou se ninguém tem sequer paciência de o ler até ao fim.

Uma mudança grande durante estes anos foi a transição de muita gente dos blogs para as “redes sociais”. Eu preferi ficar por aqui. O Twitter, o Facebook, o Google+ e afins são bons para publicitar os posts mas só convidam a intervenções breves no momento. Não deixam pensar primeiro no que se quer dizer. Enquanto o blog permite matutar durante uns dias antes sequer de começar a escrever, qualquer coisa que apareça no Facebook fica rapidamente enterrada em dezenas de notícias, fotografias de refeições e piadas. Além disso, as “redes sociais” são menos favoráveis à socialização do que os blogs. Os blogs não têm listas de “amigos” ou “seguidores” nem uma avalanche constante de mensagens sempre das mesmas fontes**. Aqui vem quem tiver interesse num tema e quando quero ler o que outros escrevem vou à procura. Isto ajuda a ter uma visão mais abrangente e menos filtrada do que há por aí. A Treta da Semana também me ajuda nisto, obrigando-me a sair regularmente da vizinhança mais sã da Internet e a explorar o enorme manicómio que há à volta. É um exercício que recomendo. Ler, pensar e escrever sobre disparates leva-nos a apreciar melhor o valor da razão.

Mas pronto, já chega de olhar para o umbigo. Volto em breve à programação normal. Obrigado a todos por estes oito anos de aguerrida colaboração e que venham agora mais oito.

* Esta estimativa é mais tramada. Há 1652 nomes diferentes nos comentadores, mas alguns correspondem à mesma pessoa.
** Excepto o Jónatas Machado. É a excepção que confirma a regra.