domingo, agosto 10, 2014

Treta da semana (passada): novamente a taxa.

Passados uns anos, a ver se a malta se esquecia, voltou a ideia de taxar tudo que guarde bits para ressarcir as sociedades de cobrança pelo prejuízo de não receberem tanto dinheiro quanto gostariam de receber (1). Os problemas continuam os mesmos. A lei consente a reprodução «Para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor» (artigo 81º do CDADC). Mas, pelo privilégio de podermos usar o que é nosso, seja papel, tinta, cassetes ou fotocopiadoras, pagamos uma taxa a entidades como a SPA, que depois gerem o dinheiro muito bem gerido antes de dar algumas sobras aos autores. Esta legislação visa incluir neste sistema também o domínio digital, o que não faz sentido por várias razões.

O equipamento digital é usado quase sempre para criar e guardar obras da autoria do próprio, sejam documentos de trabalho, mensagens escritas, fotografias ou vídeos, pelo que se estará a taxar a maioria dos autores em benefício da minoria que se registou e de um número ainda menor de administradores das organizações de cobrança. Mesmo que o benefício destes últimos seja considerável, a única criatividade que isto incentiva é a de encontrar formas de importar estes aparelhos sem pagar a taxa. Além disso, se bem que haja um direito à cópia privada em suporte analógico, no domínio digital o DRM impede a cópia sempre que o detentor do monopólio o queira porque é ilegal contornar protecções digitais de cópia mesmo que seja para exercer um direito legal. Finalmente, ao contrário do papel branco ou da cassete virgem, o suporte digital serve quase sempre para guardar material pago, como livros electrónicos, jogos, sistemas operativos e músicas. No fundo, querem cobrar-nos uma taxa pelo equipamento de que precisamos para lhes comprarmos o que eles vendem. E se bem que muita gente vá descarregar muita coisa sem pagar, enquanto isso for ilegal não faz sentido cobrarem uma taxa como contrapartida por um direito que, legalmente, não temos.

Infelizmente, há um argumento forte do lado desta iniciativa. A lei: «No preço de venda ao público de todos e quaisquer aparelhos mecânicos, químicos, eléctricos, electrónicos ou outros que permitam a fixação e reprodução das obras e, bem assim, de todos e quaisquer suportes materiais das fixações e reproduções […] incluir-se-á uma quantia destinada a beneficiar os autores, os artistas, intérpretes ou executantes, os editores e os produtores fonógrafos e videográficos» (artigo 82º do CDADC). Não importa se é injusto, absurdo, prejudicial ou contra-producente. É a lei. O que revela que o problema mais importante aqui nem são estas propostas reincidentes das taxas sobre os bits. O problema é o copyright em si.

É logo de desconfiar que haja legislação específica para compensar os detentores dos direitos exclusivos de cópia. Porque, apesar de ser justo que alguém seja compensado quando sofre um prejuízo, isso já está previsto na lei. Se um condutor espeta o carro contra uma loja tem de compensar o lojista não só pelos danos mas também pelos dias que este ficar sem clientes. É justo, e normal, que os tribunais obriguem a parte que prejudica a compensar a parte prejudicada. Mas isso exige que se demonstre ter havido prejuízo. O que há de anormal no CDADC é assumir-se automaticamente que a cópia é um prejuízo que tem de ser compensado. É como assumir que guardar o dinheiro debaixo do colchão causa prejuízo aos bancos, cozinhar em casa causa prejuízo aos restaurantes, ler livros emprestados causa prejuízo aos editores e que todos estes, por esse prejuízo, devem ser compensados com uma taxa se permitirmos que as pessoas façam estas coisas. É uma ideia absurda.

No entanto, este absurdo é o fundamento do copyright. Mesmo que por vezes se alegue outros “direitos”, vêm sempre dar aqui. A alegação de que o fundamento do copyright é um direito de propriedade sobre a obra não resiste à constatação de que, além de não se poder ter direitos de propriedade sobre abstracções – seria como vender a camisa e continuar dono da posição dos botões – ninguém aceita que o autor possa proibir alguém de declamar ou cantar, de emprestar ou revender livros e assim por diante. Só de copiar. A ideia de que o copyright se justifica porque o autor merece ser remunerado pelo seu trabalho também não serve. Por um lado, porque ninguém tem direito a remuneração sem que alguém assuma o dever de o remunerar. A remuneração justa exige um contrato. Por outro lado, ninguém propõe que se pague ao autor em função do trabalho que este teve. É sempre em função do número de cópias. Ou seja, assumindo que a compensação não é merecida pelo trabalho mas porque alguém copiou.

Continuo, como dantes, contra a taxa dos bits. Mas desta vez aproveito para apontar que o problema está no copyright e não na taxa. Porque não me prejudica que vocês leiam ou copiem este texto. Porque se não quisesse que lessem não o tinha publicado. E, especialmente, porque se eu quiser ganhar dinheiro com isto sou eu quem tem de arranjar quem me pague. Não é ao legislador que compete fazer esse trabalho por mim, nem com taxas nem com monopólios.

1- Como da outra vez, a Maria João Nogueira fez um apanhado das notícias e posts sobre o assunto.

2 comentários:

  1. Como já tenho defendido, se os autores consideram que a cópia privada lhes causa prejuízo, que o façam reflectir no preço de venda das obras. Estas iniciativas de lucro por lei são proteccionismo do pior.

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  2. Eu cá sugiro que os nossos políticos tentem taxar "a nuvem". Afinal, agora que "as nuvens" andam na moda, e como parecem proliferar até ao pondo de darem cabo do verão, mais vale mesmo taxar tudo o que se mexa.
    Pode ser que com um pouco de sorte, nem sequer fiquem com um país de velhos, pode até ser que fiquem com o país só para eles... uma maravilha política à beira mar plantada.... Um sonho!

    Que cambada de inúteis! Só é pena que o pessoal continue a votar nestes políticos. Também sou dos que acha que era uma coisa interessante ver o que é que eles fariam se fossem eleitos com uma taxa de 10% ou menos de votantes.

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