Liberdades e segurança.
Por várias razões está na moda a ideia de ceder liberdades para ter mais segurança, desde o anonimato na Internet aos chips nas matrículas e garrafas de água nos aviões. Em parte porque enquanto as medidas de segurança parecem ser concretas, a “liberdade” parece um termo vago e abstracto. Coisa de hippies e idealistas. Mas é o contrário. As medidas que se toma pela segurança são claras, como tirar os sapatos no aeroporto, mas raramente é claro que contribuam alguma coisa para a nossa segurança. Não fazemos ideia se algum terrorista vai desistir com medo que o descalcem ou se esta complicação adicional vai tornar ainda menos eficaz a segurança do aeroporto. E a liberdade é o poder de tomarmos as nossas decisões. É difícil ser mais concreto que isso.
Outro aspecto descurado é que a segurança tem um valor meramente instrumental. É um meio de preservar liberdades. E são as liberdades que têm valor intrínseco. Eu não quero uma porta com fechadura pela fechadura em si. Quero-a pela liberdade de decidir quem entra cá em casa, quando entram e que coisas deixo que levem daqui. É por isso irracional ceder liberdades apenas por segurança. Só quando a liberdade de um interfere na liberdade do outro é que precisamos restringir alguma delas. Aí é que podemos aplicar medidas de segurança para evitar que uns tirem liberdade aos outros. As medidas de segurança devem ser uma forma de proteger liberdades. Não são um fim em si mesmo. E há várias alternativas como educação, respeito, reciprocidade e empatia, por exemplo, que também devemos considerar para resolver conflitos entre liberdades individuais.
Outra ideia comum é a de termos de escolher entre segurança e liberdades como a privacidade ou o anonimato. Perceber que a segurança serve para proteger liberdades ajuda a ver que esta ideia é errada. Fechar a porta de casa, deixar o portátil escondido no porta-bagagens e não à mostra no banco da frente, não divulgar a lista de jóias que se tem em casa nem andar com a carteira à vista dá segurança, em grande parte, porque preserva a privacidade. Em geral, quando somos nós a tratar da nossa segurança, a segurança alinha-se bem com as liberdades que protege. A necessidade de trocar umas pela outra surge principalmente quando delegamos a nossa segurança a terceiros.
O que levanta outro problema. Delegar a nossa segurança “ao Estado” ou “à Polícia” é delegá-la a pessoas. Sempre. Pessoas com as quais podemos ter conflitos de liberdades e de quem nos precisamos proteger. E a única diferença entre uma força de segurança e um bando de homens armados está nas limitações que lhes conseguirmos impor. É um erro julgar que não nos precisamos de proteger do Estado, porque pessoas são pessoas. Umas são boas mas outras são más e o poder tende a favorecer estas últimas.
Por isso o papel do Estado na nossa segurança deve ser lidar com os problemas que não conseguimos resolver individualmente e maximizar a capacidade que cada um tem para proteger as suas liberdades. Assim alinha-se a segurança com as liberdades que esta protege. A democracia e os princípios de justiça que temos têm sido afinados neste sentido, desde as liberdades consagradas na constituição aos limites de acção das forças policiais. Se os polícias pudessem revistar quem lhes apetecesse seria mais fácil encontrar armas e objectos roubados, mas à custa das liberdades que queremos protegidas. Por isso limitamos as revistas policiais a casos de suspeita justificada, que basta para resolver os problemas maiores, e a maior parte da segurança fica a cargo de cada um. Conduzir com cuidado, trancar o carro, fechar a porta de casa, não andar com notas de 500€ à vista e assim.
Por isto defendo que é asneira fazer coisas como encher as ruas de câmaras e sistemas de reconhecimento facial, registar todos os acessos à Internet e chamadas telefónicas, proibir comentários anónimos ou obrigar a pôr chips RFID nos automóveis. Isto não são medidas de segurança que ajudem a proteger as nossas liberdades. Isto é ceder liberdades para delegar a nossa segurança a terceiros e acabar com menos segurança por dar a desconhecidos informação e poder sobre nós.
Além disso, enquanto a polícia e a tranca na porta têm o valor instrumental de me proteger de assaltantes ou bisbilhoteiros, a minha privacidade tem um valor intrínseco. Eu não lhe dou valor apenas como meio de fazer maldades às escondidas. A minha privacidade tem valor quando vou passear, quando estou em casa a ler um livro ou sempre que quero fazer algo sem que me estejam a observar e a controlar. Não é coisa que esteja disposto a ceder só para ser mais fácil passar multas.