segunda-feira, novembro 06, 2006

Autonomia e Liberdade

Tenho tido com o Francisco Burnay e o Ricardo Alves uma troca de impressões produtiva acerca do problema do aborto. Isto é tão raro quando se discute este tema que merece um post dedicado às propostas deles.

Pelo que percebo, propõem duas características necessárias para que se respeite um ser como pessoa. Tem que ser capaz de sobreviver com um mínimo de independência (autonomia) e tem que ter a capacidade de determinar o seu percurso de vida, mesmo que só o possa começar a fazer no futuro (liberdade).

Assim dá-se mais valor à vida de um recém nascido humano que à vida de um porco adulto. Apesar de o último ter mais autonomia e demonstrar maior inteligência e liberdade de escolha naquele momento, o primeiro tem uma capacidade maior para ser livre. E é por isso que propõem que o feto não tenha que ser respeitado, pois apesar de ter uma capacidade para a liberdade idêntica à do recém nascido não tem autonomia.

O meu problema com esta proposta é que usa um critério diferente para a autonomia e para a liberdade. Enquanto que o que interessa na liberdade é a capacidade de a manifestar no futuro, para a autonomia importa apenas a sua manifestação presente. Penso que o problema é óbvio neste exemplo hipotético: danificamos o cérebro de um feto antes de ter autonomia, retirando-lhe assim a capacidade para ter mais liberdade que os animais que usamos sem preocupações. Assim, quando crescer podemos usa-lo como dador de órgãos.

A imoralidade deste acto demonstra que o que conta não deve ser apenas a autonomia no presente e a liberdade futura. Podemos pensar que o problema é o visado se tornar autónomo, mas não conseguimos tornar este acto aceitável retirando-lhe a autonomia. Se danificarmos também os pulmões de forma a que ele precise de um ventilador, ou eliminarmos o seu sistema imunitário para que fique dependente dos anticorpos da mãe, o acto torna-se ainda mais imoral, não menos.

Qualquer escolha selecciona um futuro entre vários futuros possíveis. Já não podemos escolher nem o presente nem o passado, pelo que é o futuro que a nossa escolha concretiza que determina a moralidade duma escolha voluntária. Danificar o cérebro e os pulmões de um feto é imoral porque estamos a escolher para aquele ser um futuro muito inferior ao que ele iria ter. O mesmo raciocínio se aplica ao aborto: ao matar o embrião ou feto estamos a escolher para ele uma existência curta e vazia de sentido em vez da existência longa e rica em experiências subjectivas que terá se não o matarmos.

No caso de embriões criados in vitro a alternativa de não os criar em nada os beneficia. Em casos como o uso de contraceptivos ou mesmo da pílula do dia seguinte não podemos estabelecer uma relação causal entre o acto e a morte de um organismo – no primeiro porque esse organismo não existe, no segundo porque não sabemos se existe. O aborto é diferente porque há um organismo identificável, a sua morte é premeditada, e com isso perde um futuro de grande valor para si.

Ironicamente, é esse futuro que poderia justificar o aborto. Evitar a enorme responsabilidade de criar uma criança é um motivo forte para abortar, e se a nossa sociedade obrigasse as mães a cuidar dos filhos eu votaria sim no referendo. O futuro da criança representaria um fardo tão grande para a mãe que o mal menor seria deixa-la decidir. Mas dar um filho para adopção não é crime, e a nossa sociedade assume a responsabilidade pela criança se os pais não a quiserem. Quando o feto surge dum acto voluntário do casal é legítimo exigir que transfiram essa responsabilidade sem o matar.

3 comentários:

  1. Os critérios de autonomia e liberdade, no exemplo do feto inutilizado propositadamente para a extracção de órgãos, continuam a dizer que não é ilegítmo aplicar a eutanásia a um indivíduo que se encontre nessa situação.

    De facto aquilo a que estes critérios não respondem é se é ou não legítimo pré-abortar com vista à produção de um banco de órgãos.

    Não acho que diminuir a dignidade de uma pessoa para a reduzir a uma situação ambígua, em que a ilegitimidade de certas opções se desvanece, seja algo aceitável.

    A criação de embriões de propósito para a investigação em células estaminais não é uma situação equivalente à de utilizar nessa investigação embriões cultivados com fins reprodutivos que seriam destruídos.

    O que eu fiz no fundo foi justificar a razão pela qual não considero que o embrião, em certo ponto, não é um ser moral. A partir dessa justificação apresentei o prazo a partir do qual considero que a minha justificação se perde completamente.

    Seja como for, continuo a achar que interromper a gravidez não tem o mesmo peso ético que interromper uma vida humana adulta.

    O peso que criar e prolongar uma vida vegetal propositadamente tem talvez não se possa avaliar apenas com base nos critérios de autonomia e liberdade.

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  2. De qualquer das formas, o critério de que não se deve forçar uma visão moral a um ser que não tem a capacidade de se defender dessa imposição continua a parecer-me inconsistente - porque o argumento de que ele será um dia alguém capaz de decidir parece-me anacrónico. A vida desse ser, que no futuro estará nas mãos desse ser, não tem o mesmo estatuto da vida embrionária, ainda que decorra de um processo contínuo de desenvolvimento.

    A questão da continuidade é importante mas não penso que a ligação lógica seja forçosa. Nessa perspectiva não podemos fugir ao facto de que, no processo reprodutivo, demos vida a uma consciência cuja opinião não consultámos antes de a criar. Mas isso é impossível e no entanto temos o direito à reprodução.

    Se temos o direito a decidir sobre a criação de uma nova consciência, não teremos também o benefício da dúvida nessa decisão? Teremos simplesmente de adaptar uma escolha discreta e irreversível (no caso de se optar por criar uma vida) a um processo que é contínuo?

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  3. Ludwig,

    A sua argumentação, com a qual concordo na generalidade, está plasmada de forma idêntica na tese de Donald Marquis contra o aborto, uma tese que tem causado grande agitação no meio académico filosófico internacional, uma vez que é uma tese contra o direito ao aborto que não usa um único argumento religioso...
    Cumprimentos,

    Bernardo Motta

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