Treta da semana: lamentoso.
Em Janeiro escrevi sobre o Grande ©, um concurso que «tem uma missão institucional: enraizar o valor da criatividade e da diversidade da obra original, como fundamento para a protecção concedida pelo Direito de Autor e pelos Direitos Conexos»(1). No entanto, a AGECOP, que organiza o concurso, «reserva-se o direito de expor, publicar, utilizar ou por qualquer forma explorar os trabalhos recebidos»(2). É o costume. A criatividade isto, o autor aquilo, mas a malta da cópia e distribuição é que fica com os direitos. A leitora B_NM* discordou das minhas críticas e deixou «uma mensagem para todas as pessoas que não têm o talento nem a paciência para se dedicarem a projectos importantes que podem lançar carreiras: este projecto destina-se a conseguir lançar novos artistas de várias áreas e para promover a cultura e arte no nosso país.»(3)
Para ser professor é preciso ter paciência e, se bem que seja difícil quantificar o talento, julgo que organizar um concurso como o Grande © não exigirá muito mais talento do que ensinar. Quanto a lançar carreiras, parece-me que a educação é mais produtiva do que divulgar os trabalhos vencedores no site do concurso. Portanto, arrisco a imodéstia e proponho que a minha profissão não fica atrás dos organizadores do Grande © em paciência, talento, potencial para lançar carreiras e promoção da cultura. A grande diferença é que, enquanto os organizadores do Grande © acham que a cultura se promove impondo restrições, quem trabalha em escolas, museus, bibliotecas e universidades sabe que um país será tão mais culto quando mais fácil for o acesso à cultura e a sua partilha.
Continua a leitora dizendo haver, em «blogs lamentosos como estes», pessoas «burras, que não sabem do que falam. Não têm o direito de criticar o que não entendem». A acusação de burrice não tenho como refutar, objectivamente, por isso aponto apenas que a inteligência que calha a cada um é uma questão de sorte. O que é lamentável é, sendo mais inteligente, limitar-se a chamar burros aos outros em vez de os esclarecer. Mas o que tenho de opor, com veemência, é a ideia de que, por a leitora me julgar burro e ignorante, eu automaticamente perca o direito de criticar.
Esta mentalidade é quase um requisito para a defesa das restrições à cópia e acesso. O Autor e os Gestores de Direitos são os guardiões da cultura. Quem escreveu a letra de uma canção, ou é advogado de pessoas que vendem CDs, é que sabe como, quando e o quê se pode fazer com a cultura. Quem, em vez de canções ou contratos de licenciamento, tenha escrito dissertações, publicado artigos em revistas internacionais, preparado aulas e palestras, desenvolva software e escreva regularmente sem impor restrições de cópia é burro e não percebe nada de criatividade ou autoria. É preciso gerir a cópia com cuidado para que esta ralé não estrague a cultura.
A leitora também aponta que «A cultura é algo que deve ser apreciado e percebido por toda a gente, não para ser criticada desta forma.» Concordo com a primeira parte. Inteiramente. Por isso defendo que todos devem ter acesso à cultura e todos devem poder partilhá-la. A cultura não deve ser só para quem possa pagar licenças. Mas isso não quer dizer que não a possamos criticar. Pelo contrário. A crítica faz parte da apreciação, da compreensão da cultura, e também essa não deve ficar reservada aos auto-proclamados entendidos. Seja como for, o que eu critiquei no outro post não foi a cultura em si mas a hipocrisia de quem diz defender que a cultura é para todos ao mesmo tempo que exige castigos para quem a partilhar.
Finalmente, a leitora recomenda-me que «Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti». Em geral, é um mau conselho. Por exemplo, não gosto que me limpem o rabo nem que andem comigo ao colo para arrotar, mas tenho feito bastante disso nestas últimas semanas. Além disso, muito do que faço não é motivado por gosto mas pelo que me parece mais correcto. No entanto, neste caso, faço a si, cara leitora, o que gosto que me façam a mim: dizer as coisas como julgo que são, sem aldrabices ou rodeios. A leitora merece que retribua a frontalidade com que me chamou burro e ignorante. Mas a malta do Grande ©, que diz defender os autores convencendo miúdos a fazer propaganda aos monopólios da cópia para depois ficar com os direitos sobre o que as crianças criam, nem essa decência tem.
1- O Grande ©, O que é
2- O Grande ©, Regulamento
3- Treta da semana: o grande c...