Feminismos.
Há umas semanas, Richard Dawkins tentou exemplificar o problema de se deixar as emoções toldarem o raciocínio. No Twitter, escreveu «X é mau. Y é pior. Se alguém achar que isto é uma defesa de X, que se vá embora e não volte enquanto não aprender a pensar logicamente»(1). Depois ilustrou a generalização com a violação, substituindo X por “date rape” e Y por violação por um estranho. Infelizmente, o exemplo foi perfeito demais.
A resposta emocional foi tão forte que muita gente simplesmente ignorou o argumento de Dawkins, que era acerca da lógica e não da violação, e considerou apenas a alegação de que «Date rape is bad. Stranger rape at knifepoint is worse». Além disso, mesmo pessoas que, normalmente, tentam abordar os problemas de forma racional, optaram por proclamar a sua indignação com Dawkins por este «chegar ao ponto de insinuar que a reacção emocional dele a um tema muitas vezes emocionalmente destrutivo, prevalece sobre a de qualquer pessoa que possa discordar. Não se pode comparar violações numa escala. Ponto final.»(2)
Além de falharem o alvo, devia também ser fácil perceber que a premissa de não se poder comparar violações tem de ser falsa. Em qualquer outro problema ético ou jurídico temos de fazer comparações mesmo havendo sempre aspectos subjectivos. Se em vez de violação for agressão, burla, homicídio, furto, assalto ou ataque terrorista é óbvio que se pode dizer que há casos piores do que outros. Por outro lado, o próprio conceito moral e jurídico de violação exige essa comparação para se traçar a linha que separa o tolerável daquilo que merece cadeia. Por exemplo, exigir sexo ameaçando terminar o namoro é desprezível mas não deve ser ilegal. Coagir uma relação sexual ameaçando despedimento ou despejo já pode justificar-se constituir crime e se a ameaça for de um tiro ou uma facada será um crime ainda mais grave. Não se pode legislar ou regular o comportamento sem avaliar aspectos subjectivos numa escala onde se marque os limites a partir dos quais os actos devam ser reprimidos.
Individualmente, por muito que cada um se tente orientar por ideais de cepticismo e racionalidade, encontrará sempre temas em que lhe é mais difícil ser racional. Por isso, individualmente, não me preocupa cada uma destas respostas emotivas ao que Dawkins escreveu, mesmo vindas de cépticos. As pessoas são mesmo assim. Uma vantagem importante das comunidades de cépticos, ateus e demais racionalistas é a facilidade com que criticam as ideias dos outros e a naturalidade com que aceitam essas críticas. Isto permite colmatar colectivamente as falhas individuais, corrigindo no grupo o que é difícil ao indivíduo corrigir. Mas, neste caso, o mecanismo de correcção colectiva está a ser afogado pelo coro de “misoginia” e “sexismo” de quem defende o feminismo errado.
Há um feminismo assente na ideia de que, independentemente das diferenças entre homens e mulheres, em questões éticas, morais ou jurídicas é tudo gente com direitos iguais que o sexo não serve para discriminar. Esse feminismo conquistou muito de bom em algumas partes do mundo e é preciso mantê-lo vivo para continuar o trabalho e levar esses avanços onde ainda não chegaram. O feminismo que se indigna com Dawkins é o contrário. É o feminismo dos “women's issues”, dos direitos da mulher em vez dos direitos da pessoa e da ideia de que só as mulheres podem decidir sobre esses direitos. Este feminismo, além de injusto, acaba por prejudicar até as mulheres. Por exemplo, o primeiro feminismo contribuiu para se aceitar, cada vez mais, que pai e mãe são igualmente responsáveis pela gravidez e pelos filhos e que a sociedade deve zelar pela maternidade e paternidade. Isto tem ajudado a aliviar pressões económicas sobre as grávidas e a reduzir a discriminação nos contratos de trabalho. O outro feminismo fez dar à mulher o direito legal de abortar sempre que queira. Além de descurar os direitos do abortado isto tornou a gravidez num problema exclusivo da mulher, invertendo boa parte do que o outro feminismo conseguiu. O resultado é o aborto de um quarto dos fetos em Portugal (3) e é pouco credível que vinte mil abortos por ano se devam a uma opção livre, sem aquelas pressões sociais e económicas que um feminismo a sério devia combater.
A tese de que «Não se pode comparar violações numa escala. Ponto final.» também rema contra o progresso. A moral tem evoluído principalmente tornando a escala cada vez mais inclusiva e universal. No início só lá estavam homens com influência e quem violasse uma mulher tinha de saldar contas com o pai ou com o marido. Gradualmente, foi-se incluindo camponeses, escravos, estrangeiros, mulheres, crianças e agora até se tenta estender a escala a outras espécies. Graças ao feminismo da igualdade de direitos, em alguns países as mulheres não só estão na escala a par com os homens como contribuem para a definir com o seu voto e pela participação cívica. Mas uma sociedade justa exige que se possa debater livremente essa escala e que se considere os interesses de todos quando se decide onde separar o tolerável do proibido.
O feminismo emotivo, indignado, que defende que as mulheres têm uma escala à parte, que só as mulheres podem avaliar certas coisas e que é machismo opinar sem ovários não só reforça preconceitos menos lisonjeiros acerca do feminismo e do feminino como arrisca desfazer o progresso que o feminismo mais fundamentado tem conseguido. O progresso moral não se consegue lutando por direitos de certos grupos sem enquadrar consensualmente esses direitos nos direitos de todos. Para isso, é preciso mais capacidade para discutir os problemas de forma objectiva do que de gritar que se está ofendido ou indignado.
1- Richard Dawkins, Response to a bizarre twitter storm
2- Amy Roth, On Richard Dawkins Being a Liability to Atheism
3- Aproximadamente sessenta mil nascimentos por ano e vinte mil abortos.
"Conclusões" baseadas em reacções emocionais dão sempre asneira.
ResponderEliminarEm vez de analisarem o que comentam, as pessoas reagem desta maneira super-emocional só porque a palavra violação está lá em vez de outra qualquer, como roubo, por exemplo. É uma coisa que eu não percebo muito bem. Já tinha lido o raciocínio do Dawkins e pareceu-me tudo bem. Ele não está a dizer que não é errado. E pensar desta maneira faz com que as penas sejam mais justas - casos mais violentos levam penas mais altas, claro. É isso que as vítimas querem, justiça, não é?
«E pensar desta maneira faz com que as penas sejam mais justas...» - Ou, pelo menos, proporcionais.
ResponderEliminarDe facto esse posting do Dawkins gerou muita confusão na Inglaterra. Na semana passada ainda estavam falando sobre esse assunto no BBC world. O problema do Dawkins é que ele escreve para gente de intelecto elevado e nem toda a gente tem o background cultural e académico necessário para entender do que ele está a falar.
ResponderEliminar"O outro feminismo fez dar à mulher o direito legal de abortar sempre que queira."
ResponderEliminarVadias! A querer ter controlo sobre o próprio corpo!
Em todo o caso fica registado que o Bom Feminismo é o feminismo com o qual tu concordas. O resto é o Mau Feminismo que até dá mau nome ao Bom Feminismo. :)
ResponderEliminar«O outro feminismo fez dar à mulher o direito legal de abortar sempre que queira.»
ResponderEliminarQueres ver que o referendo em Portugal era só para gajas e eu furei o esquema sem das por nada?
«Além de descurar os direitos do abortado»
ResponderEliminarPor falar em violações. Podes identificar por favor o direito do abortado que desaparece quando uma mulher é violada e tu passas a concordar com o aborto?
Escuto.
NOTA:
ResponderEliminarAo questionar se o referendo em Portugal era só para gajas quis apontar-te que um processo referendário do qual resulta a legalização do aborto (algo que a maioria dos votantes entendeu como um passo civilizacional importante) não é um benefício apenas para as mulheres, nem resulta num estreitamento do direito ao direito da fêmea. A liberdade para as mulheres resultante da legalização não é uma expressão de feminismo, a não ser que estejas tu próprio a destituir o cromossoma Y ao ponto de nos tomares por néscios alienados das decisões importantes.
Num contexto mais alargado, penso que estás também enganado ao presumir que racionalidade é sinónimo de feminismo desde que não seja do “mau”. Na minha humilde e normalmente infrutífera utilização da cabeça, sempre consegui submeter-me à racionalidade bastante para colocar o feminismo - sem diferenciações - na mesma sanita em que coloco o machismo.
(tu próprio já te tens esforçado por libertar o ateísmo do “ismo”, por favor não comeces por me explicar o que é feminismo e passa logo à minha segunda pergunta :)
CHICKEN !!!!
ResponderEliminarNão podes irritar os ludwikings com argumentos mal amanhados para depois nos deixares aos saltinhos no ring com calções de boxe dias e dias...
A sério, Ludwig. Eu nem queria saber por que raio havemos de chamar feminismo à força motriz da igualdade de género. A ideia era mesmo identificar com objectividade o “direito do abortado” que a tua leitura da realidade representa mais uma vez com intermitência.
O tema do aborto é sensivel... É obvio que é deplorável que se use como método contraceptivo, mas se se reflectir correctamente sobre isso, o principal prejudicado continua a ser a mulher. Um aborto não é uma vacina, ou um comprimido para a dor de cabeça, não é como ir ali comer um gelado. Há alterações fisicas e hormonais no corpo da mulher, portanto ela acaba sempre por sofrer.
ResponderEliminarO que de facto aceito como argumento válido para monopolização da decisão é o papel do pai, que deveria ter uma palavra a dizer. Por exemplo ter a hipotese de assumir a paternidade da criança sozinho, se ela não quisesse a criança e vice versa, poder "rejeitar" a criança. O mundo não é binario.
Por ultimo faz-me muita confusão essa coisa do temos de obrigar todos os fetos a nascer, mesmo que venham a crescer numa familia de desmiolados, sem condições, que nunca os quis ter. Que tipo de adulto é que essa criança vai ser? Se houver um que cresça e se torne uma pessoa responsável compensa os outros milhares que assaltam e destroem propriedade publica? Tropecei nesta ideia no livro "Freakonomics" (cap4) onde o autor refere a correlação entre a redução do crime e a legalização do aborto. http://en.wikipedia.org/wiki/Legalized_abortion_and_crime_effect
. Compreendo que correlação não implica causalidade.. mas parece-me um argumento forte. Ao referir isto naturalmente que não quero promover alguma especie de eugenia... é só no sentido de referir que pelo menos o aborto legalizado ajuda a que as crianças que nasçam sejam desejadas e crianças que se sentem amadas tornam-se melhores adultos.
Quanto ao feminismo.. enfim.. há uma palavra para o que ele quer ser "humanismo". Um ismo com polarização de género, não pode ser universal.