segunda-feira, setembro 15, 2014

Ciência e filosofia

são a mesma coisa. Se bem que hoje pareça uma afirmação estranha, até meados do século XIX nem sequer havia cientistas. Desde que uns gregos trocaram a mitologia por uma abordagem crítica e racional até que William Whewell cunhou o termo “cientista”, quem procurava o conhecimento era filósofo*. Mesmo o “cientista” original era somente quem estudava as filosofias naturais, excluindo disciplinas como a psicologia, a história ou a sociologia. Só a especialização crescente em vários campos é que fez calcificar a noção da ciência como separada da filosofia. Uma noção que, além de falsa, é prejudicial para ambas.

Normalmente, invoca-se uma de duas razões para separar filosofia e ciência: a de que são métodos diferentes ou a de que abordam problemas diferentes. A primeira é fácil de descartar porque o melhor método para responder a qualquer questão é sempre o de pensar criticamente nas respostas à luz da experiência. Aristóteles propôs que as pedras caíam porque o seu lugar natural era em baixo. Por experiência, sabia ser errado propor que as pedras subiriam por o seu lugar natural ser no céu. É também esta a abordagem da física moderna e, se Aristóteles soubesse o que se sabe hoje, teria proposto algo semelhante ao que se propõe agora. A abordagem racional e crítica é a mesma quer se chame filosofia quer se chame ciência. O que dá a sensação de serem diferentes é, por vezes, interpretar-se as perguntas de forma diferente. O que nos traz à segunda razão que se invoca para distinguir ciência e filosofia.

Vamos considerar, como exemplos, as questões “o que é a matéria?” e “o que é o bem?”. Os proponentes da separação dirão que a primeira questão é científica por ser abordada de forma empírica enquanto que a segunda é filosófica por ser debatida pela argumentação crítica. Mas, em qualquer área, a fronteira do conhecimento é sempre parca em experiência. A física moderna é um enorme edifício conceptual testado e fundamentado empiricamente mas o seu limite, onde a construção decorre, é dominado pela argumentação. Enquanto não se consegue testar as teorias mais sofisticadas, os físicos teóricos argumentam entre si como fazem os filósofos da ética e como faziam os gregos na antiguidade. A diferença está apenas na quantidade de conhecimento prévio que isto exige. Enquanto que o conhecimento empírico necessário para perceber Aristóteles ou a filosofia ética é apenas o que qualquer pessoa normal já tem, para filosofar na física moderna é preciso saber muito mais e quem percorra esse caminho acaba rotulado de “físico” e “cientista” o que, por preconceito, exclui que o reconheçam como filósofo também. Mas a diferença no fundamento empírico é apenas de grau e não de categoria.

Também quem filosofar na ética tem de usar o seu conhecimento empírico para filtrar as hipóteses que apresenta. É por isso que não se vê filósofos a propor que o bem moral seja definido em função de fazer cócegas, lavar mais branco ou ter a embalagem mais atraente. Por experiência, sabemos que faz mais sentido olhar para factores como expectativas, consequências, actos ou virtudes. A ilusão de que a filosofia ética não é empírica resulta apenas do conhecimento empírico necessário, neste momento, estar facilmente acessível a todos. Assim, o estudo adicional que a filosofia ética exige foca os argumentos em vez das experiências e das hipóteses que delas surjam. Mas isto pode mudar. Se a neuropsicologia descrever em detalhe como factores externos e mecanismos internos restringem as nossas decisões, e como quantificar experiências subjectivas, esse conhecimento informado pela experiência passará a ser indispensável para a filosofia da ética. Não só por eliminar hipóteses factualmente incorrectas, como já aconteceu a boa parte das éticas de inspiração religiosa, mas porque a nossa capacidade de conceptualizar detalhes é muito limitada e, sem ajuda da experiência, só conseguimos formular ideias vagas.

Resumindo, eu considero a filosofia e a ciência como extremos num contínuo, com a filosofia exigindo menos dados empíricos (mas sempre alguns) e mais argumentação e a ciência exigindo menos argumentação (mas sempre alguma) e mais conhecimento empírico. Isto facilmente induz o erro de ver a filosofia como uma fase primitiva da ciência, erro que eu próprio tenho cometido até começar a escrever este post. Esse erro advém de olhar para um ponto fixo por onde o conhecimento avança. Mas, se acompanharmos essa fronteira em expansão, vemos que a filosofia está sempre na crista da onda, abrindo o caminho para a consolidação empírica a que chamamos ciência. E, mesmo sendo a frente mais filosófica e a cauda mais científica, não há uma fronteira definida entre elas nem se pode separar as duas porque a abordagem é a mesma, só as circunstâncias é que vão gradualmente mudando e tornando uma na outra.

Perceber que filosofia e ciência são partes de um contínuo indivisível é importante quer para cientistas quer para filósofos. Pode ajudar os cientistas que dizem desprezar a filosofia a perceber que nunca podem prescindir dela e pode ajudar, por exemplo, o Dawkins a lembrar-se de que tem sempre de ter cuidado com a consistência dos argumentos que apresenta. Também pode ajudar os filósofos que acusam os cientistas de serem “filosoficamente ingénuos” a perceber que, estando a filosofia à frente da ciência, é um erro ignorar a investigação científica. Por exemplo, acusar Krauss de ter um conceito “filosoficamente ingénuo” do nada pode ser um disparate tão grande como o de, sem compreender a teoria da relatividade, acusar Einstein de ter um conceito “filosoficamente ingénuo” da gravidade só porque nunca citou Aristóteles nos seus artigos. Imaginar que a filosofia e a ciência estão separadas permite acusações cómodas de parte a parte por dispensar o conhecimento dos factos ou a reflexão adequada. Mas o resultado tende a ser um disparate que seria fácil evitar se percebessem que não se pode reflectir sem informação nem se pode compreender sem reflexão.

* Também havia teólogos, místicos, profetas e essa gaita toda. Mas isso sempre foi aldrabice.

7 comentários:

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  2. Parte 1: Em relação à frase "eu considero a filosofia e a ciência como extremos num contínuo, com a filosofia exigindo menos dados empíricos (mas sempre alguns) e mais argumentação e a ciência exigindo menos argumentação (mas sempre alguma) e mais conhecimento empírico." gostaria de comentar o seguinte:
    Ainda bem que existem pessoas com um background em ciência que consideram que a filosofia tem um papel importante . Eu acho que o lugar da filosofia no cenário da ciência cada vez mais é incitar o cientista a pensar fora da caixa e a propôr questões de uma forma que o cientista não está habituado a fazer ou fora dos problemas técnicos com que os cientistas estão habituados a lidar.

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  3. Parte 2:
    Passo a expandir: Na minha experiência como estudante e lecture de Universidades do Norte da Europa eu noto que a especialização cientifica começa muito cedo no curriculum universitário e o syllabus é muito estreito (narrow) e focado mas tecnicalidades da especialidade. Mas verdade seja dita que isto varia de curso para curso. Por exempo, supervisiono alunos da Uni de Cambriidge nas áreas de Veterinária, Biologia Antropológica e Ciências naturais ( o equivalnete à nossa biologia). Existe uma grande variação na abertura destes alunos de acordo com os cursos que estão a tirar, de acordo com as escoldas de onde vieram (na maioria escolas privadas de classa alta e média alta) e dos paises de origem. Os veterinários são muito mais fechados do que os da antropologia e quando lhes dou tutoriais em ética animal, é sempre uma dor de cabeça fazer com eles saiam daquele pensamento técnico. Isso vê-se também com os estudantes de medicina, biologia molecular and the lot. Estes são pessoas que vêem o seu assunto com um atitude técnica quasi de engenheiro, i.e.. "Aqui tenho um problema que preciso de resolver. How do I fix the machine?" Correm toda a base de dados adquirida durante o seu curso, pprocurando informação aprendida que lhes permita arranjar a máquina ou produzir máquinas novas. No caso da biologia a máquina é o orgnismo vivo, da célula ao corpo multicelular completo.
    Quando tenho alunos asiáticos então ainda é pior. Eles apenas se concentram no que precisam de aprender para ter boa nota no exame, mesmo que eu lhes diga que para aproveitar a experiência de estar em Cambridge, eles devem ir a palestras de outros colégios e departamentos para terem acesso a um tipo de conhecimento que tipicamente não está disponível dentro da área deles, e não estará disponível quando eles voltarem para os seus paises e começarem a trabalhar nos seus projectos. A maior parte destes estudantes vêm de famiílias muito ricas, são mimados e terão poucas oportunidades de ser dasafiados quando voltarem para os seus países, devido à sua autoridade.
    Assim, a filosofia deveria ser obrigatória nestes cursos de ciência, especialmente porque os fará pensar sobre o impacto da sua ciência na sociedade e no ambiente.
    Quem trabalha em engenharia genética está positivamente biased em favor do desenvolvimento de organismos genéticamente alterados. Os écologos estão biased contra. Na verdade nem todos os OGMs são perigosos Mas também nem todos os OGMs são a panaceia dos porblemas da fome no mundo. Poucos pensam que talvez uma abordagem relacionada com o controle de população seja mais eficaz. É preciso que os alunos tenham uma visão do impacto social da sua ciência.
    Em Information Technology, um amigo Professor em Segurança na Internet no Computing Lab (Cambride) tem um MA em Philosofia da Ciência e tem gente a trabalhar com ele com um background em Psicologia e neurobiologia. Nos seus seminários, frequentemente questões filosóficas vêm à tona ( e nos jantares da casa dele, o que pode tornar os jantarers quite noisy and argumentative). Nesses jantares ele grita e ficamos todos entusiasmados com as discussões, mas no fim todos compreedemos que o nosso entusiasmo se refer aos argumentos apresentados e não são ad hominen. O terinamento em pensamento crítico ajuda-nos a distinguir quando o ataque é ao argumento e não à pessoa.

    Também sou de opinião que muitos filósofos que se pronunciam sobre assuntos da mente e especialmente aqueles que fazem declarações sobre diferenças/similaridades entre humanos e outros animais deveriam estar mais bem informados sobre assuntos cientifícos em neurbiologia e evolução de comportamento ( behavioural ecology), pois já ouvi muito filósofo dizer cada besteira sobre as capacidades "inferiores" dos animais que faz tremer de espanto qualquer etólogo de segunda classe.

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  4. «Perceber que filosofia e ciência são partes de um contínuo indivisível é importante quer para cientistas quer para filósofos»...B Russell escreveu em 1912 "The Problems of Philosophy" a meio do seu "Principia Mathematica"...porque será…

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  5. Bravo! Excelente artigo. Numa discussão recente entre «filósofos amadores» — vamos chamar-lhes «livres pensadores» — de um grupo que se reune online todas as terças à noite, em que participam engenheiros, cientistas, filósofos, e gente que não pertence a nenhum dos campos mas que gosta de discutir pelo prazer de discutir, e, sabendo existirem muitas pessoas no grupo que defendem que a filosofia nos dias de hoje não tem interesse nenhum, e que a ciência «matou» a filosofia (como já tinha «morto» a teologia, a alquimia, a bruxaria...), lancei o desafio de considerar que todos aqueles que se intitulam «cientistas» não são mais do que filósofos especializados (e se afirmarem o contrário, não perceberam ainda o que é que faz um cientista). Mais especificamente, um cientista é um filósofo que, para a aquisição de conhecimento, usa o método científico. Na filosofia há outros métodos de aquisição de conhecimento para além do método científico; é, pois, mais vasta. A discussão então centrou-se nesses «outros métodos», com alguns participantes a atrever-se a insinuar que, se a aquisição de conhecimentos não for feita através do método científico, então não serve para nada. Discordei, usando o mesmo argumento que tu. Lá porque um filósofo não use o método científico — digamos, porque na sua área específica este tem difícil aplicabilidade, como por exemplo, pode ser difíceis de identificar as variáveis mensuráveis, ou pode ser difícil dar a uma teoria poder de previsão (casos típicos: a teoria da evolução das espécies por selecção natural funciona fora do planeta Terra? Não podemos responder a isto de uma forma científica porque não conhecemos [ainda] nenhum outro planeta que tenha vida) — não quer dizer que não use argumentação lógica, que use a razão, que tenha uma abordagem neutra e afastada do objecto de estudo. Pode-se argumentar racionalmente se a vida noutros planetas segue ou não a mesma teoria de evolução das espécies por selecção natural, mesmo sem visitar outros planetas. Não precisamos de «desligar o cérebro» e inventar falácias, porventura emocionalmente, só porque há aspectos do universo que ainda não podemos apreender directamente com o método científico.

    Nessa discussão não fui muito persuasivo. Infelizmente o contra-argumento vinha do campo daqueles que acham que um filósofo, usando muito sofismo, consegue provar que branco é preto e que Bem é Mal, usando pseudo-argumentos racionais e lógica incompreensível (ou redefinindo o que é lógica e aplicando-a ao objecto de estudo). Argumentavam eles que os filósofos pós-modernos só se preocupavam com esse tipo de coisas, sem qualquer utilidade — meros exercícios de palavras — pelo que a filosofia não tinha nada a ver com a ciência, e vice-versa.

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  6. Bem, eu infelizmente não conheço nenhum desses filósofos pós-modernos, pelo que não sei qual é a sua credibilidade. Conheço, sim, felizmente, alguns filósofos do mundo real — académicos que trabalham em grande proximidade com «cientistas» («filósofos naturais»!) e que procuram dar um enquadramento a certas áreas da ciência. Vou dar um exemplo concreto, dado por um filósofo desse tipo. Até recentemente, considerava-se que uma simulação (normalmente feita por computador nos dias que correm) era uma «ferramenta» útil para procurar entender certos aspectos do universo, mas que só uma teoria validável empiricamente teria efectivamente algum valor; porque uma simulação pode ser falseada, há limitações no modelo, o computador pode ter sido mal programado, etc. Ora ano passado o prémio Nobel da química foi dado justamente a quem usava uma simulação não meramente como «ferramenta acessória», mas efectivamente como a ferramenta de aquisição de conhecimento — porque a realidade é demasiado complexa, as equações demasiado difíceis de trabalhar, e não havia outra forma de adquirir qualquer conhecimento na área específica sem recorrer à simulação. Felizmente a comissão do prémio Nobel concordou com esta avaliação. O trabalho deste filósofo, que deu umas palestras (e publicou uns artigos), foi justamente o de explicar em que medida a simulação pode funcionar perfeitamente como ferramenta directa (e não meramente acessória) para aquisição de conhecimento segundo o método científico.

    Ou seja, estava a fazer «metaciência» (não me citem, acabei de inventar isto!): a estudar a forma como a ciência usa o método científico para adquirir conhecimento, e como podem existir outras formas que permitem essa aquisição de conhecimento, até agora menosprezadas ou talvez mesmo ignoradas, de obter resultados, sem «fugir» do método científico. Nesse sentido, o filósofo estava-se a colocar precisamente no ponto que eu referi: não «à parte» da ciência (porque estava a estudar ciência e como a ciência funciona), mas fora dela no sentido em que a sua argumentação — lógica, racional, neutra, isenta, destacada — estava fora do processo habitual que os cientistas usam para aquisição de conhecimento.

    Poderão os antagonistas deste filósofo, discordando de que a simulação deva ser qualquer coisa mais do que «meramente uma ferramenta acessória e secundária», argumentar os pontos que este refere e eventualmente estabelecer o oposto. Ora essa discussão, mais uma vez, faz-se «fora» da esfera da ciência. Mas não deixa de ser uma argumentação racional e lógica. Usa essa mesma linguagem, tão querida pela ciência, para também chegar a conclusões. Pode estar «fora» do método científico no seu sentido mais estrito (pois esta «metaciência» não adquire conhecimentos directamente sobre o universo, mas discursa sobre a própria capacidade de adquirir conhecimentos e a forma correcta de o fazer), mas usa o mesmo tipo de rigor na linguagem (se não mais!). Isto é que é para mim um filósofo contemporâneo.

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  7. Com certeza que haverão outros filósofos contemporâneos que não se preocupam directamente com a ciência e que estudam outras áreas. Mas fá-lo-ão (se forem sérios!) usando uma linguagem e uma abordagem que será familiar a quem se mova no meio académico. Não pode ser de outra forma! É a «filosofia natural» que foi buscar o rigor da linguagem para descrever aquisição de conhecimentos à filosofia, não o contrário. Se temos rigor na ciência, é porque temos rigor, racionalidade, e lógica na filosofia.

    Por isso é que hoje em dia os doutoramentos concedem o grau «PhD» — philosophical doctor. É suposto um doutorado ser primeiro um filósofo, e depois saber aplicar, na sua área — a ciência — o método adequado — o científico. Mas diziam-me justamente, «ah, isso é apenas uma gracinha, um legado do passado, uma coisa simbólica que não quer dizer nada». Não sei se concordo. Em Portugal, até recentemente, ainda se concediam graus de doutoramento por mérito de uma carreira profissional; distinguem-se dos actuais por nestes ser dado o foco na «filosofia primeiro, método depois» (senão eram scientific doctors ou qualquer coisa do género). Penso que isto é deliberado, não é apenas uma «moda»: é o reconhecimento da necessidade de que os cientistas contemporâneos têm, acima de tudo, primeiro aprender a pensar de forma lógica, racional, rigorosa, imparcial. Depois aprendem o método científico e estudam o seu objecto usando esse método. Mas têm de «saber pensar» correctamente primeiro.

    E, claro, posso estar completamente enganado!

    E obviamente, tal como há «maus cientistas», também há «maus filósofos». Percebo que se critiquem os filósofos pós-modernos por fazerem um mau trabalho, e, logo, através da falácia da generalização, consideram-se todos os filósofos como inúteis, e a filosofia, em geral, como inútil. Penso que isto é um exagero. Também há péssimos cientistas (e não são poucos) e não é por isso que consideramos, em geral, a ciência como inútil.

    E há quem combine as duas coisas... Einstein, por exemplo, tem um pensamento filosófico muito profundo e interessante, mesmo não sendo o filósofo do séc. XX. Como gosto de dizer, se não tivesse sido o chato do Gödel, o Bertrand Russell teria tido a glória de ter sido o maior matemático e maior filósofo do século XX. Assim ficou-se por ser «um bom matemático, tendo cometido algumas gralhas» e um bom filósofo. Mas a minha questão é que os melhores cientistas tendem frequentemente a ser também grandes filósofos, mesmo que sejam mais reconhecidos pelo seu trabalho científico do que pelas suas contribuições para a filosofia...

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