quarta-feira, novembro 09, 2011

Direitos e “direitos”.

A propósito do meu último post sobre copyright, o sofrologista católico comentou «Quando dizes que é imoral o direito de propriedade sobre bens que não implicam pelo seu uso a exclusão do uso de outrém estás [...] apenas a enunciar o teu critério de delimitação dos direitos de propriedade.» Penso que o problema principal aqui é uma ambiguidade no termo “direitos”. Esta ambiguidade afecta também outras discussões, como acerca dos direitos dos animais e de Deus como fundamento para a moral.

No sentido mais lato, que referirei com aspas, “direitos” são tudo o que for moralmente permitido fazer. Se eu estiver numa ilha deserta tenho o “direito” de me espreguiçar deitado na areia, por exemplo. Mas, num sentido mais estrito, sem aspas, um direito é uma obrigação moral da parte de terceiros, que têm o dever de zelar por algum interesse daquele que tem o direito. Por exemplo, o direito à educação, à justiça e ao voto. Isto não tenho numa ilha deserta porque não há lá ninguém com o dever de zelar por estes meus interesses.

No entanto, se eu estiver na ilha deserta, os animais de lá terão alguns direitos. Por exemplo, o direito de que eu não os torture. Não porque os animais da ilha percebam de ética – e é essa a confusão de muitos que questionam a noção de direitos dos animais – mas porque eu percebo o problema ético da tortura, o que me torna moralmente responsável por não torturar os bichos. Esta obrigação moral limita os meus “direitos” e concede direitos aos animais, porque torna ilegítimo que me entretenha a torturá-los. Esta distinção é importante porque há “direitos” que temos pelo simples facto de se tratar de actos moralmente irrelevantes, como espreguiçar, direitos (no sentido estrito) que temos por haver quem tenha obrigações morais para connosco, e há aquilo que temos de excluir dos nossos “direitos” (sentido lato) por termos obrigações morais para com outros.

A moral religiosa também sofre desta confusão. A diferença entre um direito e um pecado é atribuída à vontade de um deus, aparentemente pressupondo que, se alguém tem de traçar a linha entre o que é permitido e o que é proibido, mais vale que seja o Chefe a fazê-lo. Por exemplo, a masturbação é condenada por muitas religiões, alegando que o deus assim estipulou. Mas a restrição dos “direitos”, no sentido lato, só se justifica por uma obrigação moral de zelar por interesses de outrem. Como se costuma dizer, o direito de um acaba onde começa o direito do outro. Assim, a vontade de um deus só torna a masturbação é imoral se tivermos para com esse deus o dever moral de não nos masturbarmos. E, a menos que a omnipresença seja um atributo físico em vez de metafísico, isto não faz sentido. Nem um deus tem legitimidade para impor restrições dessas a tais actos privados.

É também esta confusão entre “direitos” e direitos que o sofrologista faz quando diz que eu estou «apenas a enunciar o [...] critério de delimitação dos direitos de propriedade», ao defender que não se pode ser proprietário de categorias abstractas. Não se trata apenas de delimitar os direitos do proprietário, porque os direitos de propriedade não são meros “direitos”. São direitos no sentido estrito. São o reverso de uma obrigação moral que todos os outros têm, de respeitar a propriedade dessa pessoa. Por isso, o problema não é apenas o limite dos “direitos” de um mas sim o de justificar essas obrigações por parte de todos os outros.

Com objectos materiais, é um facto que alguns usos por parte de uma pessoa excluem forçosamente um usufruto igual por parte de outros. Objectos materiais podem ser propriedade com ou sem direitos morais; a bem ou a mal. Por isso, os direitos morais de propriedade sobre bens materiais servem para resolver os conflitos associados às limitações que a natureza impõe. A decisão não é se todos temos o direito moral de usar a mesma escova de dentes ao mesmo tempo. Isso simplesmente não dá. O que a moral nos dá é o conjunto de regras que determinam quem usa qual.

Com bens imateriais isto não acontece. É possível usarmos o mesmo verbo, todos, e ao mesmo tempo. Ou a mesma música, ideia, equação ou sequência de bytes. Quando me oponho à concessão de direitos de propriedade sobre estas coisas não estou a querer limitar os “direitos” do proprietário. É o contrário. Estou a opôr-me às restrições que é preciso impor a todos os outros só para conceder a uma pessoa exclusividade sobre aquilo que pode ser livremente usado por todos.

Este problema é ainda mais grave quando, em nome dos direitos de propriedade sobre bens imateriais, se viola direitos de propriedade sobre bens materiais. Aqueles para os quais é mesmo preciso haver direitos de propriedade. Por exemplo, para que uma editora tenha exclusividade sobre a cópia de ficheiros mp3, por um injustificável direito de propriedade sobre essa sequência de números, é preciso que usurpe o meu direito de propriedade sobre o meu computador pessoal.

Como muita gente, o sofrologista acha que excluir categorias abstractas daquilo de que se possa ser proprietário é limitar os “direitos” dessa pessoa. Do cantor, do editor, do autor. Isto é falso. O que se passa é que conceder direitos de propriedade a essas pessoas implica impor a todos os outros obrigações que, pela natureza desses bens, não são moralmente justificáveis.

1- Comentário em O argumento moral.

12 comentários:

  1. Morality 3: Of objectivity and oughtness

    http://youtu.be/sN-yLH4bXAI

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  2. Os direitos segundo o grande filósofo George Carlin:

    Rights - George Carlin - It's Bad for Ya!

    http://youtu.be/9ivYN-j--ao

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  3. não é moralmente justificável alguns milhões de portugueses pagarem pelos previlégios de umas centenas de milhares?
    inaudito
    cê num assinou a petição não?
    inté a Isabel do Carmo bombista-endocrinologista lá tava

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  4. Ludwig, dizes: "Como muita gente, o sofrologista acha que excluir categorias abstractas daquilo de que se possa ser proprietário é limitar os “direitos” dessa pessoa. Do cantor, do editor, do autor. Isto é falso. O que se passa é que conceder direitos de propriedade a essas pessoas implica impor a todos os outros obrigações que, pela natureza desses bens, não são moralmente justificáveis."

    Primeiro que tudo, queria sublinhar que não defendo nem deixo de defender os direitos de propriedade intelectual. Se é verdade que considero que em certas situações o direito de propriedade parece-me legítimo noutras não. E, como dizes, na medida em que os direitos de propriedade intelectual colidirem com outros valores hierarquicamente superiores de um ponto de vista moral, os direitos de propriedade intelectual devem ceder. Em todos os ordenamentos morais existe uma hierarquia de valores e a tradução concreta dessa hierarquia implica muitas vezes equilibrios com cedências a valores mais elevados. Como se deve situar esse esuilibrio em concreto no que respeita aos direitos de propriedade intelectual ainda não sei.

    O que digo é algo diferente: os direitos de propriedade são convenções sobre a realidade. Essas convenções são arbitrárias mas traduzem um certo número de valores morais. O que te leva, por exemplo, a dizer que os os direitos de propriedade intelectual são intelectualmente injustificáveis (e com a qual concordo pelo menos em certas situações em que conflituem com outros valores morais mais importantes).

    A questão que subsiste (que constituia a segunda parte do meu comentário que citas) é qual o fundamento objectivo do direito de propriedade (e de outros valores morais).

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  5. Sofrologista,

    «os direitos de propriedade são convenções sobre a realidade. Essas convenções são arbitrárias mas traduzem um certo número de valores morais.»

    Os direitos são convenções, mas a propriedade em si não é meramente convencional. Se eliminares de uma sociedade todos os direitos de propriedade, continua a haver coisas das quais se pode ser proprietário. Até pode haver mais dessas coisas. Escravos, por exemplo. Porque a propriedade em si não deriva de direitos morais. Deriva da capacidade de alguém, por esperteza ou força, usufruir de algo excluindo os outros desse usufruto.

    Como isto é possível para objectos materiais, precisamos de regras morais que minimizem os danos. Não se pode ser dono de escravos, o dono de um terreno tem de ceder passagem aos vizinhos, etc. E que minimizem os conflitos, estipulando que se alguém é dono daquela escova de dentes continua a ser o legítimo dono da sua escova de dentes mesmo que o espanquem para roubar.

    Mas em nada disto a propriedade é criada por estipulação moral. Apenas estamos a gerir por regras morais o exercício do poder que temos de tornar certas coisas propriedade.

    Na propriedade intelectual esta situação inverte-se. Na prática, tu não consegues ter poderes exclusivos sobre o que eu sei, penso, canto, ou que ficheiros copio. A propriedade intelectual consiste em criar convenções morais e legais para te dar esse poder. Isso exige uma justificação adicional, e não vejo como é que dar a um tipo direitos de propriedade sobre uma sequência de sons pode compensar a proibição que isso exige impor a todas as outras pessoas. No caso de bens materiais, a “injustiça” de não podermos todos escovar os dentes ao mesmo tempo com aquela escova é um dado da natureza. Mas no caso de bens imateriais, a injustiça de não podermos todos ouvir e partilhar aquela canção que o autor decidiu publicar resultará apenas de uma decisão deliberada da nossa parte.

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  6. sofrologista,

    « qual o fundamento objectivo do direito de propriedade»

    Isso é como perguntar qual é o fundamento objectivo da beleza. Há alguns atributos objectivos que explicam porque é que algumas coisas são mais belas mas o fundamento da beleza (e da ética) é sempre algo que faz parte do sujeito.

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  7. Há quem defenda que os direitos de propriedade têm apenas um fundamento economicista. Isto é, eles existem porque sem eles seriam impossíveis os processos económicos que asseguram o funcionamento da sociedade em que vivemos.

    A propriedade privada possibilitaria (em teoria) que, em função do lugar que ocupam no processos produtivo, as pessoas sejam donas de uma determinada quota-parte desses recursos. Assim se estimularia o esforço e o trabalho na medida em que as pessoas que se esforçam, trabalham ou criam bens ou serviços teriam um contra-partida patrimonial que lhes permitiria continuar e estimular a sua actividade.

    Se for este o fundamento do direito de propriedade, parece legítimo, pelo menos em certa medida, proteger os direitos de propriedade intelectual.

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  8. Sofrologista,

    «Há quem defenda que os direitos de propriedade têm apenas um fundamento economicista.»

    Há quem defenda muita coisa :)

    Mas não me parece uma proposta aceitável. A economia não tem um valor intrínseco; vale apenas pelos benefícios que possa trazer, pelo que não pode ser um fundamento em si.

    Se implementarmos um sistema de direitos exclusivos e licenciamento de verbos e substantivos por empresas privadas, certamente que haveria muito comércio disso, visto que qualquer pessoa que quisesse falar ou escrever tinha de pagar licenças aos detentores dos “direitos”. No entanto, parece-me evidente que isso não seria boa ideia. O fundamento economicista só faz sentido quando se ganha da economia algo de valor, não pela economia em si.

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  9. Ludwig, dizes: "Se implementarmos um sistema de direitos exclusivos e licenciamento de verbos e substantivos por empresas privadas".

    Contudo, quem faz um filme ou compõe uma canção estã numa situação diferente da de quem comercializa verbos e substantivo que sempre (em termos simplistas) existiram.

    De qualquer modo, embora a igreja católica admita o direito de propriedade, coloca-lhe como limite o princípio que Deus deu aos homens a Terra e os seus recursos apenas em vista do bem comum e sempre com o respeito do princípio hierarquicamente superior da destinação universal dos bens.

    Portanto, como já disse, na medida em que os direitos de propriedade intelectual colidem com outros valores hierarquicamente superiores de um ponto de vista moral, os direitos de propriedade intelectual devem ceder. Quais os limites ideais em concreto do exercício desses direitos, não sei.

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  10. Sofrologista,

    «Contudo, quem faz um filme ou compõe uma canção estã numa situação diferente da de quem comercializa verbos e substantivo que sempre (em termos simplistas) existiram.»

    Não é muito diferente. Primeiro, porque podes ter verbos novos, como "blogar", "googlar", etc. E, segundo, porque quem escreve um poema ou canção está a usar palavras que já existiam. Se eu escrever um poema com uma só palavra tenho direitos de autor? É que há disputas de copyright por canções compostas só por silêncio.

    «coloca-lhe como limite o princípio que Deus deu aos homens a Terra e os seus recursos apenas em vista do bem comum»

    Além de essa premissa ser dúbia enquanto facto, é irrelevante do ponto de vista ético. Por muito poderoso que um ser seja, eticamente a vontade desse vale tanto como a de qualquer outro. Por isso não se pode fundamentar os valores morais no propósito de algum individuo, nem mesmo do criador do universo. Os valores morais devem emergir dos interesses de todos, de forma justa e imparcial, e não sujeitando todos à vontade de um.

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  11. Ludwig dizes: "quem escreve um poema ou canção está a usar palavras que já existiam"

    Também os bens físicos (aos quais aparentemente reconheces o direito de propriedade) são compostos de átomos que sempre existiram.

    Talvez a igreja católica tenha razão quando fala na destinação universal dos bens.

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  12. Sofrologista,

    «Também os bens físicos (aos quais aparentemente reconheces o direito de propriedade) são compostos de átomos que sempre existiram.»

    A razão pela qual te reconheço direitos de propriedade sobre a roupa que vestes ou a comida que comes não é por julgar que criaste isso ex nihilo. É porque o uso desses objectos materiais é forçosamente exclusivo e precisamos de um sistema moral para gerir quem usufrui deles. É essa a justificação para os direitos de propriedade: a necessidade de gerir os conflitos de interesse no usufruto de bens materiais. Tal como se passa para direitos de privacidade, liberdade de expressão, integridade física, etc. Tudo isso vem da necessidade de gerir conflitos de interesse entre os vários agentes.

    Mas não vamos perder muito tempo a discutir direitos sobre o que pensamos, porque não faz sentido estar a combinar restrições aos pensamentos uns dos outros, visto que aí não há conflitos legítimos que se tenha de resolver (se bem que algumas pessoas acham justo condenar ou salvar alguém por aquilo que a pessoa pensa, mas isso é disparate :)

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