quarta-feira, janeiro 13, 2010

Legal 10.

Ray Bradbury escreveu o Fahrenheit 451 em 1953. Pela lei dessa altura tinha 28 anos de copyright, extensível por mais 28 anos se a editora, que detinha os direitos exclusivos, quisesse pedir essa extensão. Por se exigir a renovação do copyright, 85% de todas as obras criadas em 1953 passaram ao domínio público em 1982 por falta de interesse comercial em renovar estes direitos (1). Mas o copyright do Fahrenheit 451 foi renovado por mais 28 anos. E depois a lei foi alterada, estendendo retroactivamente o período de “protecção”. Por isso esta obra que foi criada com o acordo entre editores, o autor e a sociedade para que entrasse no domínio público este ano, agora só estará disponível em 2049. Se não alterarem a lei outra vez.

Como James Boyle aponta no artigo, isto é um custo social injustificável. A promessa de 28 anos de copyright renovável por mais 28 foi suficiente para que Bradbury escrevesse o livro e a editora o distribuísse. Dar-lhe agora mais três décadas de exclusividade já não serve para o incentivar a criar esta obra.

Um problema ainda mais grave desta alteração do copyright foi condenar ao limbo todas as obras sem sucesso comercial. Hoje em dia a maior parte das obras cobertas pelo copyright não estão disponíveis comercialmente e muitas estão órfãs, não sendo sequer possível descobrir a quem se pode pedir autorização para as reproduzir. E se com livros é “só” esperar um século para que entrem no domínio público, obras menos resistentes, como filmes antigos, já estarão irremediavelmente degradadas quando finalmente entrarem no domínio público. Isto porque em vez de se registar uma obra para ter copyright, e depois de o renovar para o manter, agora o copyright cobre tudo por omissão e durante uma carrada de tempo.

Com uma tecnologia que torna a distribuição gratuita, facilita a criação de obras derivadas e impele a inovação mais do que nunca, este sistema obsoleto de incentivo por restrições tem um custo muito superior aos seus parcos benefícios. O que é preciso é incentivar sem restringir o acesso nem conceder monopólios sobre a distribuição. Mas isso fica para um próximo post.

Este quero acabar com um episódio engraçado. A HADOPI é a agência francesa que está encarregue de cortar o acesso à Internet aos malvados que sejam acusados três vezes de partilhar ficheiros. A semana passada apresentaram ao público o seu logótipo. Que foi desenhado com fontes da France Telecom que a HADOPI não tinha autorização para usar. A HADOPI já pediu desculpa pela violação de copyright, mas parece que ainda pode fazer mais duas antes de ficar sem 'net (2).

1- The Public Domain, James Boyle, Fahrenheit 451… Book burning as done by lawyers. Obrigado a quem me enviou o email com o link.
2- TorrentFreak, French 3 Strikes Group Unveils Copyright Infringing Logo

4 comentários:

  1. Por acaso o próprio Fahrenheit 451 deve conter em si a ideia básica por detrás do erro de proibir a cópia... Se eu memorizar obras literárias, posso ser impedido de as divulgar? É só a questão da impraticabilidade.

    A sequência de passos entre ler a obra, copiá-la e divulgar o suporte de cópia é permitida. Desde que não se simplifique o processo...

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  2. Francisco,

    Dá umas possibilidades engraçadas para a ficção científica. Imagina que tínhamos um aparelho que se podia ligar ao cérebro e que gravava as nossas experiências. Tudo o que víamos, cheirávamos, sentíamos. E depois podíamos partilhar isso com outros, porque o aparelho dava para reproduzir essas memórias fielmente.

    Seria irónico se a nossa experiência mental de ouvir uma música, ler um livro ou ver um filme se tornasse propriedade intelectual de outros...

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  3. "Se eu memorizar obras literárias, posso ser impedido de as divulgar?"

    Claro, Francisco. E não é uma questão de impraticabilidade. Basta pensares numa peça de teatro, um monólogo, por exemplo, ou num conjunto de poemas.
    A IGAC chama a isto "Actuações/Representações ao vivo" e exige uma licença. Desde que a divulgação seja pública, tens de ter a tal licença.

    E não é só a IGAC a ter esta opinião. Num blog antigo dei conta uma vez deste despautério da Adobe - http://blog.felisberto.net/2007/06/21/drm-is-evil/

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