Treta da semana (passada): o ultraje.
No ano passado, o estudante de arte Élsio Menau enforcou uma bandeira de Portugal como trabalho final de curso. Uma metáfora pouco subtil do estado do país. Alguém fez queixa à GNR, a GNR apreendeu a obra, o estudante foi prestar declarações, o procurador conduziu o inquérito, o estudante foi a julgamento, no julgamento o procurador pediu que o arguido fosse absolvido e aguarda-se agora a leitura da sentença (1). A fantochada toda deveu-se a um dos piores artigos do nosso código penal:
«Artigo 332.º Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»
Juridicamente, este artigo é uma asneira porque define um crime com base unicamente numa avaliação subjectiva, e até privada, do acto. É razoável que os tribunais tenham em conta a intenção com que se comete um ilícito, mas a ilicitude deve basear-se também em algo objectivo. Se um condutor mata um peão num atropelamento importa saber se o matou de propósito, por negligência ou sem culpa nenhuma. Mas não só está o facto objectivo de que o matou na base de todo o processo como as diferentes intenções implicam actos objectivamente diferentes. Se acelerou em vez de travar, se ia a falar ao telemóvel ou se o peão saltou para a auto-estrada para se suicidar, por exemplo. O crime de ultraje não é assim. É crime atar a bandeira a uma forca se na mente de quem a ata estiver a intenção de a ultrajar mas é lícito atá-la exactamente da mesma maneira se a intenção for a de criar uma metáfora.
Eticamente, este tipo de legislação é condenável porque viola direitos das pessoas – a liberdade de expressão, por exemplo – em favor de hipotéticos “direitos” de símbolos abstractos. A bandeira é um pano, a república é um conceito e o hino nacional é uma música. Nenhuma destas entidades tem as capacidades sensoriais e cognitivas necessárias para se sentir ofendida ou ultrajada. Mesmo que alguém, por alguma estranha razão, sofra psicologicamente por terceiros ultrajarem um pano, compete-lhe a si lidar com a situação, talvez pedindo ajuda especializada, mas nunca com intervenção policial. Pessoalmente, sinto-me muito mais ultrajado quando os meus alunos me entregam código sem indentação. No entanto, limito-me a descontar um valor na nota do trabalho e nunca chamei a GNR por causa disso.
Finalmente, numa perspectiva pragmática esta lei é um disparate. A GNR interveio e apreendeu a obra. O procurador instaurou um inquérito. O arguido foi ouvido, o juiz analisou o processo, marcou-se um julgamento e agora lavra-se uma sentença. Tudo à custa dos nossos impostos e sem utilidade nenhuma. Na melhor das hipóteses desperdiçou-se dinheiro e tempo enquanto prescrevem os processos de quem rouba milhões. Na pior, o homem vai mesmo para a cadeia e ainda temos de pagar mais umas dezenas de milhares de euros pela estadia dele e a multa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pela parvoíce de leis que temos.
Sei que há quem, mesmo concordando com a inocência deste artista, discordará das minhas críticas à lei por achar que devemos respeitar os símbolos da nação. Mas mesmo dando valor a essa simbologia – confesso que, para mim, um pano é um pano – há pelo menos duas boas razões para rejeitar este tipo de leis. A primeira é a severidade e frequência das atrocidades que têm resultado de dar menos valor às pessoas do que a abstracções como deuses, ideologias ou símbolos. A história e os cemitérios estão cheios de testemunhos desse perigo. A segunda é que uma lei que regula o que é subjectivo passa o poder do legislador eleito para o funcionário que decide quando é que a lei se aplica. Mesmo quem der valor aos símbolos da nação deve reconhecer que a lei tem de ser clara para quem é obrigado a respeitá-la e não pode ser um instrumento de poder discricionário para quem a aplica. Esta lei é um ultraje maior à democracia do que qualquer forma de atar uma corda a um pano.
1- I oinline, Bandeira enforcada.
Ludwig,
ResponderEliminarSó queria lembrar a velha máxima, com um pequeno ajuste: a lei é má, mas é lei.
E com isto quero dizer que, também nós cidadãos somos responsáveis pelas leis que temos. Devíamos ser mais exigentes dos políticos que elegemos e o parlamento que supostamente devia ser “o local” por excelência para melhorar as leis, serve no máximo para trabalhar as trapalhadas, os joguetes da oligarquia que (desde sempre?) nos governa.
No livro “Porque falham as nações”, Daron Acemoglu e James Robinson defendem que os países são mais ricos também porque os seus povos conseguiram de alguma forma impor por um lado limites à acção dos políticos (eu olho para a trapalhada do governo vs tribunal constitucional com um bom exemplo do que os políticos gostariam de ter e ainda bem que não têm!) e por outro, uma sociedade que é mais exigente dos políticos que elege.
A perspectiva dos nossos políticos é: 1) angariar votos para ser eleito, 2) fazer o que quiser até às próxima eleições, pois não há qualquer controlo, 3) não atacar demasiado o chefe, caso contrário não vai para a lista nas próximas eleições (castigo, tipo para putos reles).
Eu gostaria de ver o parlamento como de facto “a casa” do povo. Que fosse as iniciativas como as que por exemplo a Deco levou a respeito dos limites às taxas bancárias fossem mais publicitadas. Que fosse mais simples aos cidadãos enviar propostas de debate e que os resultados chegasse ao grande público, ou pelo menos aos que gostam de ver os telejornais, ou de ler um jornal comum (o diário da república não se enquadra).
Finalmente, sobre a arte tenho a dizer que sou um tanto quadrado. Se a peça “fala comigo” considero arte, senão é pura perda de tempo. Também tenho direito à minha teimosia.
«Esta lei é um ultraje maior à democracia...» …sem dúvida, a lei dos ditos "símbolos nacionais" apenas serve para discriminar e cria, um paradoxo, já que o conceito de «símbolo nacional» estaria no seu oposto...
ResponderEliminarO CONFUSO MACACO TAGARELA E A INGRATIDÃO DE CHARLES DARWIN
ResponderEliminarA certa altura, talvez por começar a antecipar a sua conclusão de que “não há nenhuma prova isolada e definitiva de que o ser humano evoluiu de um antepassado distante unicelular, ou de um antepassado primata comum ao chimpanzé”, o Ludwig Krippahl autodefiniu-se como “macaco tagarela”.
Provavelmente o objetivo seria o de apresentar-se a ele próprio como o derradeiro e definitivo “missing link” entre macacos e homens, já que nem os Neandertais conseguem desempenhar esse papel, sendo hoje equiparados ao chamado homem moderno.
Talvez o Ludwig contasse com o apoio póstumo de Charles Darwin, que hoje integra o corpo místico dos evolucionistas em decomposição.
O curioso é que Charles Darwin, longe de se mostrar agradecido ao Ludwig Krippahl e de aplaudir o seu espírito de sacrifício pessoal, limitou-se a repetir aquilo que havia dito na sua carta 13230, de 1881:
“the horrid doubt always arises whether the convictions of man's mind, which has been developed from the mind of the lower animals, are of any value or at all trustworthy.
Would any one trust in the convictions of a monkey's mind, if there are any convictions in such a mind?”
Ou seja, nem Charles Darwin lhe agradece!
Pelo contrário, pôs em causa a inteligência do Ludwig, chamando a atenção para o facto de que se o Ludwig evoluiu do macaco não é certo que as suas convicções possam ser consideradas dignas de crédito!
Ao autodescrever-se como "Pithecus Tagarelensis" o Ludwig meteu-se num beco sem saída epistemológico de onde nem Darwin o pode salvar.
Ou seja, o Ludwig foi chumbado a pensamento crítico pelo próprio Charles Darwin!
Por amor de Deus, de Jeová, de Osiris, de Brama e de Xiva!
EliminarMas o que é que este comentário tem a ver com o tema do post?!?
Há lá coisas do diabo!