sábado, setembro 06, 2014

Incentivo.

O Samuel Henriques criticou o meu post anterior sobre a taxa pela cópia privada. Uma das críticas foi a de que eu refiro sempre o copyright quando «O direito de autor português não corresponde ao copyright anglosaxónico»(1). É precisamente por isso. Eu não sou contra o direito do autor ser reconhecido como criador da obra, de não ser associado a deturpações do que criou e de decidir se publica a obra ou se a mantém privada, por exemplo. O que oponho é a concessão de um monopólio legal sobre a cópia e sobre a criação de obras derivadas. Ou seja, o copyright. O Samuel também apontou que é fácil criticar a taxa sobre equipamento digital sem atacar o monopólio sobre a cópia. Até pode ser. No entanto, o problema maior aqui não é pagar 4€ de taxa na compra de um disco rígido. Muito pior é ser crime partilhar informação que está publicamente disponível em qualquer loja.

O Samuel desafiou-me também a propor uma «solução que melhor ajude a criação artística». A premissa parece ser a de que estes monopólios incentivam os autores a criar as suas obras e que só podemos abolir esta legislação se a substituirmos por algo que incentive ainda mais. Aceito o desafio, mas tenho de desfazer os mal entendidos primeiro.

O Reino Unido foi pioneiro nestas coisas. Em 1538 passou a exigir aprovação e censura prévia de todo o material impresso e, em 1662, atribuiu à guilda dos tipógrafos o direito exclusivo de imprimir o que a Coroa autorizasse. Quando um tipógrafo registava uma obra ficava com o direito exclusivo e perpétuo de a imprimir, sem que o autor fosse sequer consultado. Eventualmente, os protestos dos autores levaram, em 1710, à primeira legislação de copyright. Esta mantinha o sistema de monopólio mas concedia ao autor o monopólio inicial e limitava a sua duração a 14 anos (2). É importante perceber como o contexto em que este sistema surgiu diferia do copyright moderno, especialmente no domínio digital. O monopólio era concedido sobre a tipografia, uma actividade industrial acessível apenas a uns poucos comerciantes e fora do alcance da generalidade dos autores e dos leitores. Além disso, a concessão do monopólio aos autores foi uma reacção à injustiça de o conceder logo aos tipógrafos e assumia que, de qualquer forma, os autores teriam de ceder esse monopólio por não serem donos de tipografias. No fundo, algum monopólio existiria, com ou sem a lei, pelas restrições que a tecnologia impunha e ao contrário do que acontece agora.

Há também evidências de que o copyright era menos benéfico para os autores do que um mercado livre e competitivo. Por exemplo, a falta desta legislação na Alemanha do século XIX levou a preços mais baixos e a maiores volumes de vendas do que no Reino Unido, beneficiando autores, leitores e a cultura em geral (3). Hoje também é evidente que o monopólio só serve os distribuidores. O decréscimo dramático na venda de discos fez encerrar muitas lojas e causou prejuízos às editoras mas não resultou em qualquer decréscimo na composição de músicas novas nem em prejuízo, em média, para os artistas (4). Nada disto deve surpreender quem percebe como um monopólio funciona: um monopólio permite aumentar os lucros por limitar a concorrência. Por exemplo, hoje estão a ser reeditados mais livros escritos nas décadas de 1900 e 1910 do que em qualquer década entre 1920 e 1980. O número de títulos com edições novas apenas ultrapassa o de 1910 para obras mais recentes do que 1990. Este buraco de 80 anos corresponde à duração média do copyright dessas obras, período durante o qual o detentor do monopólio opta por não editar títulos que possam concorrer com outros que esteja a promover (5).

Outro erro é julgar que os autores precisam de um incentivo para criar. É claro que, depois de terem sucesso, vão sempre querer mais monopólios, por mais tempo, para ganharem mais dinheiro (6). Mas um artista precisa de tanto incentivo para se exprimir pela arte como eu preciso para comer chocolate. O que temos de dar ao autor são condições para que possa criar, condições essas que o copyright degrada significativamente por dificultar o acesso à cultura, por obrigar os jovens artistas a competir com detentores de vastos monopólios e por proibir a criação de obras derivadas.

Para responder ao Samuel, há alternativas melhores para ajudar a criação cultural. Maior investimento na educação artística aumentaria muito a qualidade das obras, quer por formar melhor os autores quer por tornar o público mais exigente. Melhor apoio social a famílias carenciadas reduziria o número de autores que perdemos por lhes ser impossível começar essa carreira. A quem precisa de comer agora não adianta uma promessa vaga de, eventualmente, receber royalties durante setenta anos. Em geral, o que mais ajuda a criação artística é o que mais ajudar cada pessoa a seguir os seus interesses e a aproveitar a suas aptidões. Mas se queremos uma medida imediata, eficaz e de custo zero para fomentar a criatividade artística, então a melhor alternativa ao copyright é simplesmente aboli-lo. Com a tecnologia que temos, esse sistema monopolista do tempo de Gutenberg faz muito mais mal do que bem.

No entanto, nada disto importa. Discutir os efeitos económicos do copyright é como discutir se a escravatura seria boa ou má para a economia. O copyright usa os nossos impostos para financiar medidas coercivas que restringem o que podemos fazer com o nosso equipamento, e a informação que podemos partilhar, só para rentabilizar um modelo de negócio que, no fundo, consiste em vender números. Ao lado deste absurdo, qualquer questão de ajudar ou dificultar a criação artística torna-se irrelevante.

1- Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.
2- Wikipedia, Statute of Anne
3- Quem lucra.
4- Torrent Freak, ARTISTS MAKE MORE MONEY IN FILE-SHARING AGE THAN BEFORE IT
5- Heald, How Copyright Keeps Works Disappeared Illinois Program in Law, Behavior and Social Science Paper No. LBSS14-07; Illinois Public Law Research Paper No. 13-54.
6- Por exemplo, BBC, Rock veterans win copyright fight

Sem comentários:

Enviar um comentário

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.