quinta-feira, novembro 30, 2006

Sorte ou injustiça?

Há quem diga que devemos agradecer a um deus aquilo que temos, como disseram nuns comentários aqui a um dos meus irmãos. Eu tenho muito porque estar satisfeito com a minha vida. Vou ao supermercado e compro o que me apetece, gosto do meu trabalho, tenho saúde, e uma grande família de malta porreira. Tive muito mais sorte que os milhões de doentes, famintos, desabrigados, estropiados, órfãos, que sofrem por todo o mundo. E admito: não é justo. É injusto que uns corram cem metros em menos de dez segundos e outros nasçam sem pernas, ou que uns sejam compositores geniais e outros surdos. Mas ao menos é uma injustiça cega, como a lotaria. Calha a uns como podia ter calhado a outros.

Mas se a lotaria está viciada é uma injustiça terrível e maldosa. Se é por cunha que uns são corredores exímios e outros paraplégicos, que uns vivem felizes e outros sofrem, é revoltante. Se eu vivo bem enquanto outros morrem de fome e doença porque um deus puxou os cordelinhos do universo para me beneficiar à custa deles não estou nada grato. Nem percebo como se pode estar de boa consciência pensando que é assim.

Sirvam-se à vontade.

Algumas pessoas perguntaram se podiam citar ou reproduzir os meus textos noutros blogs. Outros não gostaram que isso acontecesse. Ora quem leu os meus posts sobre direitos de autor deve saber que só considero estes textos meus no sentido em que fui eu que os escrevi. Não inventei a língua nem as palavras, e as ideias são de todos. Quem quiser reproduzir estes textos só tem que fazer duas coisas: copy, e paste. Não peçam autorização porque não tenho nenhuma para dar. E por favor lembrem-se que isto é um espaço público de discussão; tudo o que for aqui escrito será considerado pertença de todos.

Para tornar isto mais claro, coloquei um aviso de copyright em rodapé.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Mas porque é que eu faço isto!?

Num comentário a um post recente, o António Parente fez uma pergunta que merece mais que a breve resposta que dei:

«Se o Ludwig não exige que eu acredite em si porque tenta através de posts, da sátira e do humor corrosivo, da lógica aristotélica primária tentar provar que eu estou errado?»

Vejam o que esta pergunta faz: pede razões. Isto é fundamental no diálogo, e a única coisa que justifica chamarmo-nos “animal racional”. Exigimos razões. Damos razões. Temos razões. E não podem ser razões quaisquer. Porque sim, porque me dá na gana, ou porque Odin mandou não justificam o que faço. Quanto muito, são razões para achar que não sou racional.

É difícil dizer o que são ou não razões adequadas em geral, mas no caso do diálogo é relativamente simples. As razões adequadas são as que os intervenientes aceitam. O cerne do diálogo é a procura destas razões comuns que permitem partilhar um raciocínio e concordar numa conclusão. Em ciência, por exemplo, o diálogo racional (com razões) transforma uma infinidade de hipóteses, modelos, opiniões, e especulações em descrições consensuais da realidade. O Bernardo Motta diz que isto é positivismo (não é), e propõe outra definição para realidade:

«O Metafísico, em última análise, é o domínio do real absoluto. E o real, como bem explicou Guénon, é o possível metafísico. O que é possível metafisicamente, é real metafisicamente (mesmo que fisicamente isso não seja notório ou nítido).»

A isto chamo mafaguinhos (referência ao tal post anterior). Cada um de nós tem as suas ideias, a sua visão do mundo, e estamos isolados nesta subjectividade. Mas temos em comum um conjunto de observações que partilhamos e que muitos chamam realidade. E é aí que estão as tais provas científicas, e é ai que encontramos a base para o diálogo e a compreensão mutua. Qualquer um pode definir a palavra realidade como quiser. É como os mafaguinhos. Mas o problema de encontrar bases comuns para o diálogo mantém-se. As razões, em última análise, temos que as ir buscar ás observações que partilhamos.

E nisto a fé é irracional, pois não precisa de razões e não aceita razões que a demovam. Dizer que a fé é uma faceta da razão é como dizer que a careca é um penteado, ou que estar morto é uma maneira de viver a vida. Se exigimos razões e estamos abertos às razões dos outros nunca podemos ter certezas absolutas, pois fica sempre alguma dúvida pela possibilidade de haver razões que desconhecemos.

E eis que finalmente chego à razão que o António me pediu. Eu faço isto porque acho que é da responsabilidade de todos dar e exigir razões. Razões assentes naquilo que temos em comum entre nós: o que observamos da realidade que nos rodeia. Ter fé, ter a certeza absoluta que Jesus ressuscitou, fechar-se às razões dos outros é bom para quem quiser viver sozinho numa gruta no deserto. Quem vota, tem filhos, participa nesta sociedade, usufrui do direito de pensar e de se expressar, e age de forma que afecta todos os outros tem a obrigação cívica de se manter aberto às razões.

E, praticando o que apregoo, fundamento esta razão numa observação: a certeza absoluta e infundada é um perigo para todos. É o factor comum na inquisição, nos actos de Pizarro, Hitler, Stalin, ou Pol Pot, nas cruzadas, na escravatura, na discriminação de crianças e mulheres, nos massacres no Rwanda, e muitos outros exemplos. Por outro lado a dúvida e a procura de razões estão por trás dos maiores avanços morais, filosóficos e científicos. De Sócrates a Bentham, de Tales a Rawls, de Arquimedes a Heisenberg, é evidente o bem que trouxe a todos esta abordagem de testar e assentar ideias na realidade que partilhamos.

Todos fazemos coisas boas e coisas más. Mas para fazer coisas terríveis é preciso estar absolutamente convicto do que se faz, e para fazer coisas excelentes é preciso estar sempre preparado para mudar e melhorar.

sábado, novembro 25, 2006

Provado cientificamente.

A palavra provar tem dois significados diferentes. A demonstração, como na matemática ou na lógica. E testar, como provar um fato ou prestar provas. Parece-me que uma grande dificuldade em compreender a ciência vem de confundir estes dois significados.

Um leitor deste blog (João Silveira) comentou que não posso provar cientificamente que a minha mãe gosta de mim. Engana-se. A minha mãe deu já muitas provas de gostar de mim, em muitas ocasiões que testaram o seu amor por mim. É assim que a ciência prova: testando. Está provado cientificamente que a minha mãe gosta de mim.

O problema é pensar que a ciência prova as coisas como a matemática. A prova dedutiva é útil na manipulação de modelos simbólicos (equações, proposições lógicas, e assim por diante), mas não é uma forma de adquirir conhecimento. Se todos os mafaguinhos são calafráticos, e se o Jibidim é um mafaguinho, então prova-se que o Jibidim é calafrático. Mas o que é que isso adianta?

Para tirar algum partido desta prova tenho que encontrar mafaguinhos, determinar se são todos calafráticos, e verificar se o Jibidim é um mafaguinho. E para isso preciso de provas no outro sentido. Preciso de definir os termos, especificar hipóteses, confrontar previsões com o que observo, para pôr à prova a adequação do modelo à realidade. Sem isto fiz apenas um jogo de palavras sem utilidade nem sentido, mesmo que provado por demonstração lógica. É por isso que a ciência nos dá modelos da realidade que são rigorosos, precisos, e úteis: tudo na ciência é para provar, no sentido de por à prova, e toda a ciência está provada, no sentido de ter prestado provas.

O Bernardo Motta revelou a mesma dificuldade quando propôs que a diferença entre esta abordagem e a fé (a Católica, pelo menos) é uma diferença de «visão do mundo»:

«A virgindade de Maria, para mim, é algo de perfeitamente natural e normal, porque tenho uma visão do Mundo que não é positivista. [... O] crente instruído não acredita num dado dogma "porque sim". Acredita porque esse dogma faz todo o sentido dentro da "weltanschauung" católica. Perfaz um todo coerente de uma beleza que nos convence da sua veracidade.»

Isto é apenas um passo do processo científico: a construção do modelo. Criar uma representação simbólica coerente, elegante, mesmo bela. Pode ser o dogma Católico, pode ser a economia de Marx, pode ser a psicologia de Freud ou a mecânica Newtoniana ou a Relatividade de Einstein. São modelos; palavras e símbolos encadeados duma forma lógica e estruturada.

Mas, como disse Thomas Huxley, mesmo a teoria mais bela pode ser morta por um facto feio. Podemos dizer que o nosso modelo vem da intuição, ou é revelado, ou é metafísico, transcendente, o que quisermos. Mas enquanto não prestar provas de que corresponde à realidade não é mais que o Jibidim e os mafaguinhos calafráticos.

A crença e a ciência não se distinguem pelas suas visões diferentes do mundo. Visões do mundo tem a ciência às dúzias, e muda-as regularmente. Até o dogma Católico já fez parte da ciência ocidental, e nenhum Católico rejeitaria provas científicas da virgindade de Maria ou da ressurreição de Jesus por virem de outra visão do mundo. Apenas o faria se as provas fossem contrárias à sua doutrina. E aqui é que está a diferença. A ciência quer modelos para compreender a realidade, por isso além de os construir também os testa, corrige, rejeita, melhora, e substitui.

A religião quer modelos para acreditar que são realidade, por isso limita-se a enfeitar um modelo com palavras sonantes. Aceita tudo o que facilite a crença. Rejeita tudo o que indique erros no modelo. Como adora o modelo, nem percebe a necessidade de o pôr à prova. Não se testa; tem-se fé. Mistério. Milagre.

Treta.

quinta-feira, novembro 23, 2006

O conflito entre Ciência e Religião.

O vigia num navio de guerra avista uma luz entre o nevoeiro. Avisa o comandante, que manda o imediato ordenar ao outro navio que mude de rota. O imediato tenta várias vezes, mas pelo rádio recebe apenas um pedido idêntico. Irritado, o comandante pega no microfone: «Daqui fala o Comandante Silva. Este é um navio da Marinha, e não alteramos o nosso rumo! Saiam da nossa rota!». Do outro lado vem a resposta paciente «Aqui fala o Martins, e isto é um farol. Faça lá o senhor Comandante como achar melhor...»

O conflito entre ciência e religião faz me lembrar esta anedota. A religião traz a autoridade da tradição, duma coisa séria e importante, mas a ciência está limitada pela realidade e daí não pode sair. Se a astronomia, a geologia, ou a biologia contradizem uma certa interpretação de um dos muitos livros sagrados não é a ciência que tem que mudar. E o humor em si ilustra outro ponto de divergência. Para uma piada ter graça temos que a compreender, mas não precisamos de acreditar. O gozo de fazer ciência é essa compreensão, associada a uma dúvida que antecipa algo ainda mais fascinante. A religião é o oposto. A Santíssima Trindade ou a hóstia que se transforma no corpo de Jesus são ideias incompreensíveis, que a religião quer que se acredite sem reserva, sem compreensão. Sem humor. A ciência tem piada; a religião é séria e sisuda.

E isso vê-se nas atitudes. Em todos os laboratórios vemos piadas ou cartoons com sátiras à ciência. A prestigiosa universidade de Harvard atribui anualmente os prémios Ig-Nobel, uma crítica sardónica às argoladas dos cientistas. Mas basta um desenho de um papa com um preservativo no nariz ou de um profeta com um turbante em forma de bomba e ficam milhões de crentes ofendidos. O humor é uma forma poderosa de crítica, que suscita a exploração de outros pontos de vista. Enquanto a ciência se alimenta deste diálogo crítico, a religião não quer nada com isso.

E a maior diferença é na reacção a outras ideias. Os cientistas que discordam colaboram para determinar quem tem razão. Quando crentes discordam não há nada a fazer. Nunca Católicos e Judeus vão colaborar num projecto para determinar objectivamente a divindade de Jesus. Há quem queira resolver o conflito entre ciência e religião isolando os campos, com a ciência encarregando-se dos factos e a religião dos valores. Mas o problema não é o conflito de ideias. Há conflitos de ideias na ciência, na arte, e na filosofia sem qualquer problema. Pelo contrário, este conflito de ideias é bom porque estimula o diálogo, o progresso, e novas ideias. O problema é que certas ideologias não toleram o conflito de ideias. Os nacionalismos, ideologias políticas, e religiões tendem a reagir muito mal a ideias contrárias, e a transformar conflitos de ideias em conflitos de pessoas.

Não é o farol que tem que sair da frente, e não são as ideias diferentes que criam o conflito entre ciência e religião. O que causa este conflito é basear uma ideologia na certeza absoluta que é Verdade. Quem tem esta certeza está fechado a posições contrárias, nega a possibilidade de mudar de ideias, e não tem interesse em manter o diálogo. Interessa-lhe suprimir a oposição em vez de aprender com ela, desde a subversão do ensino científico por meios políticos até aos atentados bombistas.

domingo, novembro 19, 2006

Debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses (parte II).

O debate do passado dia 17 foi muito bom, e agradeço aos organizadores, especialmente à Filomena Carvalho, pelo amável convite, e ao meu irmão por ter sugerido a minha presença. Moderado por Fernando Catroga, participaram António Rego pela Igreja Católica, Mário Mota Marques pela comunidade Baháï, Jónatas Figueiredo pela comunidade Evangélica, e Mahomed Abed pela comunidade Muçulmana. Eu estava no panfleto como representante da “comunidade céptica”, mas fiz questão de deixar claro que não representava uma comunidade, mas sim uma ideia: a ideia de viver sem religião. A descrença.

Comecei por esclarecer que descrença não é acreditar no contrário. Isso é apenas uma crença diferente. A descrença é perguntar em vez de afirmar, principalmente perguntar como é que o crente sabe que a sua crença é verdadeira. Como é que sabe que Maria era virgem? Que Jesus ressuscitou? Que Mahomed era mesmo um profeta? Estas perguntas incomodam os crentes, mas são perfeitamente legítimas.

E podemos ver o que acontece sem estas perguntas. As crenças religiosas apresentadas são fruto de um longo processo de aplicar a crença para obter respostas. Todas as religiões têm respostas, e todas têm a certeza absoluta que têm as respostas certas. Mas têm respostas diferentes. Parece que o método da crença não é o melhor. Principalmente porque a certeza absoluta dificulta o dialogo com os que têm a certeza absoluta do contrário, como podemos ver em muitas partes do mundo (nem sempre com crenças religiosas, mas sempre com certezas absolutas).

Por isso propus o método da dúvida, da questão, da descrença. Não dá recompensas, nem nesta vida nem na próxima, nem dá castigos para quem discorda. Não dá a verdade absoluta nem uma ligação directa ao criador. Mas dá a possibilidade de corrigirmos os nossos erros, e abertura ao dialogo com quem tem outras posições. Não tive oportunidade de o dizer no debate, mas acho que isso é melhor que qualquer deus ou verdade absoluta.

Da assistência veio a inevitável pergunta: sendo céptico, como posso evitar cair no relativismo moral? Como posso encontrar valores? Já estava à espera desta. Por sorte, imediatamente antes outro membro da assistência tinha comentado que todas estas religiões tinham em comum a prática do bem, o que me facilitou a vida. Se reconhecemos algum bem em todas é porque já temos uma noção de bem que é independente da religião. E crente ou descrente, o ponto final de qualquer juízo moral é sempre cada um de nós. Mesmo que um deus nos venha bater à porta a dizer o que é bom ou mau temos que decidir se concordamos ou não. O fundamental é sermos capazes de julgar as crenças e a fé de acordo com os nossos princípios morais, e não deixar que a fé dite o que para nós é certo ou errado. Esse é o caminho do fundamentalismo, e a razão para os extremismos em todas as crenças (não só as religiosas).

No final do debate o moderador lançou uma boa pergunta: há verdade na religião? Mais especificamente, se todas as religiões são verdadeiras, se só uma é verdadeira e as outras falsas, se todas são falsas, ou se há uma mais verdadeira que outras. Os outros participantes deram a resposta previsível: todas as religiões têm alguma verdade, mas há uma que é mais verdadeira. Claro que não houve consenso quanto àquela que supostamente é mais verdadeira.

Eu respondi que verdade não é aquilo em que acreditamos, mas aquilo que resiste à dúvida; para saber se as religiões são falsas ou verdadeiras temos que duvidar delas e ver o que aguenta. A audiência riu-se, mas acho que alguns ficaram a pensar. No fundo, era só isso que eu queria.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses.

Na próxima sexta feira, dia 17 vou participar num debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses. Vai ser em Seia, no grande auditório da Casa Municipal da Cultura, às 10:00h, no final das IX Jornadas Históricas que decorrem de 15 a 17.

Tenciono focar três pontos na minha intervenção. Primeiro, a atitude demasiado reverente que a nossa sociedade tem perante a crença religiosa, impedindo o diálogo crítico essencial numa democracia (ver aqui). Em segundo lugar o erro de ver a religião como fundamento ético e moral. Como propus aqui, o desejável é eliminar duma tradição religiosa preceitos incompatíveis com a ética contemporânea, e nunca o contrário.

O terceiro é o problema da educação religiosa de crianças e menores. Este tem em comum com o problema do aborto a consideração pelo futuro de um ser humano, e por isso vou aproveitar para colocar ambos no mesmo contexto e tentar resolver uma objecção que o Francisco Burnay levantou num comentário recente.

Começando da mais tenra idade podemos tornar qualquer humano num crente devoto. Enquanto criança não tem maturidade para se opor, e quando cresce, como é crente, até aprova. Assim se forma milhões de Católicos, Protestantes, Muçulmanos, Hindus, etc. Mas ainda que não vá contra a vontade do visado nem enquanto criança nem quando adulto, mesmo assim proponho que é imoral uns determinarem a religião de outro, por lhe restringirem a liberdade de guiar a própria vida. Este respeito pela auto determinação fundamenta vários aspectos da nossa sociedade, como a liberdade de crença, de associação, ou de expressão. E é especialmente importante na protecção de menores, a quem tentamos evitar privações ou experiências que afunilem as suas possibilidades e fixem a orientação da sua vida.

Não devemos impor a outro um rumo escolhido por nós. É imoral drogar uma criança, fazer-lhe tatuagens, prometê-la em casamento, restringir-lhe o acesso ao conhecimento, ou prendê-la a um conjunto arbitrário de crenças, mesmo se o fizermos antes que possa protestar e mesmo que nunca proteste. É imoral porque lhe limita as possibilidades de determinar a sua própria vida. E o aborto é um exemplo extremo de limitação total e irreversível desta possibilidade de auto determinação.

O Francisco Burnay criticou o meu argumento por ser anacrónico, ao valorizar aquilo que o feto vai ser e não o que ele é. Em primeiro lugar, é no futuro que estão as consequências de qualquer acto, e o aborto não é excepção, por isso é relevante considerar o futuro. É isso que faz uma mulher se decide abortar por não querer criar um filho: considera o futuro, não o presente. Em segundo lugar, o que eu valorizo é a vida humana como um todo, e não o momento em que o feto se encontra. Temos uma vida cada um, e é sempre a mesma desde a concepção até à morte. Finalmente, o maior valor da vida humana é a sua auto determinação, a capacidade de cada um determinar o que é ao longo da sua vida. Não a podemos respeitar considerando o apenas presente ou um futuro determinado por outros. Só a podemos respeitar permitindo a um ser humano escolher entre os seus futuros possíveis.

Se isto parece filosofia abstracta e pouco convincente, ouçam o “My Way”, de preferência cantado pelo Frank Sinatra. É retrospectivo, mas dá uma boa ideia do que quero dizer.

I've lived a life that's full
I traveled each and ev'ry highway
And more, much more than this, I did it my way

domingo, novembro 12, 2006

Uma das principais causas de morte...

Durante o debate da sexta feira passada várias pessoas disseram que o aborto clandestino em Portugal é uma das principais causas de morte das mulheres. Como ninguém deu números concretos nem citou fontes achei suspeito, mas certamente convenceu mais que qualquer filosofia, mesmo sendo mentira.

Hoje tive tempo para consultar os dados da O.M.S. (aqui). Em 2003 morreram em Portugal 52992 mulheres. Dessas, por exemplo, 1556 de cancro da mama; 418 de acidentes automóveis; 411 de quedas; 267 de suicídio; 38 por homicídio e outros crimes violentos. O número total de mulheres que morreram em Portugal em 2003 por complicações relacionadas com gravidez, parto, ou pós-parto foi oito.

Mesmo fazendo as contas pelos números da organização Women on Waves temos em todo o mundo 80.000 mortes por ano devido a complicações em 46 milhões de abortos. Se o sistema de saúde Português fosse tão mau como o da Índia, China, e outros países populosos onde se dá a maioria destes abortos, esperaríamos cerca de 40 mortes anuais causadas pelos cerca de 20.000 abortos clandestinos em Portugal. Mas o nosso sistema de saúde é bem melhor, e o simples facto de ter acesso a antibióticos reduz dramaticamente a gravidade e frequência de complicações numa intervenção desta natureza.

Segundo o Projecto de Resolução nº 70/X do P.C.P, estima-se que na Europa há cerca de cinco mortes por aborto inseguro para cada cem mil nados vivos. A natalidade em Portugal é de cem mil por ano, pelo que as contas são simples: cinco mortes por ano devido ao aborto clandestino.

Estas fontes apontam para uma mortalidade abaixo dos dez casos por ano para o aborto clandestino em Portugal. A morte é sempre trágica, e isto não é razão para ignorar o problema. Mas é falso que este seja um dos mais graves problemas de saúde feminina em Portugal. A não ser, é claro, que se conte com as dez mil abortadas todos os anos, pois metade dos fetos e embriões eliminados são do sexo feminino. Nesse caso podemos considerar o aborto a principal causa de morte feminina em Portugal, sete vezes mais mortal que o cancro da mama e responsável por quase vinte por cento do total anual.

sábado, novembro 11, 2006

O Debate sobre a IVG

O debate de ontem foi um experiência interessante, mas sinto que não consegui mostrar porque defendo o «não» no referendo. Fui interrompido várias vezes, e a certa altura até a moderadora do debate se manifestou a favor do «sim», mas não terá sido por isto. O debate foi agradável e informal, e estes detalhes não foram significativos.

A razão do meu insucesso ficou clara quando um membro da audiência me criticou por ter filosofias bonitas mas não convencer ninguém. E eu que pensava que o debate era para suscitar dúvidas e promover reflexão. Afinal era para convencer, e para convencer é má ideia explicar.

Muito mais convincente é a repetição de fórmulas curtas com significado aparentemente profundo. É uma questão de cidadania. O embrião não é pessoa. As mulheres são humilhadas. É culpa do dogma católico, o direito ao corpo, e assim por diante. Quando disparadas em rápida sequência (de preferência a meio da explicação da posição contrária) não deixam que a audiência questione a sua relevância para a escolha entre levar uma gravidez a termo ou matar um ser humano. Mas é preciso convicção para ser convincente, e eu não quero estar convencido. Sei bem como a convicção afecta a capacidade de autocrítica, e é a dúvida que me salva de encalhar em preconceitos.

Felizmente não convenci ninguém. Infelizmente, também não me parece que tenha levantado dúvidas. Acho que todos os que lá entraram convictos da sua posição saíram exactamente na mesma. A esses peço desculpa. Mas gostei do debate. Alguns comentários da audiência mostraram-me problemas na minha posição que não tinha considerado. Poderá a despenalização reduzir o recurso ao aborto? Parece contraditório, mas as aparências por vezes iludem. Se houver razão para concluir que sim posso ter que alterar a minha intenção de voto.

Por outro lado, o debate reforçou a minha suspeita que neste tema o que está a contar é a convicção e não a razão, e o resultado do referendo pode ser convincente com ou sem razão. Se assim for, um resultado que nos faça pensar no problema tem muitas vantagens sobre um que nos convença que é solução.

Penso que fui um dos que mais beneficiou do debate, pois levantou-me dúvidas e deu-me coisas para pensar. Por isso aqui fica o muito obrigado à Associação República e Laicidade, ao Centro Escolar Republicano Almirante Reis, e a todos que organizaram, assistiram, e participaram neste encontro.

quinta-feira, novembro 09, 2006

A Interrupção Voluntária da Gravidez.

O aborto é um problema sério. Todos os anos milhares de mulheres decidem matar um filho no ventre, uma decisão difícil para a maioria. Milhares de vidas humanas são terminadas na sua origem. Cria-se um problema de saúde resolvendo por cirurgia problemas sociais e económicos.

É necessário melhorar o apoio social às grávidas e ensinar a várias gerações que a gravidez não planeada não é doença nem vergonha. É preciso mais responsabilidade. Os homens devem ser responsáveis não só pela criança depois de nascer mas pelo feto e pela gravidez. Apesar de rumores de um caso excepcional há dois mil anos, é preciso duas pessoas para conceber um ser humano, e a lei devia reflectir isso. E todos, homens e mulheres, têm que assumir responsabilidade pelas consequências do acto sexual. É um direito, e uma curtição. Recomendo a todos os adultos. Mas como qualquer acto voluntário, responsabiliza o praticante pelas consequências. Se parto um vidro com uma bolada também não me dão dez semanas para fazer desaparecer a janela ou o vizinho...

Mas os políticos não gostam de problemas difíceis com soluções impopulares. O melhor nesses casos é apontar para o lado e gritar “Olhem! Ali!”, a ver se os eleitores se distraem mais um mandato. Este referendo é um bom exemplo. Vejam a pergunta:

«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»

Interromper a gravidez não é problema. Para interromper a gravidez às 36 semanas é só marcar a cesariana para o dia que der mais jeito. Se tivéssemos meios de suster o desenvolvimento de um feto de 10 semanas, isto nem se perguntava. Claro que podia interromper. O problema não é a gravidez, é matar o feto. Mas se põem isso na pergunta já se vê a bela solução que é.

A discussão do problema do aborto (sim, aborto, que é interromper a gravidez matando o feto) está pejada desta demagogia enganadora. Não se pode dizer que a mulher mata o filho porque não é filho. É o descendente directo; sõ não é filho se for filha. Não se pode dizer que mata porque não está vivo. Mas para fetos mortos não precisamos de referendo. Não se pode dizer que é pessoa porque muitos decidem, cada um pela sua razão, que não é. Não se pode contar com o futuro do feto porque está no futuro, a menos que seja para justificar o aborto como forma de evitar cuidar da criança durante esse futuro.

Mas dêem as voltas que derem o problema mantém-se. Qualquer defeito que se ponha ao feto, seja não ter autonomia, não pensar, ou não sentir, é um problema temporário que em poucos meses se resolve, e que nunca justificará um acto irreversível e permanente como matá-lo. Seja que nome lhe queiram chamar, o facto é que estamos a privar aquele organismo de toda a sua vida, uma vida como a nossa.

A lei que temos é uma treta. Toda a forma como abordamos o problema neste momento é uma treta. Mas o pior que podemos fazer é inventar uma treta ainda maior que nos convença que o problema foi resolvido. Ao menos a treta que temos agora não engana ninguém.

terça-feira, novembro 07, 2006

Debate sobre a IVG

Nesta sexta feira, dia 10, vou estar no Centro Escolar Republicano Almirante Reis (Rua do Benformoso, nº50, 1º andar, Mouraria, Lisboa) para debater o problema da despenalização do aborto (a partir das 18h45m). Pelo «sim» estará a Palmira Silva, e eu irei defender o «não». Aproveito para deixar aqui os pontos principais da minha posição.

Por um lado temos o valor da vida. Não da vida do embrião ou do feto, mas da vida toda, pois a vida humana não é um momento, é um longo processo. Independentemente do rótulo que dermos ao embrião ou ao feto, o que está em jogo no aborto é a vida toda desse ser. Ou o deixamos viver, ou lhe tiramos décadas de vida. E essa vida tem, para quem a vive, um valor grande demais para que não conte.

Por outro lado temos o grande valor que é a liberdade de decidir o que fazer com o nosso corpo. Este é quase tão grande como o valor da própria vida, pois se bem que não possa existir sem vida, viver sem esta liberdade também não é grande coisa.

Finalmente temos o valor de coagir ou castigar de forma a impor um comportamento. Este é um valor negativo, um custo moral que temos que pagar sempre que queremos regular um conflito entre valores. E este custo faz-me opor a intervenção na maioria das circunstâncias. Em casos de violação, de deformações do feto, de problemas de saúde para a mãe, e muitas outras a diferença entre aqueles dois grandes valores não compensa o custo moral de impor à mãe uma das alternativas contra a sua vontade.

Há apenas um excepção: um aborto sem justificação médica numa mulher adulta, responsável, que engravidou como resultado de um acto sexual voluntário. Neste caso é legitimo responsabilizar o casal pela gravidez. A lei devia exigir mais do homem, e se fosse essa a alteração proposta eu votava sim. Mas não faz sentido isentar os pais de responsabilidade em prejuízo duma vida humana, principalmente quando basta esperar uns meses para se verem livres do filho sem o matar.

Outras razões secundárias reforçam a minha decisão de votar contra a proposta. É uma proposta vazia de actos concretos, pois não dá mais apoio ás grávidas nem melhora as condições nos hospitais, nem sequer tenta resolver os problemas sociais que forçam muitas mulheres a abortar. A lei que temos é inadequada, ineficaz, e como qualquer lei uma forma tosca e grosseira de resolver um problema, mas é a única coisa que neste momento protege a vida do feto, e a única coisa que obriga a nossa sociedade a enfrentar o verdadeiro problema, que não é a lei, mas o aborto. Alterar a lei desta forma, sem fazer mais nada, é condenar ao esquecimento todos os que sofrem com este problema.

Finalmente, há a questão da saúde pública. Milhares de mulheres todos os anos arriscam a vida em abortos ilegais, mas estes abortos não têm justificação médica. A solução não pode ser canalizar recursos limitados para intervenções cirúrgicas injustificadas. Devido ao carácter urgente destas intervenções, milhares de mulheres que precisem de assistência médica serão prejudicadas por se resolver clinicamente um problema social.

Como é usual em política, esta alteração à lei é uma solução inadequada para o problema errado. Faria sentido como parte dum projecto que visasse reduzir o recurso ao aborto, mas não isoladamente. Por isso defendo que se vote «não» e que se obrigue os nossos legisladores a procurar soluções de verdade. Se tiverem que me aumentar os impostos, não me importo, é por uma boa causa. Mas isto de se esconderem atrás da «vontade do povo» para não terem que trabalhar é treta.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Autonomia e Liberdade

Tenho tido com o Francisco Burnay e o Ricardo Alves uma troca de impressões produtiva acerca do problema do aborto. Isto é tão raro quando se discute este tema que merece um post dedicado às propostas deles.

Pelo que percebo, propõem duas características necessárias para que se respeite um ser como pessoa. Tem que ser capaz de sobreviver com um mínimo de independência (autonomia) e tem que ter a capacidade de determinar o seu percurso de vida, mesmo que só o possa começar a fazer no futuro (liberdade).

Assim dá-se mais valor à vida de um recém nascido humano que à vida de um porco adulto. Apesar de o último ter mais autonomia e demonstrar maior inteligência e liberdade de escolha naquele momento, o primeiro tem uma capacidade maior para ser livre. E é por isso que propõem que o feto não tenha que ser respeitado, pois apesar de ter uma capacidade para a liberdade idêntica à do recém nascido não tem autonomia.

O meu problema com esta proposta é que usa um critério diferente para a autonomia e para a liberdade. Enquanto que o que interessa na liberdade é a capacidade de a manifestar no futuro, para a autonomia importa apenas a sua manifestação presente. Penso que o problema é óbvio neste exemplo hipotético: danificamos o cérebro de um feto antes de ter autonomia, retirando-lhe assim a capacidade para ter mais liberdade que os animais que usamos sem preocupações. Assim, quando crescer podemos usa-lo como dador de órgãos.

A imoralidade deste acto demonstra que o que conta não deve ser apenas a autonomia no presente e a liberdade futura. Podemos pensar que o problema é o visado se tornar autónomo, mas não conseguimos tornar este acto aceitável retirando-lhe a autonomia. Se danificarmos também os pulmões de forma a que ele precise de um ventilador, ou eliminarmos o seu sistema imunitário para que fique dependente dos anticorpos da mãe, o acto torna-se ainda mais imoral, não menos.

Qualquer escolha selecciona um futuro entre vários futuros possíveis. Já não podemos escolher nem o presente nem o passado, pelo que é o futuro que a nossa escolha concretiza que determina a moralidade duma escolha voluntária. Danificar o cérebro e os pulmões de um feto é imoral porque estamos a escolher para aquele ser um futuro muito inferior ao que ele iria ter. O mesmo raciocínio se aplica ao aborto: ao matar o embrião ou feto estamos a escolher para ele uma existência curta e vazia de sentido em vez da existência longa e rica em experiências subjectivas que terá se não o matarmos.

No caso de embriões criados in vitro a alternativa de não os criar em nada os beneficia. Em casos como o uso de contraceptivos ou mesmo da pílula do dia seguinte não podemos estabelecer uma relação causal entre o acto e a morte de um organismo – no primeiro porque esse organismo não existe, no segundo porque não sabemos se existe. O aborto é diferente porque há um organismo identificável, a sua morte é premeditada, e com isso perde um futuro de grande valor para si.

Ironicamente, é esse futuro que poderia justificar o aborto. Evitar a enorme responsabilidade de criar uma criança é um motivo forte para abortar, e se a nossa sociedade obrigasse as mães a cuidar dos filhos eu votaria sim no referendo. O futuro da criança representaria um fardo tão grande para a mãe que o mal menor seria deixa-la decidir. Mas dar um filho para adopção não é crime, e a nossa sociedade assume a responsabilidade pela criança se os pais não a quiserem. Quando o feto surge dum acto voluntário do casal é legítimo exigir que transfiram essa responsabilidade sem o matar.