Tudo isto por 10 ou 15%?
Ontem vi o telejornal. Costumo ver as notícias na web, que é mais prático e não tem futebol. Mas ontem fiquei fascinado, quase hipnotizado, com a meia hora de assaltos, rusgas e operações policiais. A cada oportunidade falava-se da vaga de crime violento, do grande aumento da criminalidade perigosa e assim. Entretanto, lá pelo meio, passa em rodapé que a criminalidade violenta tinha aumentado 15% nos últimos seis meses. Segundo o Público foi 10%. E a criminalidade violenta é cerca de 6% do total (1). E segundo o Jornal de Notícias, o que aumentou 15% foi o crime contra o património, enquanto que o crime violento até diminuiu em número, se bem que a Procuradoria Geral da República disse terem aumentado «qualitativamente» (2). Penso que querem dizer que se tornaram mais mediáticos desde que a polícia fuzilou dois assaltantes em directo na televisão.
Para combater este flagelo tem havido grandes operações policiais com centenas de polícias e grande aparato. Com bons resultados. Não pela soqueira e pistola de alarme que apreenderam mas porque apanharam dezenas de condutores bêbados. Se querem aumentar a segurança a primeira coisa é mesmo tirar os bêbados da estada. Em 2000, por exemplo, morreram em Portugal 1357 pessoas por acidentes rodoviários, 525 por suicídio e 97 por homicídio (3).
Salpicaram pelas reportagens algumas especulações acerca do que teria causado a vaga de crimes violentos mas não mencionaram as duas mais óbvias. A falta de qualidade do jornalismo e a apetência do público pelo alarmismo infundado. O candidato deles foi a reforma do Código de Processo Penal porque agora não há prisão preventiva para alguns crimes onde se aplicava antes. Parece-me pouco realista. Bute lá assaltar o Pizza Hut? Bute, que só vamos presos depois do julgamento.
Uma das rusgas que mostraram foi a uma feira, onde apreenderam vários sacos de camisetas e sapatilhas, e duas carrinhas. Ocorreu-me que a azáfama da ASAE nos últimos meses possa ter contribuído para o aumento dos crimes contra o património. O feirante que vende os excedentes das fábricas sem autorização da marca não vai abrir um cabeleireiro ou entrar para a função pública quando lhe apreendem o stock. Aumentam a estatística com a primeira apreensão e, quando o tipo se vir sem dinheiro, sem carrinha e sem coisas para vender, lá vai mais outra para a estatística do crime contra o património. Não digo que deixem de perseguir crimes económicos, mas acho que as leis de regulação comercial devem ser feitas e aplicadas tendo em conta as consequências sociais.
Mas o pior nesta palhaçada são coisas destas: «O Governo criou um grupo de trabalho para estudar a hipótese de colocar um «chip» nas matrículas dos automóveis.[...] Claro, trará mais segurança a Portugal, bem necessita, pois nestes tempos a criminalidade violenta tem disparado em flecha!»(4)
Não sei que crimes violentos o autor deste comentário julga que o chip vai evitar. Nem sequer o carjacking, porque quando a vítima fizer queixa, comprovar ser o dono da viatura e a polícia actualizar a base de dados já o carro foi vendido às peças em Espanha. E desactivar um chip RFID é trivial (5).
É preocupante que as pessoas dêem tão pouco valor à informação. Não protestam contra as patentes absurdas que há por aí nem se importam que as discográficas reclamem ser donas de sequências de números. E até parece que querem que se recolha cada vez mais informação sobre nós. O chip na matrícula permite que um leitor no carro da polícia ou à beira da estrada registe a hora e local de todos os carros que passarem por perto. O chip também servirá para verificar se o seguro está em dia, pelo que a identificação será cruzada com os dados do seguro que incluem nomes e moradas. Vamos ter uma base de dados muito apetitosa para os criminosos.
Estas coisas não dão mais segurança. Dão mais comodidade à polícia, que assim precisa apenas deixar o aparelho na berma umas horas, imprimir as multas e mandar pelo correio. Em troca cedemos a nossa privacidade, o direito de controlar a informação acerca de nós e até a nossa segurança. Estas medidas não só são ineficazes a prevenir os crimes que conhecemos como permitirão crimes que agora nem imaginamos. Mas é garantido que alguém os vai imaginar assim que a oportunidade surgir.
1- Público, 28-8-2008, Governo reconhece aumento da criminalidade violenta mas garante respostas
2- Jornal de Notícias, 28-8-08, Crimes violentos estão piores mas não aumentaram
3- INE, As Causas de Morte em Portugal - 2000 - 2000
4- GlobPT, «chip» nas matrículas dos automóveis?
5- C3 Wiki, RFID-Zapper(EN)