Dawkins, a filosofia, e o aborto.
O Dawkins já se meteu noutra alhada. Afirmou ser imoral não abortar um feto com trissomia 21 (1) e, desta vez, discordo dele. Mas antes de explicar porquê, queria apontar o dedo à treta de descartarem argumentos alegando que o proponente não percebe de filosofia. Neste caso, acusam-no de ser tão ignorante que reprovaria numa disciplina de filosofia (2), o que nem faz sentido. Eu tenho um doutoramento em bioquímica e trabalho em modelação de interacções de proteínas mas, se fosse repetir agora o exame da primeira disciplina de bioquímica que tive na faculdade, chumbava de certeza porque já não me lembro nada de cinética enzimática. A maior parte dos detalhes que aprendemos num curso esvai-se depressa, até porque o objectivo do ensino superior não é formar enciclopédias com pernas. O mais importante é a capacidade de aprender matérias novas e complexas, capacidade essa que duvido que falte ao Dawkins.
Essa alegada ignorância filosófica é também uma ignorância peculiar. Na filosofia natural, os argumentos são filtrados pela sua adequação aos dados empíricos, sendo por isso útil conhecer os dados antes de argumentar. Mas alguns filósofos defendem que a filosofia natural, que agora se chama ciência, não é filosofia e, para as manter separadas, reduzem a filosofia à argumentação especulativa desprovida do crivo empírico. Se bem que assim seja trivial alegar que o outro é ignorante – argumentos há muitos – como isto sabe a pouco acabam por fazer o que se vê no artigo onde acusam Dawkins de ignorância filosófica: «Em última análise, além dos argumentos confusos de Dawkins, o problema principal é que ele não tem evidências. Não há dados empíricos que suportem a sua afirmação que o nascimento de um bebé com síndrome de Down torna o mundo – ou o bebé – mais infeliz»(2). É um padrão recorrente nesta abordagem. Acusam alguém de ser filosoficamente ignorante mas, tal como é mais persuasivo criticar a física de Aristóteles com as evidências da física moderna do que criticar a teoria da relatividade com os argumentos aristotélicos, o que acaba por contar no fim são as evidências e não o conhecimento de um grande número de argumentos, muitos dos quais irrelevantes.
Mas o pior é que a refutação pela alegação de ignorância filosófica é uma falácia. O mérito de um argumento não tem nada que ver com a ignorância de quem o propõe. Chamar ignorante ao interlocutor apenas tenta tornar a refutação mais persuasiva pelo preconceito contra o termo mas sem que seja legítimo inferir daí o que quer que seja. Pelo menos dos filósofos devia exigir-se que não cometessem este erro com tanta frequência.
A posição que Dawkins exprimiu deriva-se trivialmente da premissa de que, até às tantas semanas, a vida do feto é eticamente irrelevante. Vamos supor que o casal tem um problema de saúde que faz com que os seus filhos nasçam deficientes mas que se pode garantir que a criança será saudável se primeiro o casal se submeter a um tratamento simples, barato e com um risco menor do que o da gravidez. Parece-me aceitável dizer que é imoral terem filhos sem se tratarem primeiro e duvido que alguém fosse acusado de ignorante, confuso ou intolerante por sugerir tal coisa. O que está em causa, e que o autor do artigo (2) não compreendeu, não é que a criança seja tão deficiente que a sua vida nem valha a pena viver. É claro que é possível ter uma vida feliz com trissomia 21. Mas o importante é que é melhor ainda viver sem trissomia 21 e se essa alternativa não acarretar outros custos éticos será imoral não optar por ela.
Muitos dos que defendem a legalidade do aborto defendem também que a vida do feto não tem valor ético até certa data. Porque não pensa, não tem cérebro ou o que seja. Este é um ponto importante porque é difícil defender um direito incondicional de matar o feto se considerarmos que a sua vida conta. Mas se assumirmos que o feto é eticamente irrelevante, então o tratamento para a trissomia 21 pode perfeitamente consistir em abortar o feto deficiente para ter outro, saudável. É eticamente equivalente a tratar os pais e é precisamente o que fazem 95% dos casais portugueses quando o feto tem trissomia 21 (3).
Eu discordo de Dawkins porque discordo da premissa. Antes da concepção, os milhões de milhões de potenciais filhos estão em igualdade de circunstâncias e a concepção daquele em vez de qualquer outro depende de uma conjugação improvável de factores alheios à vontade dos pais. Nessa situação, o custo ético de impedir a concepção de um embrião deficiente é pequeno e compensado pela concepção de um embrião saudável. Mas com o feto em desenvolvimento, a decisão de o matar será a causa principal da perda da a sua vida toda e apenas um de muitos factores causais contribuindo para a concepção daquele irmão em particular que o irá substituir. A relação causal diferente entre a decisão e cada uma das consequências faz com que a perda da primeira vida tenha mais peso do que o ganho da vida que a substitui. É uma situação análoga à de matar uma pessoa para salvar outras que precisam de transplantes, por exemplo.
Isto não implica que abortar um feto com trissomia 21 deva ser ilegal. A lei só deve intervir quando a coação for o mal menor e, neste caso, impedir o aborto pela força da lei seria mais imoral do que o aborto em si. Na verdade, até admito que eu talvez cometesse essa imoralidade de abortar um feto com trissomia 21 porque sei o que criar filhos exige dos pais, mesmo quando são saudáveis, e a capacidade de distinguir entre o que é moral e o que é imoral não nos torna imunes ao egoísmo. No entanto, acho que Dawkins, e Peter Singer, não têm razão nisto. Não por serem ignorantes, nem por estarem confusos, nem sequer por apresentarem argumentos inválidos. Acontece simplesmente que é falsa a premissa de que a vida do feto não conta.
1- Guardian, Richard Dawkins: 'immoral' not to abort if foetus has Down's syndrome
2-The Daily Beast, Richard Dawkins Would Fail Philosophy 101
3-Diário Digital, Trissomia 21 tende a diminuir devido a abortos, dizem pais
RICHARD DAWKINS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
ResponderEliminarO problema fundamental de Richard Dawkins está nas premissas naturalistas e ateístas de que parte.
Em primeiro lugar, ele dá como adquirido que tudo veio do nada sem causa (!), oscilando tentativamente entre duas cosmologias destituídas de fundamento e plausibilidade: o Big Bang e o Multiverso, ambas fustigadas pelas observações ou pela falta delas.
Em segundo lugar, ele parte do princípio de que a vida surgiu acidentalmente de químicos inorgânicos, apesar de isso nunca ter sido observado em laboratório ou no campo, da falência das hipóteses sobre a origem acidental da vida (v.g. sopa pré-biótica, gelo, barro, fontes hidrotermais, mundo RNA, panspermia) e do facto de a vida depender de códigos e informação codificada cuja complexidade transcende toda a inteligência humana e que são a marca por excelência de racionalidade e inteligência.
A partir das suas especulações naturalistas, sem qualquer base empírica sólida, ele chega à conclusão de que o ser humano é um acidente cósmico, fruto de milhões de anos de mutações, seleção natural, crueldade predatória, doenças e morte.
É evidente que se torna impossível deduzir a dignidade da pessoa humana a partir destas premissas.
Seria um exercício fútil, irracional e arbitrário.
Um acidente cósmico, por definição, não tem qualquer aspiração de dignidade intrínseca ou de sacralidade.
Richard Dawkins não tem alternativa às suas premissas naturalistas, evolucionistas, ateístas e acidentalistas, que usa como ponto de partida para tirar as consequências lógicas.
É assim que surge a sua defesa do aborto, o infanticídio, tal como Hitler defendeu o homicídio e o genocídio.
Recordemos o que Hitler dizia, no seu famigerado discurso de Nuremberga em 1933:
“Uma raça superior sujeita a si mesma uma raça inferior… uma lei que nós vemos na natureza e que pode ser considerada como a única lei concebível”.
Onde é que ele aprendeu isso?
Recorde-se que o subtítulo do livro a Origem das Espécies, de Charles Darwin, é “o triunfo das nações mais favorecidas na luta pela vida”.
No seu livro “The Descent of Man”, Darwin sustenta que a ideia de dignidade transcendente do ser humano é apenas o resultado de “preconceito natural e arrogância”, considerando igualmente que “a seleção natural surgiu da competição de tribo com tribo”.
Na Bíblia Deus revela que nos criou à Sua imagem e semelhança, como seres racionais e morais, sujeitos à Sua lei moral e ao castigo pela sua violação.
Ele mesmo assumiu a nossa imagem e semelhança quando incarnou para levar sobre si o castigo devido pelos nossos pecados.
Aí está a base da máxima dignidade de todos os indivíduos, que não depende de etnia, sexo, nacionalidade, ideologia, rendimento ou condição física.