Ciência e religiões.
No que tenho lido e discutido sobre isto tenho encontrado três reacções à incompatibilidade entre a ciência e as crenças religiosas. Uma consiste em afirmar a crença religiosa como cientificamente sólida mesmo que isso exija mentir descaradamente. É o que fazem os fundamentalistas, dos criacionistas aos cientólogos. Outra é alegar que ciência e religião são separadas e nunca interferem. É atraente para quem não quer chatices, como os agnósticos, por exemplo. A terceira é defender que ciência e religião se complementam porque lidam com realidades diferentes. Esta é popular entre os católicos que, apesar das evidências em contrário, insistem que fé e razão não se podem contradizer.
A primeira abordagem deturpa os resultados da ciência. As “evidências científicas” para o Dilúvio, para a dianética ou para a misoginia muçulmana são tão disparatadas que os crentes mais esclarecidos até pedem que não se mencione essas coisas, não vá alguém notar que “religião” abarca mais do que a versão light que estes defendem. A tese da não-interferência assume que a investigação dos factos está isolada da procura pelos melhores valores. Isto é fundamentalmente falso porque a ciência assume valores e qualquer discussão ética depende de factos. No entanto, mesmo considerando ciência e ética superficialmente independentes, as religiões não são ética. As religiões são sistemas de regras assentes em alegações acerca do que os deuses querem e toda a autoridade religiosa deriva desses alegados factos.
A tese da complementaridade deturpa a ciência, mas a deturpação passa mais facilmente despercebida. A ideia fundamental é a de que a ciência lida com a matéria enquanto “a religião” (no singular, como se só houvesse uma) lida com o espírito. Assim, como disse recentemente o filósofo Michael Ruse: «Se a pessoa de fé quiser dizer que Deus criou o mundo, não acho que se possa negar isto por razões científicas»(1). O que Deus faz está no campo da religião e fora dos assuntos da ciência. Isto parece razoável mas está errado.
O erro é julgar que a ciência lida com aspectos da realidade como a matéria, o espaço e energia como o carpinteiro trabalha com a madeira e o pedreiro com a pedra. Assim, tal como o carpinteiro não solda e o pedreiro não aduba, o cientista não toca no sobrenatural. Desde que seja aquele deus, é claro. Os religiosos não levantam objecções quando a ciência refuta as crenças sobrenaturais dos outros; só as suas é que estão fora do âmbito da ciência, noutro “nível da realidade”. Isto está errado porque o propósito da ciência é encontrar as ideias – modelos, hipóteses, teorias e afins – que melhor correspondam à realidade. Por isso, aquilo que a ciência molda, esculpe, serra e martela são as ideias e não a realidade em si.
Para se ir aproximando da verdade, a ciência confronta constantemente todas as ideias umas com as outras e com tudo o que, a cada momento, justificadamente se julga saber. Não é um processo linear nem isento de retrocessos porque por vezes revela que o que se julgava ser conhecimento era erro. Mas só isso já é uma vantagem sobre as alternativas e a história da relação entre a ciência e as religiões é uma prova de como a ciência é a mais fiável. Apesar de inicialmente terem tentado, pela força, que fosse a ciência a ceder, o que tem sempre acontecido é a ciência revelar erros nas crenças religiosas. O contrário nunca aconteceu.
Também é errado pensar que a ciência só serve para avaliar ideias que sejam empiricamente testáveis. O conhecimento não é um saco de alegações soltas. É um edifício de modelos e teorias fortemente interligados. As fundações têm de assentar em dados empíricos mas, desde que seja sólido, o edifício pode ir muito mais alto. É por isso que a ciência pode responder a perguntas hipotéticas como o que acontece se explodir uma bomba nuclear no Chiado ou como se pode cultivar plantas em Marte. Mesmo sem testar directamente as respostas pode-se avaliá-las pela sua consistência com o edifício de conhecimento que já está construído. É também assim que podemos concluir, com legitimidade científica, que a Alexandra Solnado não fala com Jesus, que o professor Bambo não tem poderes videntes e que as biópsias que a Maya faz por telefone não são de fiar. Não por podermos testar cada alegação individualmente mas porque o conhecimento que temos, assente num fundamento empírico, faz com que a hipótese mais plausível seja a de que essas alegações são falsas.
Aplica-se o mesmo às doutrinas religiosas. Considerando o que sabemos, desde a física e cosmologia à psicologia e sociologia, a hipótese que tem melhor fundamento é a de que os deuses são uma invenção humana. Se bem que a ciência não explique tudo, sem deuses explica muita coisa enquanto os deuses não explicam nada. A imaginação humana tem limites e não chegaria para inventar a mecânica quântica ou a teoria da relatividade sem ser guiada, passo a passo, por muitos indícios experimentais. Mas os mitos religiosos são comparativamente simples e vagos e estão bem dentro daquilo que os humanos conseguem inventar por si. Se a pessoa de fé quiser dizer que Deus criou o mundo, está no seu direito. Diz e acredita o que quiser. Mas é legítimo que a ciência rejeite essa hipótese porque há uma hipótese alternativa com um fundamento muito mais sólido: os deuses são personagens fictícios.
1- New York Times, Opinionator, Does Evolution Explain Religious Beliefs?
Eu por acaso um argumento que não entendo é o de afirmar que como os deuses e os seus actos estão para lá do espaço e do tempo a ciência estão para lá da análise cientifica.
ResponderEliminarOra primeiro era necessário demonstrar que os deuses existem. Depois demonstrar que estão para lá do espaço e do tempo.
Porque é que a ressurreição dos profetas judeus descrita nos evangelhos não pode ser investigada pela ciência ?
O relato de Leda e do cisne pode perfeitamente ser investigado.
Isto só faz sentido se se admitir que os deuses nunca interferiram. Isto é que não há nenhum efeito mensurável causado por eles.
É sempre a mesma treta. Partem para uma análise psicológica dos deuses, ou de ET s sem previamente descobrirem os ets.
No fundo os YECs são mais coerentes.
Tudo o que possa contrariar a versão da Bíblia, na tradução escolhida e pelo método que elegeram é Cristofobia e evolucionismo.
Ludwig,
ResponderEliminarOutra vez?
Se há aspecto em que noto algum avanço na retórica do Ludwig, é na medida em que ele cada vez vai pensando mais a ciência como algo semelhante a uma religião, ou seja, a um sistema racional de crenças que assenta em evidências e se configura como um modelo de que se extraem consequências lógicas e práticas, nomeadamente normativas, teóricas, éticas e outras.
Onde constato uma perseverança no erro é na insistência, desintegrada e desarticulada, dos conceitos vários que qualquer um tem e pode ter, da ciência e da religião, como se isso tivesse qualquer relevância para uma discussão sobre os méritos e a bondade teórica das matérias.
Com toda a facilidade consegue configurar situações ou até identificar, todo o tipo de disparates acerca de tudo e, como não podia deixar de ser, acerca da química e do cristianismo etc..
Não abona a favor do Ludwig, nem contribui para esclarecer, muito pelo contrário, que seja a esse nível que prefere pensar e dissertar.
Quanto a modelos científicos, o facto de a minha religião ser um modelo científico em tudo semelhante ao modelo que supõe a existência do busão de Higgs não quer dizer que seja menos científica do que a mecânica quântica.
E os cientistas profissionais que trabalham sobre a origem e a explicação dos fenómenos seguem um método que não difere em racionalidade do método do cristão que vai à missa e acredita em Deus.
Newton pode explicar-me as leis que regem o fenómeno da gravidade (mesmo sem ter compreendido o que esta é, e mesmo que a tivesse compreendido) que essa explicação não altera, nem esse fenómeno, nem o facto de eu e ele termos a mesma atitude científica.
Perante o mundo e a natureza, perante o conhecimento e perante si, ninguém está em condições de dizer muitas coisas “garantidas” para além do modo como funcionam e, mesmo aqui, é crescente a nossa ignorância sobre esse funcionamento, os porquês e os para quês.
ResponderEliminarSe por acaso fosse um religioso, padre ou não, cristão, muçulmano, etc…a explicar a existência e a importância das simetrias, não seria por ele ser religioso que o Ludwig deixaria de o considerar cientista. De idêntico modo, se um cientista, físico, químico, sociólogo, economista…explicar por que acredita em Deus criador, não seria por ele ser cientista que o Ludwig deixaria de o considerar religioso.
Crer em Deus, sendo absolutamente complexo, também parece absolutamente simples.
Deus não é, nem tem sido, um obstáculo para a razão e a inteligência. Pelo contrário, sem Deus, um modelo cosmológico racional e inteligente não é concebível. Neste âmbito, e numa escala de eternidade e de infinito, perguntar por Deus e acreditar em Deus é ciência da mais genuína, como aliás decorre da noção de ciência que o Ludwig adopta.
Quando estudamos o hadrão, estamos a fazer ciência, que não é menos nem mais ciência do que quando estudamos a anti-matéria, ou quando estudamos a estrutura de um insecto, ainda assim, não estamos a estudar, propriamente a mesma coisa, ou o mesmo objecto, ainda que, numa análise avançada das questões, se possa dizer que todo o objecto de estudo tem “algo” em comum e que este “algo” é aquilo de que todas as coisas são constituídas e que todas as coisas são formas que esse algo assume. E ainda que tivéssemos de admitir que, vendo bem, quando vamos em demanda desse “algo”, o que quer que seja, as formas em que se manifesta são o que verdadeiramente tem significados e importância.
Ludwig,
ResponderEliminarDiz: "As religiões são sistemas de regras assentes em alegações acerca do que os deuses querem e toda a autoridade religiosa deriva desses alegados factos."
Eu não concordo. Por exemplo, o Budismo, se levado na sua vertente original tal como pregada por Siddhartha Gautama, pode ser entendido com uma crença agnóstica. Em geral, as religiões orientais são mais baseadas no individuo e menos nos Deuses, o que pode parecer estranho a quem só conhece as religiões de origem semita.
"Para se ir aproximando da verdade, a ciência confronta constantemente todas as ideias umas com as outras"
Eu não creio que o objetivo último da ciência seja "a verdade", pois tal, creio eu, nunca pode ser alcançado visto existirem tantas "verdades" quantos observadores. Como dizem os ingleses:"It's in the eye of the beholder". Assim, parece-me mais correcto dizer que a ciência seja a procura da compreensão, da lógica do Universo, ou do "logos" grego.
No que tenho lido e discutido sobre isto tenho encontrado três reacções à incompatibilidade entre a ciência e as crenças religiosas.
ResponderEliminarLudwig, essa tese da "incompatibilidade entre a ciência" e o Cristianismo já foi rejeitada há muitos anos atrás (até por muitos ateus). Não está na hora de rever os argumentos?
E note-se que eu disse do Cristianismo e não das "religiões" (visto serem estas fundamentalmente distintas umas das outras).
A propósito, só um à parte, talvez não seja má ideia ires pensando em mudar de template do blog visto que é o mesmo há pelo menos 6 anos (altura em que comecei a abençoá-.lo com a minha presença, se não me engano).
Fica bem.
Mats
Carlos,
ResponderEliminar«Outra vez?»
Não... ainda.
«o facto de a minha religião ser um modelo científico em tudo semelhante ao modelo que supõe a existência do busão de Higgs não quer dizer que seja menos científica do que a mecânica quântica.»
Porreiro. Se a tua religião é um modelo científico estamos de acordo que deve ser avaliada da mesma forma que os modelos científicos. Podes detalhar esse modelo e mostrar que evidências tem de que corresponde à realidade?
«Se por acaso fosse um religioso, padre ou não, cristão, muçulmano, etc…a explicar a existência e a importância das simetrias, não seria por ele ser religioso que o Ludwig deixaria de o considerar cientista. De idêntico modo, se um cientista, físico, químico, sociólogo, economista…explicar por que acredita em Deus criador, não seria por ele ser cientista que o Ludwig deixaria de o considerar religioso.»
Certo. Mas, como já expliquei várias vezes, o problema não é uma pessoa poder tratar um assunto de forma científica e outro assunto de forma não científica. Um cientista que estude genética e nas horas vagas seja astrólogo é astrólogo e cientista. A incompatibilidade não está numa hipotética incapacidade da pessoa mudar a sua atitude conforme a situação. A incompatibilidade está em que se abordamos a astrologia ou a religião de forma científica chegamos a conclusões incompatíveis com as conclusões a que chegam os crentes e os astrólogos acerca desses assuntos.
António
ResponderEliminar«Por exemplo, o Budismo, se levado na sua vertente original tal como pregada por Siddhartha Gautama, pode ser entendido com uma crença agnóstica.»
Chamam-lhes buddhas e bodhisattvas em vez de deuses mas a ideia é a mesma. O fundamento do budismo é um conjunto de alegações infundadas acerca de entidades sobrenaturais. E não é nada agnóstico. Eles não dizem que não se pode saber. Afirmam mesmo que essas coisas existem e o budismo depende dessas coisas existirem.
Ludwig,
EliminarTal não é verdade. O budismo - e repara por favor que eu não sou um conhecedor desta religião, apenas um curioso que vai lendo umas coisas - não necessita de um ou de vários deuses; a ideia, tanto quanto tenho lido sobre o assunto, é que buddha ou um bodhisattva (na prática um buddha que escolheu não o ser) é um guia (um guru) e não "o salvador"; nesse aspecto é muito diferente das religiões de origem semita, em que o mero mortal está sempre dependente da graça de Deus para que seja salvo, sendo que saber se é só isto que é necessário ou algo mais, é um dos motivos de cisma entre as várias vertentes cristãs. Os islamitas, dizem que tem de saber responder "que crê em Deus e em Maomé o seu profeta", mas a ideia é sempre ter um Deus juiz. Tal não existe no budismo original, embora algumas vertentes, também para ter uma melhor aceitação entre as tradições mais antigas (p.ex. no Tibete) façam uso e abuso dos deuses, mas sempre como intermediários, ou seja tipo os santos católicos e nunca como deuses com poder final.
Mats,
ResponderEliminar«Ludwig, essa tese da "incompatibilidade entre a ciência" e o Cristianismo já foi rejeitada há muitos anos atrás (até por muitos ateus). Não está na hora de rever os argumentos?»
Concordo que se deve rever os argumentos. É isso que faço e chego à conclusão contrária. Penso que não há evidências que justifiquem concluir que o Papa é infalível, que os santos intercedem quando rezamos, que a hóstia se transubstancia ou que Jesus era a encarnação do criador do universo.
«E note-se que eu disse do Cristianismo e não das "religiões" (visto serem estas fundamentalmente distintas umas das outras).»
Como deves ter reparado pelos exemplos que dei, também “o cristianismo” são na verdade várias religiões. Não é unânime entre os cristãos a adoração de santos, do Papa e essas coisas.
«talvez não seja má ideia ires pensando em mudar de template do blog visto que é o mesmo há pelo menos 6 anos»
Ando indeciso se hei de apagar as listas de blogs ou dar-me ao trabalho de actualizá-las. Mas, de resto, não percebo porque é que deveria mudar o template. Tanto quanto sei não tem prazo de validade como os iogurtes :)
Ludwig,
ResponderEliminar«Mas, como já expliquei várias vezes, o problema não é uma pessoa poder tratar um assunto de forma científica e outro assunto de forma não científica.»
Não me refiro a isso. Esta é a confusão de que não prescindes. A forma é científica em ambos os casos que apontei. É científica, independentemente da religião do cientista. Tu próprio tens uma concepção religiosa da ciência. O que restringes, por razões que já foram debatidas, como o teu militantismo ateísta, é os limites do objeto. Quando te apraz, defendes que o que importa é o método científico e, quando te apraz, o método científico já não importa.
Quanto ao modelo científico da minha religião, já te dei uma dica. Começa pelo modelo da gravidade do Newton e passa para os mecanismos quânticos. Depois é pegar na religião cristã e estabelecer/reconhecer as analogias. Dá muito trabalho. A investigação bosónica envolve meios astronómicos e tem imensos financiamentos. Pela minha parte, talvez um dia, nas férias, me dedique a isso. Agora, posso aconselhar que penses nisso e que retires as ilações, caso a ciência te interesse.