Treta da semana: a sandes pública.
Uns jovens “activistas” decidiram criar um “movimento solidário”. «Pegando no Conceito dos "Banhos Públicos" e dando-lhe alguma utilidade Social surge então as "Sandes Públicas", a ideia é simples Prepara uma sandes e oferece-a alguém cheio de apetite!»(1). Por “alguém cheio de apetite” querem dizer alguém cuja miséria seja tão grande que não tem que comer ou onde dormir e por “utilidade Social” querem dizer fazer um vídeo mostrando como são bonzinhos e dão sandes aos sem-abrigo. Uma sandes, mais precisamente, porque depois nomeiam outros para que façam o mesmo e propaguem o movimento solidário de mostrar os sem-abrigo no YouTube a receber sandes. Na entrevista, salientam que o que os move não é a fama, apesar de mencionarem com orgulho os milhares de fãs e visualizações. O que lhes importa é «o sentimento do dever cumprido»(2). No meio desta aberração toda, até é isso que mais me preocupa.
O problema já é antigo e nunca se deveu à falta de solidariedade, porque quem tem muito facilmente diz ter pena de quem não tem nada. O problema foi sempre a má distribuição. Como já dizia António Aleixo:
O pão que sobra à riqueza,
distribuído pela razão,
matava a fome à pobreza
e ainda sobrava pão.
Antes que mais jovens activistas se precipitem, saliento que não se trata de uma exortação à distribuição de sandes. O pão do poema é metafórico. Mas o mais relevante neste poema é que não propõe distribuir por solidariedade, nem por caridade, nem por pena dos pobrezinhos. É pela razão. Ou seja, da forma justa e certa.
Se alguém é atropelado não tiramos uma foto enquanto lhe damos um penso. Queremos ambulância, hospital, médicos e que for preciso para o tratar. Mesmo que essa pessoa não tenha dinheiro e mesmo que se tenha atirado para a estrada sem olhar, é uma pessoa que sofreu um acidente e todos temos o dever de lhe garantir auxílio. Por isso pagamos para que se construa hospitais, para que se contrate médicos e para que se preste cuidados de saúde a quem precisar. Não é por solidariedade. É por dever.
Se alguém estiver a ser espancado na rua não o entrevistamos enquanto lhe damos uma palavra de coragem. Exigimos polícia, justiça e o que for preciso para que haja segurança nas ruas. E, para isso, pagamos esquadras, polícias e juízes. Não é por pena dos espancados. É por obrigação. É também o que fazemos com os passeios, as estradas, os jardins e a iluminação pública, e também com os esgotos, as escolas e as campanhas de vacinação. Não é por caridade mas por ser a forma correcta de resolver os problemas importantes. Todos devem fazer o mesmo sacrifício para que todos beneficiem por igual daquilo a que todos têm direito.
Também não está certo que quem passa fome e dorme ao relento leve uma sandes e seja filmado para o YouTube. É preciso garantir-lhe um rendimento que dê condições mínimas para viver. Para que tenha onde dormir, onde fazer as necessidades e tratar da higiene, onde possa guardar as suas coisas e para que possa comer condignamente. E não é por ser um coitadinho, nem tão pouco importa se é pobre porque teve azar ou porque é preguiçoso ou doente. É uma pessoa e uma pessoa não merece viver assim. Ninguém tem o direito ao «sentimento do dever cumprido» enquanto este problema não se resolver e é asneira achar que esta caridadezinha é inofensiva. É como tratar um tumor no cérebro com aspirina. Medido pelo sofrimento que causa, este é o maior problema de Portugal e temos de o levar a sério.
Por isso aqui vai o meu desafio. Arrumem a máquina de filmar e enfiem a sandes onde quiserem que isto não precisa de adereços. Eu apoio quem implementar um rendimento incondicional garantido em Portugal e aceito que me aumentem os impostos o que for preciso para o conseguir. Agora nomeio toda a gente que diga importar-se com a pobreza a comprovar com a carteira o que dizem de boca e fazer o mesmo. Não é para dar uma sandes ou 20€. É para dar o que for preciso, todos os meses e a vida toda para resolver isto de vez, que já é altura. E não é por caridade, nem por solidariedade nem por pena. É pela razão.
PS: para poupar trabalho, aqui fica o link: http://www.rendimentobasico.pt.
1- Facebook, Sandes Públicas
2- SIC, "Sandes Públicas" são uma causa solidária.
Olá.
ResponderEliminarNa questão do rendimento básico, quanto seria um valor aceitável? - Em Lisboa é mais caro ter um tecto do que na aldeia.
Para não falar que muitos sem abrigo são-no em resultado de problemas mentais, adições, etc. Despejar dinheiro não iria resolver muita coisa.
Mais facilmente apoiaria o incremento de serviços municipais com criação de emprego prioritário para pessoas carenciadas.
Caro Ludwig,
ResponderEliminarCom a mudança dos tempos e também das vontades, permita-me que faça umas pequenas alterações às suas ideias:
"Se alguém é atropelado não tiramos uma foto enquanto lhe damos um penso".
A ideia não é chamar a ambulância ou prestar ajuda, mas antes passar muito disfarçadamente ao lado e tentar que ninguém repare. Lá diz o ditado "Cada um sabe de si, e Deus sabe de todos!"
"Se alguém estiver a ser espancado na rua não o entrevistamos enquanto lhe damos uma palavra de coragem."
Nunca se sabe se foi agredido por ajuste de contas entre gangues... e coiso... o melhor é fazer de conta!
"Também não está certo que quem passa fome e dorme ao relento leve uma sandes e seja filmado para o YouTube."
Exactamente, o melhor é que alguém contribua com grandes somas, que isto de dar sandes e perder tempo a distribuir e fazer upload e tal, dá muito trabalho e custa muito dinheiro.
Agora mais a sério, algo que nos dê um pouco mais que pensar: quando de cada dólar/euro que cada um entrega a uma ONG ou qualquer outro tipo de organização realmente chega a quem é suposto?
Parece que a velha história de saber se é melhor dar peixe ou dar uma cana e ensinar a pescar ainda é bastante actual.
Eu pessoalmente já fiz parte de uma organização que distribuía comida e roupa; é verdade que em geral podemos ver verdadeira necessidade quando andamos por esse mudo fora.
Mas a questão é: quanta dessa miséria poderia ser evitada se a sociedade simplesmente funcionasse?
Paulo Ramos,
ResponderEliminarEu acho que um valor aceitável seria por volta do salário mínimo, visto ser aquele que parece consensualmente representar o mínimo necessário a uma vida digna.
Quanto ao «emprego prioritário para pessoas carenciadas», sou contra por duas razões.
Primeiro, porque é exploração. Uma pessoa só aceita recolher lixo durante a noite em troca de 500€ por mês se a alternativa for passar fome, porque se for pelos 500€ em si ninguém faria um trabalho desses por tão pouco. Usar a carência das pessoas para as pôr a trabalhar está próximo demais da escravatura para que o considere aceitável.
A outra razão é que a redistribiuição deve ser encarada como justiça e não caridade. É para todos, por igual. Por isso não temos escolas públicas para pobrezinhos. Temos escolas públicas para toda a gente. O mesmo para os hospitais, a justiça, a polícia, as estradas, os esgotos e tudo o resto. É assim que a redistribuição do dinheiro também deveria ser feita: todos receberem o mesmo.
Obviamente, o que tem de ser igual na colecta é o sacrifício exigido e, por isso, quem ganha mais irá pagar mais. O aumento dos impostos para quem tenha rendimentos mais elevados teria de ser até superior ao que iria receber como complemento por este rendimento incondicional. Alguém como eu iria ficar com significativamente menos do que tem agora. Mas é fundamental que isto não seja um subsídio de pobreza a dar apenas aos miseráveis.
Ludwig,
Eliminareu acho que uma implementação dessas abriria um colapso económico.
O que aconteceria às pessoas que ganham o salário mínimo a trabalhar 8 horas por dia? Obviamente deixariam o emprego para ganhar o Rendimento Básico, a não ser que as empresas aumentassem radicalmente o salário - o que implicaria aumentar os preços dos produtos e serviços.
Aumentar os preços conduziria a uma inflação em espiral. Ora a inflação significa a desvalorização do dinheiro. Esta desvalorização implicaria o aumento do Rendimento Básico, completando mais uma volta na espiral sem fim.
Eu acho que isso seria uma Caixa de Pandora.
Abraço
António,
ResponderEliminar«Mas a questão é: quanta dessa miséria poderia ser evitada se a sociedade simplesmente funcionasse?»
Precisamente. O Estado desperdiça muito e temos de andar sempre atentos à corrupção. Mas, ainda assim, funciona muito melhor do que a caridade informal, por muito organizada que seja.
É por isso que estamos melhor servidos com um sistema público de educação do que com explicadores voluntários que ensinem os pobrezinhos a ler e a contar. Ou com um sistema público de saúde em vez de voluntários que distribuam sopinha quente aos efermos.
O meu ponto principal é que a pobreza é outro problema sério que tem de ser abordado da mesma forma e não pode ser deixado a cargo da caridadezinha. Não é sequer significante que as pessoas finjam que não vêem e que não é nada com elas. Há boas razões para que não se vá mexer à toa no tipo que foi atropelado e para não nos metermos no meio do pessoal à pancada. Mas é necessário organizar a resposta a essas situações, e o mais adequado nesses casos são ambulâncias, médicos e polícias.
Também no que toca à pobreza há uma veneração irracional de quem se compadece, tem pena e ajuda em pessoa em detrimento de um olhar mais atento ao que realmente faz diferença. Não é a sandes nem o vídeo no YouTube...
Ludwig,
EliminarEu concordo que em geral que há muito desperdício no estado, nisso estamos de acordo, bem como no seu papel essencial em muitos serviços como a educação, a saúde e da segurança, entre outros. Nisso não há questão.
Creio que o que nos realmente separa neste assunto, é o sentido de "sociedade". O estado por si só não é - e creio eu, não deve ser - "a sociedade".
Já me tenho dado conta de dizer um tanto a brincar que um desses dias, os pais só servem para gerar filhos e como são incompetentes, mais vale entregar os putos ao estado para os criarem e dar educação. É assim tipo a cena dos Monty Pyton e a senha grávida prestes a dar à luz à qual o médico diz que ela não vai fazer nada, porque não tem competência.
Eu acho que a sociedade tem de começar e acabar nas pessoas, que na verdade são o "estado", e não o conjunto anónimo de burocratas que povoam as instituições públicas.
Assim, ainda que mal organizada, nem toda a caridadezinha é feita de gente que quer aparecer. Há os verdadeiros "bons samaritanos", que contra todas as expectativas ainda persistem e resistem.