Manifesta ilicitude.
Três meses depois da minha pergunta acerca dos downloads ilegais (1) recebi uma resposta da SPA. Como a senhora explicou, não compete à SPA aconselhar quem não seja sócio, por isso não me queixo da demora e até agradeço a boa vontade. O email veio com conhecimento para “contencioso@spautores.pt”, mas espero que seja apenas o procedimento normal. E, no final da análise detalhada da legislação, concordou que «é consentida a reprodução, para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor, não podendo ser utilizada para quaisquer fins de comunicação pública ou comercialização», precisamente de acordo com o que está na lei. Mas, logo a seguir, explicou-me que «apenas será lícita a vulgarmente designada cópia privada ou cópia de segurança, ou seja, a cópia de um fonograma original efectuada pelo seu legítimo adquirente sem uma finalidade lucrativa», concluindo então «pela manifesta ilicitude do download de composições musicais que não tenha sido, previamente, autorizado pelo autor ou pelo titular de direitos autorais.»
No email que enviei a agradecer notei que esta interpretação era diferente do que a IGAC me tinha dito. Segundo a IGAC, o que está na lei é que a cópia para uso pessoal é permitida desde que não cause prejuízo nem afecte a exploração da obra e, como estes conceitos não estão explícitos na lei, compete aos tribunais decidir se é ou não é lícito (2). O que é diferente da «manifesta ilicitude». E se bem que compreenda que a SPA tenha uma posição menos neutra e prefira uma conclusão mais favorável, não deviam torcer as palavras dos legisladores para nos privar dos nossos direitos. Se a única cópia permitida fosse a «cópia de segurança [...] de um fonograma original» então era isso que estaria na lei, em vez de «a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos» (Artº 75º do CDADC).
Esta ideia propagada pela SPA, mapinetas e outros vendedores de rodelas e licenças, que só podemos fazer uma cópia de segurança, é contrária ao que já se fazia muito antes da Internet. Desde que há cassetes que se grava músicas e até havia gravadores com dois decks para copiar as cassetes dos amigos. E se bem que hoje se copie muito mais, o prejuízo causado por cada cópia é muito menor. Para copiar um filme em VHS era preciso alugá-lo ao videoclube, pedir um gravador a um amigo, ligá-lo ao nosso e esperar duas horas enquanto copiava. Copiar era mais barato que comprar, mas pagava-se a cassete e comprar era muito mais prático. Hoje não. Para comprar um filme é preciso procurá-lo nas lojas ou encomendar por correio e esperar uns dias. Depois vem num DVD, que além de pouco prático obriga a gramar o Ratatouille a dizer mal da pirataria. Mas procurando no Google o nome do filme seguido de “rapidshare” basta pôr os links no Jdownloader (2) e ao jantar copia-se para um pendisk e vê-se no media player (3). Sem Ratatouille. Isto segundo me disseram, é claro...
Mesmo que o ITunes desse as músicas de graça o Rapidshare* era mais prático. Não é preciso instalar software adicional nem registar-se em lado nenhum e os ficheiros não estão “protegidos”, um eufemismo para “defeituosos” porque o que vem com DRM depois não toca onde se quer. Só nos reconhecem o direito de fazer cópias de segurança e vendem-nos tralha “protegida” contra esse direito. Por isso a motivação para a cópia mudou significativamente. Quem se dava o trabalho de alugar o filme, comprar cassete, juntar dois gravadores e copiar queria mesmo ter aquele filme e, se tivesse dinheiro, certamente comprava o original. Mas quem procura uma coisa no Google e clica no “Save As” muitas vezes não tem interesse em ir buscar o plástico à loja nem que lho ofereçam. Mais lixo em casa e ainda por cima com o Ratatuille. Por isso hoje, ainda mais que no tempo do VHS, não se pode assumir que cada cópia cause um prejuízo injustificado ao autor. É por isso que nunca houve condenações só por copiar coisas para uso pessoal, e está na altura de tornar isto explícito na lei.
Só que a facilidade de cópia é também a facilidade de comunicar. E disso muitos políticos têm medo. A pirataria a sério é raptar tripulações e levar os navios, o terrorismo é rebentar coisas e pessoas e o problema da pedofilia é maltratar as crianças. Mas a quem está no poder tudo isto serve de desculpa para registar os nossos telefonemas, controlar o acesso à Internet e a informação que partilhamos. As crianças continuam maltratadas, os navios são atacados e o pessoal trama-se à mesma quando os terroristas rebentam bombas. Mas as discográficas agradecem. O secretário britânico da industria e inovação declarou há tempos que era excessivo cortar o acesso à Internet a quem partilhasse ficheiros. Mas durante as férias passou uns tempos com David Geffen, um bilionário da industria discográfica. E mudou por completo de ideias (5). Porque tanto aos vendedores de músicas como aos políticos dá jeito um monopólio sobre a informação para melhor venderem as suas tretas. Mas se há aqui algo de manifestamente ilícito, devia ser isto e não a cópia da cançãozinha.
*O Rapidshare é um de muitos serviços gratuitos de hospedagem de ficheiros. Ao contrário das redes de partilha, quem descarrega algo destes servidores cria apenas uma cópia para si e não envia nada para terceiros. O Miguel Caetano tem aqui uma lista dos mais conhecidos: 100 File hosters para todos os gostos.
1- Ilegais? Porquê?
2- Ilegais? Porquê? – (in)conclusão.
3- Gratuito e muito conveniente: jdownloader.org
4- Este da WD é muito bom: WD TV. Lê quase todos os formatos, leva-se para qualquer sítio (tem o tamanho de um livro pequeno) e liga-se a qualquer televisão. Basta ligar um disco ou pendisk por USB e escolher as fotos, músicas ou filmes para tocar. É um pouco caro, à volta de 90€, mas vale a pena.
5- Daily Mail, Mandelson goes to war on teenagers downloading their music and movies... just days after dining with anti-piracy billionaire