Ciência, metafísica e filosofia.
Uma coisa que me dizem muitas vezes é que não posso exigir “provas científicas” para alegações que, apesar de serem acerca de factos, se rotulam de metafísicas ou filosóficas. A ideia parece ser de que há jogos diferentes e, por simples troca de etiquetas, o que é claramente falso num passa a verdade indubitável no outro. Cientificamente, a hóstia fica na mesma. Metafisicamente, dá-se um milagre. Treta.
A filosofia procura a compreensão pelo raciocínio metódico e pelo diálogo racional e crítico. A ciência também, e aquilo que hoje chamamos ciência chamou-se, durante séculos, filosofia natural. Agora prevalece a ideia de que a ciência lida com o que é empírico e a filosofia lida apenas com o resto, como a ética e a metafísica. Mas esta ideia é errada. É certo que filosofia abarca muita coisa, dos silogismos de Aristóteles aos dramas de Sartre, da ironia de Kierkegaard à lógica matemática de Russell. Mas muito na filosofia – como a filosofia da mente, da linguagem e da ciência, só para dar alguns exemplos – depende de dados experimentais, exactamente como a ciência. Não há uma fronteira clara a partir da qual uma investigação filosófica passa a ser científica. Esta distinção deve mais a decisões subjectivas de nomenclatura do que a diferenças objectivas entre as abordagens.
A alegada diferença entre ciência e metafísica é outra ficção. Conveniente, mas fictícia à mesma. Consideremos, por exemplo, os postulados de Koch. Se um micróbio está presente nos organismos doentes e ausente nos saudáveis, se depois de purificado e inoculado num hospedeiro saudável este passa a manifestar a doença, e se depois pode ser isolado desse hospedeiro doente, então considera-se cientificamente estabelecido que esse micróbio causa essa doença. À primeira vista, é uma questão empírica e científica sem nada de metafísico.
Mas a relação de causalidade é metafísica. Empiricamente, a única coisa que se pode estabelecer é uma correlação. Sabemos que o micróbio está lá, depois o animal adoece, depois isolamos o micróbio, e assim por diante. Se a ciência, como apregoam, se limitasse ao empírico, nunca poderíamos dizer que o micróbio causa a doença. Apenas se poderia afirmar que, nos casos conhecidos, a doença se correlaciona com a presença do micróbio. Esta seria uma afirmação muito mais limitada. Por exemplo, nesse caso a ciência nunca poderia dizer o que me teria acontecido se não tivesse tomado a BCG e me tivessem inoculado com o bacilo da tuberculose aos 5 anos. Empiricamente, é impossível determinar o que teria acontecido quando não aconteceu. Não faz parte do conjunto de casos conhecidos onde se possa medir correlações. Mas a ciência responde que esse bacilo causa tuberculose e que, por isso, se eu não tivesse tomado a vacina e me tivessem inoculado com o bacilo eu certamente teria apanhado tuberculose. A causalidade, a explicação, o relato de como as coisas acontecem, tudo isso é científico e é metafísico. Se a ciência fosse estritamente empírica estaria limitada a listas de observações do género “este aparelho indicou aquele valor”. E talvez nem isso.
O que não quer dizer que estes aspectos metafísicos do relato científico não sejam testáveis. Não são directamente testáveis, porque a explicação e a causalidade, por si, não são nada que se possa observar. Mas são indirectamente testáveis porque explicações e relações entre causa e efeito implicam restrições àquilo que se espera observar. E a metafísica inclui o estudo de conceitos como o tempo e o espaço, que a ciência tem elucidado, e foi de um cepticismo metafísico que surgiu a epistemologia, o estudo de como podemos saber o que julgamos saber, e a filosofia da ciência, que é também uma ciência da ciência, visto que ninguém consegue fazer filosofia da ciência que valha qualquer coisa sem testar hipóteses contra o que observa os cientistas a fazer.
Invocar a desculpa fácil de que certa alegação não carece do fundamento que deveria ter por ser metafísica ou filosófica assume serem desconexos estes aspectos da nossa compreensão que estão interligados. Explicações, causalidade, relatos acerca do que a realidade é para além do que observamos, ou são um misto de filosófico, metafísico e científico ou não servem para nada. E, ao contrário do que muitos parecem crer, os rótulos de “metafísico” ou “filosófico” não têm o poder mágico de tornar disparates em verdades.
«Se a ciência fosse estritamente empírica estaria limitada a listas de observações do género “este aparelho indicou aquele valor”. E talvez nem isso.»
ResponderEliminarE se dermos razão a Hume, nem podemos dar razão a Hume...
Ludwig,
ResponderEliminarPela tua definição de ciência esta sabe tudo. Nada há para lá do saber. Não se pode saber o que (nem o quanto) não se sabe.
«Cientificamente, a hóstia fica na mesma»
Também um quadro do Picasso, "cientificamente" é a mesma coisa que os seus componentes físicos e químicos, no entanto, todos sabemos que tal não é verdade, ou, pelo menos, que não é isso que é relevante.
Ludwig, Carlos,
ResponderEliminarUma boa discussão no Slashdot onde se abordam essas questões:
http://yro.slashdot.org/story/11/11/02/0221259/theologian-attempts-censorship-after-losing-public-debate
AF,
ResponderEliminarObrigado pela notícia. Que tipo mesmo nojento...
Ludwig,
ResponderEliminarPois é, aparentemente levou uma abada... mas não podemos saber com certeza, nem aferir por nós mesmos, por causa da censura :)
Mas achei interessante a discussão, para além do artigo em si. E achei pertinente porque há vários argumentos e contra-argumentos sobre essa questão suscitada pelo Carlos Soares, sobre a abrangência da ciência e da fé e sobre as componentes metafísicas da ciência.
Agora, claro, estamos a falar do Slashdot :) Quem não tiver uma boa dose de paciência, estômago e capacidade de encaixe, dificilmente aguenta ler uma daquelas discussões :)
Ludwig,
ResponderEliminarUma coisa que me dizem muitas vezes é que não posso exigir “provas científicas” para alegações que, apesar de serem acerca de factos, se rotulam de metafísicas ou filosóficas.
Só porque uma alegação é acerca dum "facto" isso não implica que está sujeita à validação (ou refutação) da ciência empírica.
A lei da não contradição é um facto filosófico mas não se pode medir, pesar, quantificar ou pôr em forma de equação esse facto filosófico.
A filosofia precede a ciência uma vez que a ciência opera segundo princípios filosóficos. Antes de saberes correr, tens que saber andar. Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência.
Logicamente falando, essa definição não pode ser testada cientificamente porque é ela que decide o que é e não é ciência.
No vosso caso, a filosofia que serve de base para a vossa ciência é o naturalismo. Vocês não testam o naturalismo cientificamente. Vocês usam o naturalismo para determinar o que é e não é científico.
Daí se infere que alegações filosóficas estão numa esfera de existência totalmente distinta das alegações científicas.
A doença se correlaciona?
ResponderEliminarKrippahl faz copy pastel como a Pinto Correia?
AF,
ResponderEliminarO vídeo já está online:
https://whyevolutionistrue.wordpress.com/2011/11/02/under-pressure-from-blogosphere-haught-explains-and-relents/
http://www.uky.edu/OtherOrgs/GainesCenter/2011_boone_video.html
Mats (Lucas),
ResponderEliminar«Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência.»
Isto parece-me um disparate até maior do que os que costumas proferir. De onde é que vem isto? Antes da saberes andar tens de definir o que é andar? Antes de saberes falar tens de definir o que é falar? Antes de saberes pensar tens de definir o que é pensar? Não me parece.
É perfeitamente possível fazer ciência antes de poderes definir o que é ciência. Mais, eu até diria que o que não se consegue é definir o que é ciência antes de fazer ciência, porque isso é que seria pôr a carroça à frente dos bois. Isto porque a definição, neste caso, é descritiva (exprime aquilo que a coisa é) e não normativa (não determina aquilo que a coisa é).
Ludwig,
ResponderEliminarVinha cá mesmo agora "postar" exactamente essa informação :)
http://yro.slashdot.org/story/11/11/03/0114201/censored-religious-debate-video-released-after-public-outrage
Mas pronto, atrasei-me por meia horita :)
Ludwig,
ResponderEliminarComo é normal, ignoraste por completo o ponto do comentário. Deixa-me repetir a parte principal e desta vez, tenta dar algum tipo de resposta minimamente relevante:
* Só porque uma alegação é acerca dum "facto" isso não implica que está sujeita à validação (ou refutação) da ciência empírica. Sim ou não?
* A lei da não contradição é um facto filosófico mas não se pode medir, pesar, quantificar ou pôr em forma de equação esse facto filosófico. Sim ou não?
* A filosofia precede a ciência uma vez que a ciência opera segundo princípios filosóficos. Sim ou não?
Antes de saberes correr, tens que saber andar. Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência. Tu não podes dizer "estou a fazer ciência" sem antes disso teres uma definição do que é ciência.
Claro que tu podes correr, saltar, fazer ciência sem teres uma definição. Mas quando dizes que "A filosofia procura a compreensão pelo raciocínio metódico e pelo diálogo racional e crítico. A ciência também", isto é demasiado simplista (até para o que é normal para ti) e de forma alguma serve de evidência de que os argumentos duma esfera são falsificados e refutados da mesma forma que na outra.
* Logicamente falando, essa definição [de ciência] não pode ser testada cientificamente porque é ela que decide o que é e não é ciência. Sim ou não?
.........
Lembra-te do que originou este post: alegações científicas estão ao mesmo nível de alegações filosóficas e alegações metafísicas.
Caro Lucas,
ResponderEliminardesculpe-me a intromissão, mas parece que não está a ser muito claro sobre o que pretende dizer com "definir o que é ciência".
Defende que primeiro surgiram filósofos que definiram o que é ciência e depois é que se iniciou a actividade científica? Tenho algumas obras sobre filosofia da ciência e sobre história da filosofia e ciência, mas nunca notei qualquer menção que sequer sugira tal ideia.
Aliás, por exemplo, Thomas Kuhn e David Lindberg admitem que a ciência foi iniciada bastante tempo antes dos filósofos gregos. Karl Popper diz que foi inventada por Tales e que o método da ciência é o que chama de "tradição crítica". Todos recorrem a exemplos na história como apoios para as suas definições o que é ciência e como funciona.
E além disso, o problema da demarcação da ciência não foi resolvido, no entanto a ciência existe. Existe o mesmo problema com a filosofia e os filósofos também procuram definir o que é ciência.
No entanto escreveste "No vosso caso, a filosofia que serve de base para a vossa ciência é o naturalismo.". A "vossa ciência", que dá a entender que existem várias ciências e que por isso não se trata da ciência que os filósofos procuram definir. Por isso existe a necessidade de se esclarecer.
Posso apresentar respostas às questões que colocou ao Ludwig, caso estiver interessado.
Abraços.
JC,
ResponderEliminar"Defende que primeiro surgiram filósofos que definiram o que é ciência e depois é que se iniciou a actividade científica?"<br<
Não.
Caro Lucas,
ResponderEliminarsuponho que compreende que com apenas um "Não" não esclareceu o que quer dizer com: "Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência."
Sem um esclarecimento, não poderemos entender o que pretendeu transmitir.
À primeira vista o que você parecia querer transmitir é que foi necessário criar uma filosofia que defina o que é ciência antes de ser praticada ciência. Parece que foi assim que Ludwig entendeu.
Mas você diz que não é isso que se trata, confirmando a minha suspeita que não foi claro e por isso pedi que esclarecesse a dúvida.
Caro Lucas.
ResponderEliminarAinda não me satisfez o meu pedido de esclarecimento, mas deixo as minhas opiniões sobre os assuntos presentes no seu argumento.
A matemática e a astronomia eram praticadas na Mesopotâmia, sem terem surgido ainda a filosofia nem o estudo da lógica. As actividades podem surgir sem defini-las e sem consciência do que é necessário para praticá-las, regras e definições. A metafilosofia é uma actividade filosófica que procura perceber o que é a filosofia, as suas limitações, para que serve, etc.
A frase "Testar definições" não tem qualquer significado, pois as definições não podem ser verdadeiras nem falsas. Os unicórnios são espécies de cavalos com corno. Não existem, mas nem isso implica que a definição é falsa.
A lei da não contradição é intuída quando aprendemos o que significa "não" através de exemplos dados pelos nossos pais, portanto, pela experiência, precedendo a filosofia. Usamos o conceito de "não" para definir as palavra "contrário". A descrição da lei da não contradição é uma descrição de uma das condições do termo "contrário", e na filosofia foi mostrada a sua relevância na retórica, foi estudada em dicussões com sofistas e deu-se um nome.
Nenhuma lei ou regra pode ser medida ou pesada. Mas pode ser avaliada ou experimentada e representada numa fórmula. No caso da lei da não contradição: ~(p & ~p). Podemos verificar que as conversas deixam de ter significado com contradições.
Suponho que "ciências empírica" sejam as ciências naturais, tal como existem as ciências formais e as sociais. Usei a matemática como exemplo de um ramo da ciência. Pelo menos desde o início do século XX, graças a Gottlob Frege, a lógica também passou a ser considerado um ramo da ciência, tal como a informática. O empirismo pode ser atribuído ou aplicado fora da ciência, como no senso-comum (ie: pela intuição) e filosofia.
Abraços.
Caro Lucas,
ResponderEliminaresperava um esclarecimento da sua parte. Talvez não tenha intenção de o fazer ou ainda não teve disponibilidade para tal. Mas deixo algumas observações que, caso não esclareça o seu argumento, serão finais.
Você defende o seguinte: "A filosofia precede a ciência".
Mas você também defende que o seguinte é falso: "primeiro surgiram filósofos que definiram o que é ciência e depois é que se iniciou a actividade científica".
Parece uma posição muito inconsistente.
Você também disse: "Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência."
Mas depois respondeu: "Claro que tu podes correr, saltar, fazer ciência sem teres uma definição."
Então, antes de fazer ciência é preciso ou não é preciso definir o que é ciência?
Parece-me evidente violaste a lei da não contradição. ;)
No seu último comentário diz que a definição de ciência não pode ser testada. Mas existem dois problemas na sua asserção.
As definições, em si, não podem ser verdadeiras nem falsas, porque são meras convenções sobre relações entre termos e conceitos. Mas, por outro lado, como convenções, a palavras são usadas com determinados significados, que podemos não conseguir exprimir ou nem ter um entendimento completo, porque têm origem na experiência através da generalização de exemplos.
Nesse caso, por exemplo pelo método socrático, podemos dizer que uma definição está errada no sentido de não ser o significado que atribuímos à palavra. Por isso, nesse sentido, as definições podem ser testadas, porque nesse caso, não se procura criar uma nova palavra ou conceito, mas descrever o uso de um termo.
Link para um exemplo clássico: que é a justiça?
Dito isso, não me parece que o naturalismo seja essencial como condição para definir a ciência.
Apesar de muitos (tanto ateus como teístas) defenderem tal ideia para defender que não existe qualquer conflito entre religião e ciência, distinguindo o naturalismo metódico do naturalismo ontológico, a verdade é que a teologia natural pertenceu à ciência e já foram testados cientificamente assuntos do âmbito do sobrenatural, como o espiritismo e as orações. Não é necessário assumir o naturalismo filosófico para que as explicações naturalistas sejam consideradas, por enquanto, as melhores.
Se encontrar alguma incorrecção naquilo que escrevi, tenho todo o gosto de ser corrigido através de um argumento convincente.
Abraços.
Ludwig, acho que vai interessar-se pela análise nessa página:
ResponderEliminarMatthew's Favorite Movies: Blade Runner: The Epilogue
Vou mais longe: acho que todos os que se interessam pelo tema deste "post", apreciarão a análise se perceberem inglês.