domingo, novembro 30, 2014

Argumentos

Argumentar é exprimir um raciocínio e, qualquer que seja o tema, do direito à ciência ou da astrologia aos raptos por extraterrestres, sempre que alguém quer mostrar como se chega a uma conclusão tem de argumentar. Por exemplo, o Mats argumenta que a teoria da evolução é incompatível com a ciência, propondo que «A ciência pressupõe que o universo é lógico e ordenado» e que só se pode assumir isto porque «Deus fez todas as coisas», «impôs ordem no universo» e «a Bíblia ensina que Deus sustém todas as coisas através do Seu Poder». O argumento pode ser válido. Se a ciência assumir algo que exige as premissas do criacionismo, então a teoria da evolução será incompatível com a ciência. Mas isto não basta para aceitar a conclusão.

Um argumento finito tem necessariamente de começar por premissas, implícitas ou explícitas, que assume sem justificar. Portanto, para avaliar um argumento é preciso também considerar se as premissas são aceitáveis. O argumento do Mats falha nisto, logo na primeira premissa, porque a ciência não presume que «o universo é lógico e ordenado, e que ele obedece a leis matemáticas que são consistentes ao longo do tempo e do espaço.» A ciência pergunta se, e em que condições, é que isto pode ocorrer. A distância a que o berlinde cai depende da velocidade e ângulo com que o atiramos, consistentemente e de forma previsível. Esta é uma regularidade que podemos aproveitar. Um átomo de urânio 238 transforma-se em tório 234 sem causa alguma nem qualquer indício prévio. Neste caso, não se pode estimar mais do que uma probabilidade de decaimento em função do tempo. E assim por diante.

Mas há ainda outro aspecto da avaliação de um argumento, muitas vezes descurado. Cada argumento parte de premissas escolhidas por quem o formulou e estas não são necessariamente todas as premissas relevantes. O Mats assume que a regularidade do universo se deve ao deus do cristão evangélico, deixando de parte uma imensidão de alternativas que inclui todas as outras religiões e todas explicações naturais para as regularidades observadas.

Em ciência há dois truques para que não se descure estes aspectos. O primeiro é a secção “materiais e métodos”, na generalidade dos artigos científicos, onde se descreve em detalhe como se aferiu a verdade das premissas. O que se mediu, experimentou e observou. Isto não só reduz o risco de se partir de premissas falsas como também facilita a verificação independente daquilo que foi assumido no argumento. A teologia é um bom exemplo de como a dedicação exclusiva ao rigor lógico dos argumentos, descurando a validação das premissas, resulta em resmas de papel com inferências detalhadas ligando pressupostos sem fundamento a conclusões ridículas. Admito que há argumentos interessantes cujas premissas não podem ser testadas à parte mas, nesses casos, há que reconhecer que isso fragiliza muito o argumento. O segundo truque da ciência é chamar a qualquer argumento “uma hipótese”. Isto salienta que se trata apenas de uma entre muitas possibilidades, focando somente um sub-conjunto da informação que possa ser relevante, e que não deve ser avaliada sem ser confrontada com hipóteses alternativas.

Descurar alternativas é um erro comum não só na teologia e outras tretas mas até na filosofia da religião, talvez pela ênfase na análise minuciosa de cada argumento. Por exemplo, é comum a ideia de que basta haver argumentos “sérios” em favor de uma conclusão para ser racional aceitá-la como verdadeira. Isto é um erro porque o racional será optar pelo melhor argumento, assente no conjunto mais abrangente de premissas independentemente verificáveis. Não é racional aceitar uma conclusão com base num argumento descurando outro melhor que aponta o contrário. O exemplo mais saliente é a tese da criação do universo por parte de um ser inteligente e sobrenatural. Há vários argumentos a favor dela, mas todos exigem uma selecção tendenciosa e muito limitada das premissas. Quando consideramos todos os dados disponíveis, não só as várias crenças religiosas mas também o que sabemos da física da formação do universo e da psicologia e sociologia das religiões, a melhor explicação para tudo isto é a de que a hipótese de criação sobrenatural não passa de uma ficção humana, uma ficção comum e bem ilustrada pelas teses que o Mats defende.

É verdade que a tendência humana para inventar deuses não prova que os deuses não existem. Da mesma forma como as pessoas que alegam terem sido raptadas por extraterrestres serem mais susceptíveis à criação de memórias falsas não prova que não ande aí algum ET a raptar gente (2). No entanto, estes dados apoiam melhor explicações alternativas que não exigem seres sobrenaturais ou extraterrestres raptores. Racionalmente, essas são as conclusões preferíveis. Para compreender isto é preciso ir além da análise de cada argumento. Não basta aferir se o argumento é válido, assumindo as premissas, e se é sólido, com premissas que se pode admitir serem verdadeiras. É preciso também determinar se não há alternativas melhores, com premissas mais fundamentadas e que não deixem de fora dados relevantes. O criacionismo é um exemplo extremo do erro de olhar para cada coisa com palas a tapar o resto, mas há outros casos. Alguns disfarçam melhor pela diligência com que examinam cada argumento mas descuram à mesma a natureza hipotética da argumentação. Quando se avalia um argumento é importante ter em conta que um argumento não aponta a verdade. Aponta apenas uma hipótese possível se as premissas forem verdadeiras e não houver outros indícios contraditórios. É como hipótese que qualquer argumento deve ser avaliado, e sempre no contexto das outras hipóteses com as quais concorre.

1- Mats, Evolução: a teoria anti-científica
2. Clancy et al, Memory distortion in people reporting abduction by aliens., J Abnorm Psychol. 2002 Aug;111(3):455-61.

domingo, novembro 23, 2014

Treta da semana (passada): o muro da defesa

O que defendo acerca do papel do Estado na economia e na redistribuição de riqueza devia aproximar-me do PCP. Também o contacto que tive com o partido, se bem que apenas com um deputado e a propósito do copyright, devia contribuir para esta aproximação pela boa impressão que me deixou. No entanto, surge sempre o problema do núcleo do PCP ser controlado por pessoas que vivem num universo tão estranho que nem as minhas quatro décadas de infância* como fã da Marvel me ajudam a compreender. Este é um problema que vai desde o mais genérico, como o slogan da CDU (“Uma Política Patriótica e de Esquerda”) até detalhes como o de não saberem se o regime da Coreia do Norte é opressivo ou pérolas como o comunicado a propósito das celebrações da queda do muro de Berlim. Começa assim:

A chamada «queda do muro de Berlim»
[...]Perante a campanha anticomunista de intoxicação da opinião pública desencadeada a pretexto da passagem de 25 anos sobre a chamada «queda do muro de Berlim», o PCP considera necessário afirmar o seguinte:
(1)

E depois piora.

Segundo o PCP, celebrou-se «a anexação [...] da [República Democrática Alemã] pela República Federal Alemã». O termo “anexação” é pouco adequado aqui. Um exemplo que ilustra melhor a situação que se vivia até 1990 foi o que aconteceu em 1989 quando a Hungria desmantelou o seu muro, uma vedação guardada de 150km que impedia a passagem para a Áustria. Assim que isso aconteceu, milhares de alemães de leste que estavam na Hungria passaram para a Áustria, de onde puderam livremente viajar para a Alemanha. A outra Alemanha. Meses antes do desmantelamento oficial desta vedação, num “Picnic Pan-Europeu” organizado entre austríacos e húngaros, centenas de alemães de leste aproveitaram para se pirar pelo pequeno buraco (2). O que aconteceu à Alemanha em 1945 não foi uma divisão em dois países. Foi uma divisão em duas administrações, uma pelos aliados e outra pelos soviéticos. Os aliados rapidamente deixaram os alemães do seu lado decidir o que fazer da vida mas os soviéticos só largaram o osso em 1990. O muro caiu como baixam os braços de quem já não está na mira da metralhadora.

Acrescenta aínda o PCP que «É necessário desmascarar a hipocrisia daqueles que, clamando contra o muro erguido em Berlim pelas autoridades da RDA, têm construido e continuam a construir barreiras do mais variado tipo (sociais, raciais, religiosas e outras) por esse mundo fora, incluindo muros físicos, intransponíveis de que o exemplo mais brutal é o muro erguido por Israel para cercar e aprisionar o povo palestiniano na sua própria pátria». Eu também sou contra barreiras à imigração. Não me parece eticamente defensável a tese de que alguém nascido do outro lado de uma fronteira tem menos direito às oportunidades que eu tenho só porque eu nasci deste lado. Mas essas barreiras são uma consequência inevitável de qualquer política patriótica, porque o patriotismo é precisamente a doutrina de que “nós”, aqui, valemos mais do que “eles”. Parece-me hipocrisia defender políticas patrióticas e ser contra barreiras à imigração, e é uma das razões pelas quais rejeito o patriotismo. Primeiro as pessoas.

Mas mais preocupante que esta contradição é o PCP não perceber, ou não querer perceber, como o muro de Berlim, e toda a cortina de ferro, eram diferentes dos muros de Israel na Palestina, dos EUA na fronteira com o México ou da Espanha em Marrocos. Estes últimos são muros criados por governos a mando das pessoas que representam e que não querem que os pobres lhes venham estragar o ambiente. O muro de Berlim foi criado por um regime contra as pessoas que governava porque sem o muro elas piravam-se. A característica mais preocupante do núcleo dirigente do PCP é a incapacidade notável de distinguir entre governar de acordo com a vontade do povo e governar atropelando o povo na defesa de alguma pseudo-ideologia mais demagógica do que concreta.

Dizer que «o socialismo é mais actual e necessário do que nunca» parece-me injusto para com os trabalhadores da revolução industrial, que sofreram consideravelmente mais do que sofrem os seus congéneres de hoje. Mas concordo que o socialismo é actual e necessário e agradeço o esforço de todos os que tornaram a nossa sociedade tão socialista. Quem critica a esquerda fá-lo normalmente ignorando que muito do que todos tomamos como garantido, desde a segurança social à liberdade de associação e da escola pública ao acesso universal à justiça, são invenções de esquerda. Mas discordo desta dicotomia de que «o futuro da Humanidade não é o capitalismo mas o socialismo e o comunismo.» O futuro da Humanidade exige que se respeite a vontade das pessoas em vez de construir muros para as manter na linha e é um facto incontornável que o capitalismo agrada a muita gente. Por isso, o que temos de fazer é garantir que há socialismo suficiente para equilibrar as injustiças do capitalismo e de resto deixar as pessoas viver a sua vida à vontade. O que se perde em pureza ideológica é mais do que compensado pelo que se poupa em holofotes e arame farpado.

* Não, não é gralha. É honestidade.

1- Avante, A chamada «queda do muro de Berlim»
2- Wikipedia, Pan-European Picnic

sexta-feira, novembro 21, 2014

Ciência (e a escova de dentes)

Depois de anos de posts sobre ciência e religião, já é altura de esclarecer o que quero dizer com estes termos. Hoje vou começar pelo primeiro. O outro fica para uma próxima oportunidade. Definições de “ciência” como «um empreendimento sistemático que constrói e organiza conhecimento na forma de explicações testáveis»(1) ou «sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico»(2) não me satisfazem. São como dizer que uma escova de dentes é um cabo de plástico com cerdas na ponta. Mesmo sendo verdade, adianta de muito pouco. A ciência e a escova de dentes foram criadas com certos objectivos em vista e percebe-se melhor o que são se focarmos aquilo para que foram concebidas. A escova de dentes é uma escova que serve para lavar os dentes e

A ciência é a procura por uma explicação consistente para a realidade enquanto objecto.

Isto não traça uma fronteira precisa entre o que é ciência e o que não é ciência. Seria uma tarefa fútil. A escova de dentes é muito mais simples do que a ciência e, mesmo sendo claro que uma escova com cinco metros de diâmetro não dá para lavar os dentes, ainda assim não se consegue determinar, ao milímetro, com que tamanho a escova deixa de ser de dentes. Também na ciência há uma forma ideal, outras claramente inadequadas e uma zona intermédia de eficácia decrescente onde qualquer fronteira será arbitrária e subjectiva. Por isso, prefiro apresentar o conceito pelos objectivos e deixar os detalhes em aberto.

A ciência é uma procura. É uma enorme investigação distribuída por milhões de pessoas que, há séculos, andam que nem baratas a vasculhar tudo. Esta ideia da ciência como trabalho de pesquisa é muito melhor do que focar características acessórias como “resultados empíricos reprodutíveis” ou “hipóteses falsificáveis”. Além de ser a razão fundamental de toda essa bijuteria, permite perceber que a ciência não se define pela crença dogmática num conjunto de hipóteses. Em ciência, quaisquer hipóteses que se considere verdadeiras, e quaisquer métodos que se considere válidos, sê-lo-ão apenas como consequência do que se vai descobrindo. Para grande frustração de alguns filósofos que andam há décadas a tentar pregar a sopa ao prato.

Acerca das explicações, recomendo a palestra TED do David Deutsch (3) mas, se não tiverem quinze minutos, o que quero dizer por “explicação” é uma descrição que não só nos diz como as coisas são mas também especifica por que razões têm de ser assim. O relato da criação no livro do Génesis é uma descrição que não explica. Descreve quando Deus terá criado cada coisa mas deixa em aberto a possibilidade de ter sido tudo completamente diferente. Podia ter piscado os olhos e pronto. Podia ter demorado milénios. Podia ter começado pelas latas de pêssego em calda. A cosmologia, a geologia e a teoria da evolução não só descrevem o que aconteceu em mais detalhe como restringem muito mais o que poderia ter acontecido. Não podia haver água antes de haver estrelas porque não haveria oxigénio. Não podia haver baleias antes dos mamíferos terrestres dos quais descenderam. E assim por diante.

A ciência procura uma explicação consistente porque todas as explicações que vai encontrando têm de encaixar numa estrutura conceptual sem contradições. Partes da ciência podem focar aspectos diferentes, até porque não é prático modelar o comportamento das abelhas ao nível da mecânica quântica. Mas qualquer contradição será um problema a resolver e nunca uma solução aceitável. A ideia de haver milagres é incompatível com a ciência porque exige aceitar que as coisas funcionem normalmente de certa forma mas que, quando um deus quer, as regras se suspendam para um vale tudo excepcional. Mesmo que algumas pessoas fossem realmente curadas por intervenção divina, a medicina só daria o problema como resolvido quando encontrasse uma explicação que incluísse tanto os curados quanto aqueles que o deus deixasse morrer (4). Uma explicação consistente em vez de um pote de alhos e bugalhos.

Acerca do conceito de realidade podia dizer que é muito discutido em filosofia. Mas como isso é verdade para quase tudo, não seria informativo. De uma forma pragmática, a realidade é aquilo que pode demolir as nossas conjecturas e o que leva mesmo os anti-realistas mais ferrenhos a evitar sair pela janela do 10º andar. Como é isso que a ciência visa explicar, tudo o que se assuma como ficção fica de fora. Além disso, a ciência tem de explicar a realidade numa perspectiva neutra. Proposições como “gosto de ervilhas” têm um valor de verdade que depende do sujeito que as profere e, por isso, não encaixam numa explicação consistente para tudo. Para lidar com esta informação, a ciência tem de descartar a perspectiva subjectiva e tratar o sujeito como um objecto. “O Ludwig gosta de ervilhas” já serve. Fundamentalmente, é esta exigência que impede a ciência de modelar certos aspectos da ética, da estética ou de experiências pessoais. É uma limitação bem menor do que muitos apregoam, mas é uma limitação, determinada pelo objectivo de obter uma explicação consistente para a realidade.

Isto, proponho, é o que interessa. O resto é consequência ou acessório. Ou, por vezes, mera tentativa de abrir buracos na ciência para se poder alegar que “não interfere” numa treta qualquer que se quer defender. Por isso, desconfiem de definições de ciência que só dêem detalhes arbitrários sem considerar para que é que a ciência serve. Afinal, um cabo de plástico com cerdas na ponta também pode ser uma piaçaba.

1- Wikipedia, Science
2- Wikipedia, Ciência
3- TED, David Deutsch: A new way to explain explanation.
4- Isto seria inaceitável em ciência: S. Harris, Then a miracle occurs...

sábado, novembro 15, 2014

Treta da semana (passada): evidência anedótica

Em resposta a um texto de Carlos Fiolhais, no qual este criticou a homeopatia (1), Paulo Varela Gomes alegou estar «profundamente zangado» porque o «ataque à homeopatia não tem pés nem cabeça, é insultuoso, mentiroso, e demonstra uma ignorância inacreditável»(2). À parte de uma vaga referência a «rígidos e incrédulos cientistas» e «perfiladas instituições académicas», Gomes justifica a sua acusação com uma experiência pessoal. «Houve um dia em que acordei de manhã com um alto no pescoço. […] era um cancro de grau IV – ou seja, letal. Metástases na cadeia linfática, etc. Consultei vários oncologistas aqui e ali e até acolá (no estrangeiro): três a quatro meses de vida. […] Isto foi no final de Maio de 2012. [...] Em poucas palavras: tenho dois anos e meio de qualidade de vida por cima da sentença de morte ditada pelos oncologistas da medicina oficial.» A causa do milagre, segundo Gomes, é que «tenho sido acompanhado pela medicina homeopática». Perante tal tragédia, custa criticar o raciocínio. Fiolhais fê-lo com uma diplomacia exemplar (3). No entanto, penso que a tese de Gomes merece ser mais dissecada mesmo sacrificando algum tacto diplomático.

Se uma pessoa tomar um medicamento homeopático e morrer no dia seguinte não se justifica, só por isso, considerar que o medicamento homeopático é um veneno mortal. Como Fiolhais aponta, «um caso particular não permite tirar conclusões» porque, «Quando observamos um efeito, para lhe atribuirmos uma causa específica temos que excluir as restantes causas possíveis»(3). Não é uma tarefa fácil. Na prática, a relação causal é complexa, probabilística, e nunca conseguimos cobrir absolutamente todos os factores. Quando se diz que o tabaco causa cancro o que se quer dizer é que, sendo o resto aparentemente constante dentro do que podemos observar, o fumador tem uma probabilidade de cancro maior do que teria se não fumasse. Ou seja, o tabaco é um factor causal com um efeito estatisticamente significativo. Por isso, para determinar causas é preciso observar vários casos, tantos mais quanto mais fraca for a relação causal entre os factores que monitorizarmos. Só assim podemos encontrar as correlações, mais fortes ou mais fracas, que uma relação causal origina.

Mas a mera correlação não basta porque a noção de causalidade não é apenas acerca daquilo que ocorre. É também uma afirmação acerca daquilo que hipoteticamente teria acontecido se o factor causal se tivesse alterado. Por exemplo, a correlação entre a incidência de doenças respiratórias e o número de cinzeiros no domicílio não demonstra que ter cinzeiros cause doenças respiratórias ou, ainda mais estranho, que doenças respiratórias causem a posse de cinzeiros. Porque não se espera que a incidência de doenças respiratórias seja diferente daquilo que seria se, hipoteticamente, tirássemos ou oferecêssemos cinzeiros às pessoas sem alterar mais nada. Neste caso, a correlação surge apenas por haver um outro factor causal comum e não por uma relação causal entre os factores observados. Este carácter contrafactual da causalidade obriga-nos a ir além da mera correlação para poder identificar relações causais.

Não sendo possível voltar atrás no tempo para comparar cenários hipotéticos alternativos com os mesmos indivíduos – por exemplo, para ver o que teria acontecido a Gomes se não tivesse tomado medicamentos homeopáticos – é preciso simular essa comparação usando grupos diferentes mas equivalentes. Por exemplo, se quisermos testar o efeito de um produto químico na fertilidade de uma espécie de mosca podemos usar dois grupos de moscas, em recipientes separados. Um, o grupo experimental, fica exposto ao composto a testar. O outro, o grupo de controlo, será criado em condições idênticas ao primeiro em tudo excepto na ausência desse composto. Se as moscas forem atribuídas a cada grupo aleatoriamente e não variarem outros factores, então qualquer correlação observada será um bom indício de uma relação causal.

É isto que se faz em ensaios clínicos, mas com o problema adicional de se lidar com pessoas. As moscas são mais fáceis de manipular e o número de descendentes de cada geração é um indicador objectivo. As pessoas são muito mais inteligentes e seguir a evolução de uma doença exige considerar sintomas que o doente reporta e que o médico tem de classificar, tarefas que envolvem muitas decisões subjectivas. Por isso, nos ensaios clínicos é necessário que nem o paciente nem o médico que o avalia tenham qualquer indício do grupo – experimental ou controlo – no qual o doente foi colocado. Caso contrário, estaremos a introduzir outras correlações que irão influenciar o resultado. Isto faz com que um ensaio clínico fiável seja muito difícil de implementar, na prática, porque a nossa espécie é notoriamente matreira e sensível a pequenos detalhes. Basta uma pequena diferença na postura do enfermeiro que injecta o medicamento (ou placebo) no saco de soro para que o paciente perceba em que grupo está. E, quando se trata de pessoas com doenças terminais, como o cancro, é muito difícil que um ser humano reaja da mesma forma quando administra uma droga experimental que é a última esperança daquela pessoa ou quando administra um placebo que sabe não vai adiantar de nada.

O princípio homeopático das diluições é tão contrário ao que sabemos como a possibilidade de voar agarrando as botas e puxando-as para cima. Se as evidências para qualquer destes efeitos forem suficientemente sólidas, será sensato rever os princípios que nos dizem que isto é impossível. Mas têm de ser mesmo sólidas. E não são. O que acontece na homeopatia é que a suposta relação causal diminui conforme aumenta a qualidade dos ensaios clínicos, o que sugere que os resultados estão a ser afectados por outras correlações e não pela relação causal procurada (4). Por isso, e ao contrário do que Gomes implicitamente defende, não se justifica ainda descartar tudo o que sabemos da química para declarar que a homeopatia funciona.

1- Público, Ciência diluída
2- Público, Carta aberta a Carlos Fiolhais
3 – Público, Ainda a ciência diluída
4- Shang et al, 2005, Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy.Lancet. 2005 Aug 27-Sep 2;366(9487):726-32.

terça-feira, novembro 11, 2014

O piropo e a lei.

Um vídeo com os comentários que alguns homens dirigiram a uma mulher que caminhava por Nova Iorque (1), apesar de ter suscitado algumas críticas (2), tem estimulado uma discussão acesa sobre este assunto. Infelizmente, a discussão tem sido pouco esclarecedora porque não foca o verdadeiro problema. Assume que o mal é o piropo ou a arrogância dos homens que se metem com as mulheres (3), o que faz naturalmente confusão a qualquer homem que se imagine na posição delas. Se as mulheres se dirigissem aos homens na rua com piropos ou propostas de teor sexual, quer fosse um singelo “estás lindo” quer fosse um “chupo-te todo”, não era provável que muitos homens se considerassem vítimas de assédio e os que o fizessem seriam gozados pelos outros. No entanto, a mera inversão de actores não inverte a situação porque o problema fundamental é outro.

Segundo as estatísticas da APAV sobre crimes sexuais, aproximadamente 95% dos agressores são homens e 95% das vítimas são mulheres (4). Este é apenas um indicador, entre muitos, daquilo que é óbvio. As diferenças físicas entre homens e mulheres estão associadas a diferenças comportamentais que vão desde disposições até escolhas deliberadas. As hormonas que determinam as características sexuais físicas também influenciam o sistema nervoso. A possibilidade de engravidar ou de ser enganado a criar um filho que não é seu diferem entre homens e mulheres. Factores como estes levam a diferenças médias de atitude na relação com o sexo oposto. Infelizmente, há uma grande relutância em admitir a importância destes factores por se confundir o seu fundamento biológico com determinismo ou por se temer que a biologia venha a justificar o mau comportamento. É um disparate. O facto de alguém ser mais forte ou agressivo não lhe dá o direito de bater nos outros. Pelo contrário. E é evidente que a educação e a sociedade podem moldar estes comportamentos. A actriz caminhou dez horas em Nova Iorque e, apesar dos piropos, ninguém lhe tocou. Em Kabul ou Jabalpur o resultado poderia ter sido bem diferente.

Discute-se a legitimidade do piropo quando o problema é as mulheres se sentirem ameaçadas pela atenção indesejada. Mesmo que, objectivamente, o verdadeiro perigo seja o ex-namorado e não um estranho numa rua cheia de gente, a verdade é que estes piropos só servem para uns parvos se sentirem mais machos assustando as mulheres que lhes passam à frente. Apesar do respeito pela liberdade de expressão e do “és muita gira”, por si só, ser inócuo, isto não é aceitável e devemos educar as pessoas para que não aconteça e, principalmente, para que não surta este efeito se acontecer.

No entanto, considero um erro atacar o piropo com legislação, como propõe a Fernanda Câncio (4). A lei é um instrumento demasiado grosseiro para regular algo tão subjectivo como o hipotético delito de piropo na via pública. Além disso, o verdadeiro problema é muito mais complexo e não se resolve multando os piropeiros de rua. Mas estas objecções são secundárias. A principal é outra.

Câncio relata uma experiência determinante para a sua reacção aos piropos. «Tinha uns 12 anos, vinha do liceu e um homem com idade para ser meu avô disse, quase ao meu ouvido: "Lambia-te toda."» Eu também tive experiências desagradáveis com essa idade. Uma vez, à saída da escola, três ciganos deram-me uns pontapés e levaram-me o dinheiro e os bilhetes para o autocarro. Tive de voltar a pé para casa. Outra vez foi um cigano com um canivete. Esse só me levou um bilhete de autocarro porque eu já tinha aprendido a não levar dinheiro, e nem tive de voltar a pé porque levava outro bilhete escondido no forro do casaco. Noutra ocasião, eu e o meu irmão mais novo tivemos de fugir de uma meia dúzia de ciganos que vieram a correr atrás de nós, a atirar pedras e a ameaçar bater-nos. Não chegámos a apurar se a ameaça era para cumprir, mas a fuga custou o pacote de leite que o meu irmão teve de largar pelo caminho. Por estas e outras, se um cigano hoje me perguntar “tens trocos?” eu tenho tanta razão para ter receio como Câncio terá se um homem lhe disser “és toda boa”. Mas sou contra punir os ciganos que perguntem se alguém tem trocos porque isto seria punir algo objectivamente inofensivo apenas porque quem o faz é parecido com outros que cometeram crimes. Por muito desagradáveis que tenham sido as minhas experiências com ciganos quando era miúdo, não concordo que se descarte a presunção de inocência só por isso.

Infelizmente, é verdade que há homens que agridem mulheres. Por isso, as mulheres têm alguma razão em sentir receio de homens estranhos que mandem piropos. Não muita razão, mas certamente alguma. Tal como eu teria razão para ter medo de ciganos. No entanto, não é justo pintar todos com o mesmo pincel e menos ainda castigar quem não faz nada de objectivamente danoso só porque outros do mesmo grupo são criminosos. Câncio escreve que «Contra a penalização formal destes comportamentos ridiculariza-se; alega-se o não terem "dignidade penal", ou até a "defesa da liberdade de expressão"» mas o problema principal não é esse. O problema principal é que “és boa todos os dias” só parece ameaçador porque uns brutos com órgãos sexuais parecidos com os do piropeiro esfaquearam a mulher ou a ex-namorada. É uma razão inadequada para punir legalmente algo que, a menos desse paralelo, não passaria de má educação.

1- Youtube, 10 Hours of Walking in NYC as a Woman
2- Nomeadamente, por parecer racista. E.g. Women Of Color React To That Viral Catcalling Video.
3- Por exemplo, nesta entrevista: Meet the woman from NY street harassment video
4- DN, Boas todos os dias

domingo, novembro 09, 2014

Treta da semana (passada): dez questões.

O Mats traduziu um artigo criacionista propondo «10 questões que todo evolucionista tem [de] saber responder»(1). É um truque comum. Como responder dá mais trabalho do que inventar perguntas disparatadas, conseguem dar a impressão de que a ciência é uma trapalhada. É especialmente prático quando fingem que não há respostas ou quando apresentam mentiras como se fossem perguntas. Por exemplo, «Porque é que a ciência demonstra que todas as espécies animais têm limites rigorosos em torno do quanto que eles (ou o seu ADN) se pode alterar». Não há “limites rigorosos” que impeçam o ADN de uma espécie de se tornar no ADN de outra pela acumulação de mutações. Talvez aproveite outras destas perguntas mais tarde mas, por agora, fico-me pela primeira, que já dá para um post.

«Porque é que a ciência diz que a vida evoluiu de matéria sem vida mas por outro lado declara que a geração espontânea é impossível?

Até há uns séculos, era fácil assumir que o pão ganhava bolor ou que apareciam larvas de mosca na carne podre porque brotavam espontaneamente da matéria em decomposição. Era senso comum que organismos aparentemente tão simples fossem um produto da decomposição e não seria razoável que Deus passasse os dias a criar bolor ou larvas de insecto em tudo o que apodrecia. A conclusão era de que os organismos complexos teriam sido criados por um deus mas a bicharada e o bafio surgiam por geração espontânea.

Com o tempo, descobriu-se que mesmo os seres vivos mais pequenos são imensamente complexos e mostrou-se que o que toda a gente julgava saber estava errado. As larvas da mosca vinham de ovos de mosca e não da carne podre. Não se formavam seres vivos espontaneamente de um momento para o outro. Por outro lado, Deus também foi explicando cada vez menos. Por exemplo, se no Paraíso não havia morte não se percebe porque teria criado tantas espécies dependentes da putrefacção. A teoria da evolução resolveu este dilema, mostrando como a geração de vida pode ser espontânea, no sentido de não precisar do acto consciente de um criador, mas sem exigir que algo tão complexo como um ser vivo se forme de uma assentada, pela combinação súbita e improvável dos elementos que o constituem.

A teoria da evolução é, em abstracto, um esquema para gerar modelos de certas populações. Nomeadamente, populações de algo que se replica e que herda características que afectem a probabilidade de replicação. Nessas condições, a teoria da evolução permite compreender, descrever e prever como a população muda ao longo do tempo. Tanto faz que seja de seres vivos, como bactérias, moscas ou humanos, ou de seres inanimados, como vírus, moléculas ou até sequências de bits no computador. A ideia fundamental é que quaisquer mutações que reduzam a probabilidade de replicação tenderão a ser eliminadas e quaisquer mutações que aumentem a probabilidade de replicação tenderão a fixar-se na população. Assim, mesmo que as mutações benéficas sejam muito minoritárias, com o passar das gerações a população vai evoluir para uma população de entidades mais aptas para se reproduzirem naquele ambiente.

O problema da ideia original da geração espontânea era exigir que seres complexos surgissem subitamente. Evidentemente, não é plausível que larvas de mosca surjam da carne podre de um dia para outro. Para isso teria de haver um deus a fazer milagres ou ir lá uma mosca pôr ovos. A experiência de Pasteur confirmou que a segunda hipótese é a correcta. Mas algo é espontâneo quando ocorre sem que seja preciso uma causa especial. Não é preciso ser rápido. E a teoria da evolução explica como as moscas, e todas as outras espécies, surgiram de forma espontânea a partir da interacção de moléculas simples. Não sabemos ainda os detalhes – há vários candidatos para essa “sopa” inicial e muitos pormenores por deslindar – mas os traços gerais do mecanismo são claros. A partir de replicadores simples, a acumulação de mutações ao longo de milhares de milhões de gerações foi gerando replicadores cada vez mais eficazes, muitos dos quais são tão complexos que dizemos estarem vivos.

Em suma, o que a ciência diz é que a vida surgiu da matéria inanimada de uma forma espontânea, sem milagres, deuses ou causas sobrenaturais. A hipótese antiga da geração espontânea apenas foi descartada porque subestimava, em várias ordens de grandeza, o tempo que esse processo exigiu.

1- Mats, 10 questões que todo evolucionista tem que saber responder

quinta-feira, novembro 06, 2014

Filosofia da compatibilidade.

A filosofia da religião podia ajudar-nos bastante com alguns problemas. As religiões têm influência no comportamento das pessoas e levantam questões éticas que não devemos ignorar. Se uma religião merece um estatuto diferente de outras associações de pessoas, se sim então como podemos decidir o que é uma religião, se pode ser o Estado a decidir tais coisas e assim por diante. Este é um tipo de perguntas que a filosofia permite explorar e onde a filosofia ajuda a delinear as respostas que procuramos. Infelizmente, parece-me que a maioria dos filósofos da religião se dedica ao problema irrelevante da existência de um deus abstracto que nada tem que ver com as religiões. Não é Jahve, Allah, Buda nem Krishna. É “uma causa sem causa” ou “uma necessidade metafísica” a quem ninguém acende uma vela.

O Domingos Faria resumiu recentemente alguns argumentos que ilustram este problema. Defendem que a hipótese de um deus ser responsável por toda a criação é logicamente compatível com a teoria da evolução (1). Resumidamente, o ponto fundamental é que não há contradição lógica entre a tese de que os organismos evoluem pela acumulação de mutações e a tese de que um deus guia o processo desde que o faça às escondidas. Se bem que isto seja verdade, falha por completo o mais importante.

Há uns anos a minha televisão avariou-se. Pesquisando pela Web, descobri que o problema era um defeito nuns condensadores e, em vez de a deitar fora, reparei-a substituindo os condensadores. Quero primeiro apontar que não há incompatibilidade lógica entre “reparei a televisão” e “deitei fora a televisão”. É logicamente consistente arranjar a televisão e depois deitá-la fora. Mas é importante apontar também que isso seria o que os ingleses chamam de missing the point e os portugueses, menos subtis, chamam de parvoíce. É este o problema que assola boa parte da filosofia da religião.

Tal como a generalidade das explicações científicas, a teoria da evolução tem três características importantes. Primeiro, assenta em premissas independentes da teoria. A replicação do ADN, as mutações, a selecção natural, a hereditariedade e afins podem ser confirmadas sem assumir que a teoria está correcta. Em segundo lugar, a teoria da evolução explica o que é mais difícil de compreender recorrendo a elementos mais fáceis de compreender. Por exemplo, explica a evolução das baleias pela acumulação de pequenas mutações sob pressão selectiva, ao longo de muitas gerações. Finalmente, a teoria da evolução especifica em detalhe o que se pode observar na natureza se a teoria estiver correcta, o que permite extrapolar do que sabemos para prever algo de novo. As hipóteses de deuses sempre falharam nas duas primeiras características. O deus sempre foi assumido gratuitamente, sem evidências independentes que suportassem essa premissa, e explicar uma baleia invocando um deus não ajuda a perceber nada porque pretende explicar o difícil com algo impossível de compreender. O deus dos filósofos modernos é ainda pior porque falha até na terceira característica. As hipóteses religiosas de criação divina ainda diziam alguma coisa, se bem que fossem erradas. A hipótese deslavada da filosofia da religião nem sequer errada consegue ser.

O estudo filosófico da compatibilidade lógica desta hipótese com o resto da ciência é trivial porque a hipótese é concebida, à partida, para permitir tudo. Se esse deus pode fazer tudo, a hipótese dele existir é compatível com o que quer que se observe. Mas é precisamente por isso que a devemos rejeitar. Logo à partida, isto coloca-a a par com infinitas alternativas igualmente compatíveis com tudo, como os duendes invisíveis da carga do electrão e os gnomos transdimensionais da gravidade. Mas, principalmente, porque conjugar essa hipótese com as teorias científicas estraga tudo o que estas têm de bom. Deixam de estar assentes apenas em premissas empiricamente fundamentadas. Deixam de poder explicar o que é difícil de entender com recurso a elementos mais compreensíveis. E a mera possibilidade de um deus manipular tudo impede-as de prever o que quer que seja.

Este último ponto é muitas vezes descurado porque, na prática, ninguém leva a sério a hipótese desse deus existir. Mas, se considerássemos mesmo essa possibilidade, todas as teorias científicas deixariam de ter fundamento. Os modelos de genética de populações têm de assumir independência estatística entre mutações. A mera possibilidade de um ser inteligente controlar as mutações impede que se assuma isso. Quando se calcula a trajectória de um satélite tem de se assumir que ninguém vai mexer no satélite. Admitir a existência de um ser omnipotente que pode alterar a trajectória a gosto exclui essa premissa. Não é preciso assumir que Deus vai mesmo mexer nas coisas. Por vezes tentam descartar este argumento dizendo, sabe-se lá com base em quê, que Deus é um tipo porreiro e não nos vai dificultar a vida. O problema é que basta a possibilidade de Deus mexer nas coisas para retirar fundamento a qualquer modelo científico. Não há incompatibilidade lógica porque a hipótese em causa é concebida de forma a permitir tudo, mas ao permitir tudo a hipótese retira a justificação a premissas necessárias para extrapolar do que já observámos para o que ainda não sabemos.

Nada disto refuta a existência de Deus. O meu ponto é apenas que, se assumirmos que Deus existe, então a ciência vai toda para o lixo. A incompatibilidade não está numa contradição directa entre proposições mas na impossibilidade de justificar extrapolações num univero sujeito aos caprichos de um ser omnipotente. E, como a ciência vai funcionando cada vez melhor, graças a reparações constantes, é má ideia deitá-la fora.

1- Domingos Faria, A evolução natural é incompatível com o teísmo?
2- Eu, a Web, e praga dos condensadores.

domingo, novembro 02, 2014

Treta da semana (passada): não fazer publicidade.

No passado dia 21, o Clube de Filosofia Al-Mu'tamid organizou na Mesquita de Lisboa um debate sobre o Estado Islâmico. Naturalmente, David Munir, o xeque da mesquita, criticou o Estado Islâmico. O intrigante foi a forma como criticou essa organização criminosa que anda a massacrar populações, a escravizar, a torturar e a violar crianças, tudo em nome do islão. Segundo Munir, «à luz da religião o líder do Estado Islâmico não tem direito a declarar, como fez, a constituição de um califado, e insistiu que as bases do islão são de paz, não de guerra.»(1) Com tanto defeito a apontar, limitou-se a um detalhe técnico e um par de banalidades. É interessante pensar porquê.

Também na audiência questionaram o porquê dos representantes da comunidade islâmica não condenarem mais claramente as atrocidades daquele grupo. «"Vocês não sentem necessidade de uma demonstração de renúncia? Sei lá, um anúncio no jornal a dizer 'não tenho nada que ver com aquilo'?"» A resposta de Mahomed Abed, coordenador cultural da mesquita, foi de que «Ao ir pelo outro caminho estaríamos a fazer publicidade»(2).

Há várias razões para não ficar satisfeito com a resposta. Evitar a publicidade ao Estado Islâmico pressupõe que pouca gente tenha ouvido falar desse grupo, o que não é plausível. Pressupõe também que não falar no assunto contribua para resolver o problema de ter milhares de homens armados a cometer atrocidades no Iraque e na Síria, outra premissa que me parece incorrecta. Finalmente, organizarem um debate público sobre o Estado Islâmico contradiz claramente a tese de que não repudiam esse grupo apenas para evitar fazer publicidade. Tem de haver outra razão.

Uma diferença importante entre o islão e as outras religiões com mais aderentes é o seu livro sagrado. A Bíblia, os Vedas e os Sutras são compilações de textos muito diversos, de fontes diferentes e que os crentes aceitam como relatos inspirados mas que podem ser interpretados com alguma flexibilidade. Em contraste, o Corão é um texto muito mais uniforme, conciso e coerente e que os muçulmanos assumem como sendo uma recitação da palavra divina. Não tem partes que se possa descartar como alegóricas ou metafóricas nem se dá a grandes interpretações. Por exemplo, 4:89 expõe claramente como se deve lidar com quem abandona a fé: «Anseiam (os hipócritas) que renegueis, como renegaram eles, para que sejais todos iguais. Não tomeis a nenhum deles por confidente, até que tenham migrado pela causa de Deus. Porém, se se rebelarem, capturai-os então, matai-os, onde quer que os acheis, e não tomeis a nenhum deles por confidente nem por socorredor.»(3) No Antigo Testamento também há exemplos deste género, mas enquanto cristãos podem invocar que o Novo Testamento se sobrepõe ao antigo e judeus podem interpretar tais trechos como relatos históricos de práticas que já não se aplicam, para um muçulmano é muito mais difícil descartar as ordens do Corão enquanto mantém a fé neste livro como registo das palavras do seu deus.

Esta diferença tem consequências práticas. Não é certamente coincidência que os 23 países que punem explicitamente a apostasia como um crime estejam entre os 49 países de maioria muçulmana. Dos outros países, sejam seculares ou dominados por outras religiões, nenhum considera a apostasia um crime. A razão mais plausível não parece ser económica ou social. Parece ser a de que o islão tem um texto sagrado que é aceite como a palavra directa de Deus onde está explícito que se deve matar quem se rebelar contra esta religião.

Outra diferença importante é a vida e o legado do fundador da religião. Jesus pregou, rezou, ensinou e foi crucificado. Buda pregou, jejuou, ensinou e abandonou o seu corpo. Maomé unificou as tribos de Medina e conquistou Meca com um exército que depois enviou para destruir todos os templos das outras religiões na península arábica. Nos hadiths é-lhe atribuída a ordem de que «Quem quer que abandone a sua religião Islâmica, então matai-o»(4). Consumou o seu casamento com Aisha quando esta tinha nove ou dez anos (5). E assim por diante. Um muçulmano não pode descartar estas coisas como um cristão faz com as barbaridades do Antigo Testamento porque trata-se do Profeta, a peça central da sua religião. É tão difícil a um muçulmano condenar inequivocamente estas práticas pela barbaridade que são como seria a um cristão admitir que a história da ressurreição é fictícia.

Não é por medo da publicidade que os líderes dos muçulmanos moderados se limitam a acusar o Estado Islâmico, e extremistas afins, de meras falhas processuais como a de não ter «direito a declarar, como fez, a constituição de um califado». O problema é que aquilo que os extremistas fazem é cópia chapada do que fez o fundador do islão, e é impossível condenar os actos daqueles sem uma censura implícita aos actos deste. Censura essa que Maomé deixou bem claro como deve ser castigada.

PS: Se tiverem oportunidade, recomendo a entrevista que Sam Harris deu a Cenk Uygur. São três horas, mas vale a pena: Sam Harris and Cenk Uygur Clear the Air on Religious Violence and Islam

1- Público, A noite em que a mesquita de Lisboa se encheu para debater o Estado Islâmico
2- Expresso, Sheikh David Munir. "Nós não temos mesquitas clandestinas. Isso não existe. Vocês conhecem-nos"
3- eBookLibris, O Alcorão Sagrado
4- Center for Muslim-Jewish engagement (vis WebCite), Dealing with Apostates.
5- Wikipedia, Aisha.

sábado, novembro 01, 2014

Negativo e positivo.

Quando procuramos uma forma justa de resolver conflitos é útil distinguir dois tipos de direitos. Os direitos negativos, que correspondem, grosso modo, à liberdade de cada um agir conforme os seus interesses, e os direitos positivos, que correspondem à obrigação de terceiros agirem de acordo com os interesses do detentor desses direitos. Por exemplo, o direito à vida é um direito negativo, enquanto direito a não ser morto pelos outros, mas o direito à assistência médica é positivo porque exige que outros prestem esse auxílio. Apesar da distinção não ser sempre inequívoca, é útil ter em mente uma escala entre estes extremos porque os direitos negativos tendem a ser prioritários e mais fundamentais. O direito à protecção policial, por exemplo, é um direito positivo que se justifica por direitos negativos, como o direito à integridade física e à propriedade pessoal, e que obriga principalmente quem escolheu ser polícia. A proibição de agredir os outros toca a todos mas o dever de intervir numa rixa para deter o agressor não é igual para toda a gente. Como esta hierarquia subordina os direitos positivos aos negativos, quem exige direitos positivos em violação de direitos negativos de terceiros tende a querer confundir estas diferenças. A defesa do copyright está pejada desta manobra falaciosa (1), começando logo pela expressão “propriedade intelectual”.

A propriedade pessoal depende de um direito negativo: o direito do indivíduo não sofrer interferências no uso daquilo que é seu, como a sua casa ou a sua roupa. Mas se abandona uma casa ou um terreno agrícola já é questionável que vedar a terceiros o uso dessa propriedade seja um direito negativo, e tão fundamental como se se tratasse da casa onde reside. Mais distante ainda é o caso do proprietário de uma entidade financeira que detém uma cadeia de supermercados. Este direito de propriedade é claramente positivo porque o indivíduo só pode exercer controlo como proprietário com a colaboração activa de legisladores, tribunais e agentes da autoridade. Apesar da noção de propriedade ser sempre convencional, estas diferenças são importantes quando avaliamos direitos do proprietário. Os direitos que tem sobre o seu supermercado não são iguais aos que tem sobre o seu domicílio. Quando se diz que o autor tem o direito de proteger a sua propriedade intelectual parece invocar-se um direito negativo, fundamental, de que não mexam nas suas coisas. Que não o privem da sua roupa, nem lhe invadam a casa nem queimem os seus livros. Mas é falacioso inferir daqui que se deve coagir terceiros a não copiar ficheiros ou partilhar informação sem autorização do autor porque mandar nas coisas dos outros não tem nada que ver com direitos negativos de propriedade.

O direito à remuneração é outro exemplo desta falácia. Se alguém quiser ganhar dinheiro fazendo esculturas na areia tem o direito de ser remunerado pelo seu trabalho. Mas este é o direito negativo de não o impedirem de negociar com quem lhe queira pagar. Concessionários de restaurantes, produtores de cinema ou organizadores de festas na praia, por exemplo. Este direito negativo nunca justificaria punir com três anos de cadeia quem tirasse fotografias às esculturas sem autorização do escultor. Mesmo que tal lei visasse facilitar a remuneração, permitindo ao autor cobrar por cada foto, estaria longe de um direito de não interferência. Só com a colaboração activa de muita gente é que o autor poderia controlar o que cada pessoa, sentada na sua toalha, iria fazer com a sua máquina fotográfica. E este suposto direito de controlar a propriedade dos outros nunca se poderia sobrepor ao direito negativo de cada um usar a sua propriedade sem interferência. Invocar o direito à remuneração para justificar restrições à partilha de ficheiros é uma falácia por confundir o direito negativo de poder negociar uma remuneração com o direito positivo de coagir toda a gente a ajudar o autor a ganhar mais dinheiro.

A legislação de direitos de autor é produto de três séculos de braço-de-ferro entre uns poucos detentores dos meios de cópia e aqueles autores que tinham interesse em vender cópias. Ao contrário do que muitas vezes se presume, este conjunto de autores sempre ficou muito aquém de corresponder à totalidade das pessoas que contribuem para o progresso da cultura, do conhecimento e das artes. Com uma audiência tão restrita e um âmbito tão limitado, esta legislação foi sendo implementada por meio de tratados internacionais e negociada à porta fechada sem contributo da vasta maioria das pessoas para quem estas leis, até recentemente, nunca tiveram importância. Nas últimas décadas isto mudou. Em resposta à inovação tecnológica que tornou o acto de copiar universal e trivial, a legislação criada para resolver um conflito de interesses de uma pequena minoria passou a ser aplicada a milhares de milhões de pessoas que nunca tinham tido nada que ver com o assunto. Se bem que todos concordem que é preciso adequar a legislação à nova tecnologia, muitos esquecem-se de que o problema não é meramente tecnológico. Não é coisa que se resolva taxando pendisks e censurando a Internet.

Além da evolução tecnológica e da lei que regulava a relação entre editores e alguns autores ter passado a regular a vida privada de toda a gente, nestes trezentos anos também houve muitas alterações nas nossas noções de justiça, ética e da legitimidade democrática da legislação. O Statute of Anne, a primeira codificação do copyright moderno, data de 1710, mais de um século antes do Reino Unido abolir a escravatura. A ideia de proibir o povo de copiar para que uma aristocracia de privilegiados ganhasse mais dinheiro estava em linha com as boas práticas da época, que incluíam a escravatura, ter crianças a trabalhar nas minas e conceder privilégios legais a quem tivesse mais poder. Mas, além de se ter tornado tecnologicamente obsoleta, esta legislação tornou-se também incompatível com os valores fundamentais da sociedade moderna. A única solução é deitar esta legislação para o lixo e refazê-la de origem respeitando os princípios da democracia e dando prioridade aos direitos mais importantes.

1- A RIAA dá um exemplo engraçado, que nem vale a pena comentar, alegando que sites como o Pirate Bay atacam direitos humanos fundamentais e que por isso têm de ser eliminados: Torrent Freak, RIAA: The Pirate Bay Assaults Fundamental Human Rights

domingo, outubro 26, 2014

Treta da semana (passada): sem autoria.

João Grancho, ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário, copiou de outros autores uma boa parte da sua comunicação sobre "A dimensão moral da profissão docente", apresentada em 2007 em Espanha (1,2). Como não referiu as fontes nem distinguiu as partes copiadas das partes que escreveu, plagiou. Nas muitas discussões em que me meto a propósito do copyright, por vezes vejo o plágio a ser apresentado como um exemplo de violação dos direitos de autor. Grancho parece partilhar esta opinião, declarando-se inocente de plágio por se tratar de «um mero documento de trabalho, não académico nem de autor»(3). Ou seja, não sendo uma questão de autoria, não pode ser plágio, subentendendo-se que o plágio só o é se violar algum preceito do tal direito de autor. Penso que a maioria dos leitores facilmente concordará que a desculpa de Grancho é uma treta. Mais difícil será convencê-los de que é uma treta porque o mal do plágio não nada que ver com autoria ou direitos de autor. Deve-se simplesmente ao atentado contra a verdade, a honestidade e a reputação de terceiros. Mas argumentar só vale a pena quando não é trivial, por isso aqui vai.

Eu defendo que nenhum autor tem o direito de restringir a cópia ou o uso de obras que voluntariamente decidiu publicar. Antes de publicar, claro que sim. Todos temos direito à privacidade e, como os direitos de uns acabam onde começam os dos outros, ninguém tem o direito de devassar a privacidade de terceiros reproduzindo ou divulgando o que é privado. Mas, quando decidimos tornar pública uma obra, ultrapassamos a fronteira além da qual os nossos direitos dão lugar aos dos outros. Aí já não temos legitimidade para proibir ou restringir o que quer que seja só por termos sido autores. O meu direito de decidir quem pode ou não pode ler, copiar, usar ou distribuir este texto extingue-se no momento em que carrego no “Publish”.

Por isso, se alguém copiar isto para o seu blog insinuando que é o autor, não está a violar qualquer direito que eu tenha sobre este texto. Não é uma situação análoga a uma invasão de propriedade ou a um furto, em que se apropriam de algo que é meu. É, antes, análoga à situação do miúdo que parte um vidro com uma bolada e culpa o companheiro de jogo, inocente, quando a vizinha vem à janela saber o que se passou. É uma mentira que nega o direito à verdade e imputa demérito a quem tem mais mérito e mérito a quem não o merece. É isso que faz o plagiador. É indiferente se é um documento “de trabalho” ou se “não é de autoria”, seja lá o que isso for. O que importa é que, ao cometer plágio, arroga-se de méritos que não tem, acusa implicitamente o autor de mentir e nega à audiência o direito de saber a verdade.

1- Jornal de Negócios, Secretário de Estado plagiou textos sobre a "dimensão moral" do professor
2- Público, Os originais e as cópias de João Grancho
3- Público, Secretário de Estado demite-se por “imperativos de consciência” após notícia do PÚBLICO sobre plágio

sexta-feira, outubro 24, 2014

O pulmão natural.

Os dirigentes da Igreja Católica têm estado a decidir se a Idade Média já acabou. O assunto pode parecer simples para quem está de fora mas, como o Espírito Santo diz umas coisas ao Papa e outras aos bispos, a decisão está complicada. Entretanto, alguns comentadores católicos por cá já chegaram à sua verdade revelada. Admito que aquilo que João César das Neves pensa acerca do casamento e do divórcio é entre ele a a sua esposa, e o que Gonçalo Portocarrero de Almada pensa é só com ele. Mas achei piada aos argumentos que apresentam para fazer de conta que não defendem um disparate.

Neves argumenta que o divórcio é inadmissível com uma analogia entre o cônjuge e o pulmão. «Tenho problemas respiratórios desde pequeno, com asma, bronquites, etc. Viver com os meus pulmões não é nada fácil, mas nunca me passou pela cabeça andar sem eles.» Foi «pelas mesmas razões» que não lhe ocorreu divorciar-se (1). É uma analogia estranha mas reveladora da noção que Neves tem do casamento. Eu não trocaria os meus pulmões porque, com a medicina que temos hoje, isso teria consequências desagradáveis. Mas se, quando eu tiver sessenta anos, a medicina permitir trocar de pulmões com a mesma facilidade com que se tira um apêndice, não verei problema ético nenhum em trocar os meus pulmões de sessenta anos por uns de vinte. Trocar assim de cônjuge já não seria um acto moralmente neutro. Mas, ao contrário do que Neves defende, isto não tem nada que ver com preservarmos «aquele corpo a que pertencemos desde que nascemos». Não se trata de um dever de permanecer juntos só porque calhou estar juntos. Tem que ver com o cônjuge ser uma pessoa e não um apêndice.

À primeira vista, isto pode parecer dar ainda mais razão à tese de Neves por ser pior trocar de cônjuge do que de pulmões. Mas o dever de ter consideração pelo cônjuge pode tornar o divórcio numa obrigação moral se a relação não for aquela que ambos merecem. A tese de Neves revela um problema comum a muitas religiões: descurar o facto de que, mesmo quando fazem parte de famílias, comunidades ou cultos, as pessoas continuam a ser indivíduos. Não passam a ser órgãos.

Gonçalo Portocarrero de Almada tenta chegar ao mesmo sítio por outra via. Invoca que «O matrimónio cristão [é] o casamento natural elevado à condição de sacramento» e que, por ser natural, «essa união só pode ser estabelecida entre uma mulher e um varão e deve durar enquanto os dois cônjuges forem vivos.»(2). Concordo que o casamento é algo natural na nossa espécie. A nossa espécie é, apesar do que por vezes parece, especialmente inteligente, e temos muito a ganhar por viver em grupos mistos de adultos e crianças. No entanto, as nossas crias precisam da atenção de ambos os progenitores, o que exige que os machos saibam quais são as suas crias. A dificuldade de combinar a vida em grupo com o investimento paternal e evitar que os machos matem as crias dos outros obrigou a nossa espécie a criar rituais e normas de comportamento que permitissem este tipo de colaboração. O casamento é um dos mecanismos resultantes desta pressão.

Mas se há algo natural na nossa espécie é a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. É por isso falso que o casamento tenha de ser entre “uma mulher e um varão” e durar a vida toda. Todas as culturas têm formas de divórcio e quantos casam com quem e com quantos depende das condições em que vivem. Culturas nas quais os homens arriscam frequentemente a vida em confrontos para capturar recursos tendem a favorecer a poliginia. Habitar em regiões mais pobres pode favorecer a poliandria, com uma mulher tipicamente casando com dois irmãos, o que lhe permite reunir os recursos necessários para criar os filhos. Com a formalização legal das uniões e a separação entre o Estado e a vida privada, é perfeitamente natural que o casamento possa ser a união entre duas pessoas, qualquer que seja o sexo. Não será um matrimónio no sentido original do termo mas, como as evidências claramente demonstram, não sai do intervalo de adaptabilidade destas normas sociais.

É perfeitamente legítimo que os católicos concebam o seu casamento como bem entenderem. Mas a sua condenação do divórcio é uma idiossincrasia religiosa que não reflecte qualquer realidade profunda acerca da natureza humana ou dos transplantes de órgãos.

1- DN, Amputação
2- Voz da Verdade, Divórcio, casamento natural e matrimónio cristão

sábado, outubro 18, 2014

Treta da semana (passada): striptease.

Marinho e Pinto decidiu revelar publicamente quanto recebe do Parlamento Europeu (1). Poupou assim aos portugueses o trabalho de ler isto no site do Parlamento (2). Infelizmente, esqueceu-se de que esse subsídio não devia ser só para ele meter ao bolso (3) e também não aproveitou para divulgar quanto recebeu quando era Bastonário da Ordem dos Advogados, que sempre teria mais interesse por não ser já informação pública (4). Mas a ideia subjacente, que muitos partilham, é a de que pagamos demais aos políticos e que oito mil euros de subsídio mensal para um deputado do Parlamento Europeu é demais. Proponho que isso é treta. Primeiro, organizemos as peças do puzzle.

O Orçamento do Estado para 2015 prevê uma carga fiscal de 37% do PIB. É um «máximo histórico» (5) que, ainda assim, fica aquém dos 49% da Dinamarca, 45% da Suécia, ou dos 40% da Alemanha (6). Mais relevante é a diferença entre a carga fiscal e o IVA. Em Portugal é de 14%, de 37% para 23%. Na Dinamarca é de 24% (49%-25%). Na Alemanha é de 21% (40%-19%), e na Suécia é de 20% (7). Isto é importante porque o IVA, além de ser a categoria fiscal mais importante (8), é regressivo. Quem ganha pouco tem de gastar tudo e acaba por pagar mais IVA, em proporção ao que ganha, do que pessoas que ganham mais e que usam apenas parte do rendimento no consumo. Assim, com uma diferença pequena entre os impostos regressivos e a carga fiscal média, aliada ao grande peso dos impostos regressivos, o Estado agrava as desigualdades económicas. Junta-se os cortes nas prestações sociais e o resultado é que enquanto aumenta em dez mil o número de milionários (9) aumenta também a pobreza e o poder de compra de quem ganha o ordenado mínimo cai abaixo dos níveis de 1974 (10).

A ideia de que isto é uma austeridade inevitável não encaixa no puzzle. Quando o Conselho Superior do GES viu que era preciso tapar um buraco de 750 milhões de euros, a família Espírito Santo “pôs o Moedas a funcionar”, telefonando ao secretário de Estado e comissário europeu para que este os ajudasse a convencer a Caixa Geral de Depósitos a emprestar o nosso dinheiro ao GES. Desta vez falhou, e é por isso que sabemos que aconteceu mas, pela conversa, não parece ser raro que estas pessoas resolvam os seus problemas desta maneira (11).

Segundo as estatísticas do Ministério das Finanças para 2012, o sector financeiro pagou um total de 716 milhões de euros em IRC (12). O imposto anual sobre os lucros de toda a banca e seguradoras nem chega ao que o Ricardo Salgado queria que “o Moedas” lhe desenrascasse. É quase vinte vezes menor que o imposto sobre os rendimentos dos trabalhadores, equivalendo ao IRS colectado às pessoas com menos de €1350 de rendimento mensal bruto (13). É também metade do imposto sobre o tabaco. Isto merece ser repetido: o imposto sobre o lucro de todo o sector financeiro e de seguros em Portugal é metade do que se cobra pelo tabaco.

Isto já começa a dar uma ideia do que se passa. A facilidade com que os salgados põem os moedas a funcionar leva a políticas do Estado que favorecem quem tem dinheiro em detrimento de quem não pode telefonar ao Secretário de Estado do Primeiro Ministro para pedir 750 milhões de euros à CGD. Uma das razões para o défice que sistematicamente temos é que, ao contrário de quem vive da mão para a boca, quem tem muito dinheiro pode pressionar, negociar e fugir dos impostos. A esses, o Estado acaba por pedir dinheiro emprestado em vez de os obrigar a contribuir com o que devem. E ainda falta outra peça.

O BES custou 4.4 mil milhões de euros ao Estado. Dizem que se vai recuperar o dinheiro, mas o BPN também começou por ser “apenas” 1.8 mil milhões e já vai em 3.4 mil milhões, só contando com o que já está mesmo oficialmente perdido, valor que só tende a crescer (14). Outra sangria do Estado é a privatização de empresas públicas que, formalmente ou na prática, são monopólios. Uma vez sob controlo privado, este património é depois desfeito em dividendos até restar apenas uma fracção do inicial (15). Enquanto o Estado controlou a PT, entre 2000 e 2011, o valor de cada acção rondou os €10. Em 3 anos de saque a gestão privada fez o valor da empresa cair para 1.2€ por acção. Só cerca de 1€ desta queda se deveu ao buraco no GES (16). O resto foi, essencialmente, repartido em dividendos.

Oito mil euros por mês para pagar o trabalho que um deputado faz pode parecer muito. Mas não estamos a pagar só para fazerem. Estamos a licitar para que não nos prejudiquem fazendo favores a terceiros que pagam mais. Poupar nisso pode sair muito caro. A intuição que nos diz que oito mil euros é muito falha nos milhares de milhões, um número totalmente fora da nossa experiência. Mas só o que o Estado já gastou oficialmente com o BPN dava para pagar o salário do Marinho e Pinto durante trinta mil anos ou pagar cinquenta anos de despesas da Assembleia da República. Se somarmos a isso a PT, os CTT, a EDP, o BES, submarinos e Pandur, mais PPP, cortes no IRC, cortes no Estado e a forma como os impostos dos ricos são calculados, é evidente que o striptease de que precisamos não é para ver os salários dos deputados ou as cuecas do Marinho e Pinto. É para tirarmos o barrete.

1- Partido Democrático Republicano, Parlamento Europeu
2- Parlamento Europeu, Deputados (ver em Subsídios e Abonos).
3- iol, «Se o Dr. Marinho Pinto fica com o dinheiro é com ele»
4- Económico, O striptease de Marinho e Pinto.
5- Publico, Carga fiscal atingirá novo máximo histórico em 2015
6- Wikipedia, List of countries by tax revenue as percentage of GDP
7- EC, VAT Rates
8- Segundo prevê o OE de 2015, 14.5 mil milhões de IVA, seguido de 13.2 mil milhões de IRS, com todas as outras categorias muito abaixo disto: DGO, Política Orçamental
9- Jornal de Notícias, País tem mais 10 mil milionários
10- Pagina 1, Mais pobres e a ganhar menos do que em 1974.
11- Observador, José Manuel Espírito Santo: “Eu punha já o Moedas a funcionar”
12- Portal das Finanças, Estatísticas - Imposto sobre o Rendimento, IRC, declarações mod.22, quadro 30.
13- Até ao escalão de €19000 por ano de rendimento bruto, assumindo pago em 14 vezes: Total da Modelo 3 - IRS - valores liquidados
14- Jornal de Negócios, Cinco anos após a nacionalização do BPN os custos ainda estão por apurar
15- Por exemplo: EDP distribui 676 milhões em dividendos pelos accionistas, ou o clássico PT vai pagar o maior dividendo de sempre a accionistas.
16- PT, Histórico de Cotações.

quarta-feira, outubro 15, 2014

Disto e daquilo, 6.

Jessica
A Jessica Athayde desfilou em biquíni na Moda Lisboa e foi «alvo de críticas, comentários desagradáveis [...] feitos na maioria por mulheres»(1). Não vejo que defeitos se possa apontar ao corpo dela (2) mas vejo alguns no que ela escreveu. Athayde quer combater a «tendência redutora de nos verem» apenas pelo corpo porque «Cada mulher é um mundo muito para além do corpo que a recebe.» É verdade que somos muito mais do que o aspecto físico mas raramente avaliamos a pessoa como um todo. Depende das circunstâncias. Tal como não seria apropriado considerar o corpo sensual de Athayde para avaliar um artigo ou dissertação que ela escrevesse, também não seria de esperar que, se fosse eu a desfilar de biquíni, avaliassem a minha prestação como modelo pela minha formação académica ou experiência de ensino. Isto não é reduzir as pessoas. É simplesmente considerar o que é relevante em cada situação. Mas o pior é como aproveitou a campanha HeForShe, cuja ideia fundamental é a de que a discriminação sexual afecta ambos os sexos e é um problema de todos. Athayde propõe «que abracemos também o #SheForShe. Ela por ela. Cada uma de nós pela mulher ao nosso lado.» Além de trivializar a discriminação sexual confundindo-a com o “problema” de haver quem exprime opiniões disparatadas, defende um retrocesso à ideia da igualdade de direitos como uma luta entre a quadrilha dos ovários e o gang dos testículos. Toda a gente, homem ou mulher, tem o direito de formar a opinião que quiser acerca de quem entender pelos critérios que lhe apetecer. E ninguém, nem homem nem mulher, tem a obrigação de ser mais solidário seja com quem for só por ter o mesmo tipo de órgãos sexuais. Se bem que Athayde tenha razão em apontar que as críticas ao aspecto físico podem ser prejudiciais, a solução não é reprimir a crítica mas sim ensinar cada pessoa a lidar com os críticos de forma racional. Seja como for, a discriminação (sexual ou qualquer outra) é um problema muito mais sério e objectivo do que haver quem aponte defeitos ao corpo de quem desfila de biquíni.

Islão
Pessoas como Reza Aslan e Ben Affleck têm-se insurgido contra quem considera o Islão a pior religião do mundo. Alegam que isso é ser intolerante (3), ou mesmo racista (4), e que os muçulmanos não são todos iguais. Como diz Cenk Uygur, muitos muçulmanos são simplesmente «tios e tias», pessoas que querem viver a vida em sossego e sem extremismos (5). Isto está certo mas omite um ponto importante. Aslan alega que é um erro fundamental julgar que «as pessoas obtêm os seus valores» dos seus textos religiosos porque, na realidade, as pessoas usam os seus valores morais para interpretar os textos das suas religiões. Mas isto só é verdade quando a religião é vista como um direito individual. Por exemplo, pela Europa, há milhões de pessoas que se identificam como católicos mas que usam essa liberdade individual para seleccionar o que lhes interessa e descartar preceitos como a condenação dos contraceptivos ou da homossexualidade. Mas isto é muito mais raro nas comunidades muçulmanas. Na Arábia Saudita ou no Irão, por exemplo, um muçulmano não pode interpretar a sua religião de acordo com valores que se desviem do que é oficialmente permitido. Sob pena de morte. Mesmo em países mais livres, os muçulmanos tendem a organizar-se em comunidades que inibem a divergência de interpretações. Há excepções mas, em média, o cristianismo é mais uma religião de pessoas, cada uma livre de divergir dos restantes na sua interpretação do que é ser cristão, enquanto o islão tende a ser uma religião de comunidades onde cada individuo é pressionado, nuns casos mais do que noutros, para se conformar a uma interpretação colectiva. O resultado é que, no islão, é muito mais fácil que prevaleçam ideias extremistas do que a voz dos moderados e tolerantes.

1- Jessy James, Para mulheres reais
2-DN, Jessica Athayde responde a críticas ao seu físico
3- Salon, EXCLUSIVE: Reza Aslan on Bill Maher’s anti-Islam crusade: “Frank bigotry”
4- Huffington Post, Ben Affleck vs. Bill Maher: A Totally Biased Viewer's Account
5- The Young Turks, Ben Affleck Angrily Defends Islam Against Bill Maher/Sam Harris

domingo, outubro 12, 2014

De onde vem a ética?

O Jónatas Machado comenta regularmente neste blog, como “Perspectiva” ou “Criacionismo Bíblico”. Infelizmente, os seus comentários são tão repetitivos e desligados dos posts que comenta que deixei de olhar para eles. Mas chamaram-me a atenção para uma excepção, no post sobre a igualdade de direitos, que é um bom ponto de partida para algo que me interessa. Escreve o Jónatas que «ficamos sem saber porque é que o facto as pessoas sentirem, desejarem, planearem, sonharem e pensarem lhes confere dignidade e direitos iguais. Especialmente quando se acredita que as pessoas são um acidente cósmico», pondo em seguida as seguintes questões: «Como é que um acidente cósmico pode reclamar dignidade intrínseca? […] E reclama dignidade diante de quem? Que norma obriga um acidente cósmico a reconhecer a igual dignidade de outra acidente cósmico?». Finalmente, alega que «O princípio da igualdade não faz sentido à luz de uma visão ateísta» e que «O princípio da igualdade é, na realidade, uma doutrina cristã, cuja origem está em Génesis. Ele baseia-se no facto de homens e mulheres terem sido criados à imagem e semelhança de Deus.» (1) Penso que quem não for fundamentalista religioso percebe que estas alegações são falsas. Mas, como de costume, o que me interessa mais é detalhar o porquê.

Comecemos pelo mais fácil. Se alguém me pisa eu digo “Au! Está a pisar-me!” É fácil perceber que a minha capacidade de sentir, pensar e falar bastou para que reclamasse dessa violação da minha integridade. É também natural que eu dirija a minha reclamação a quem me pisou. Este mecanismo é comum nos animais. Se o Jónatas pisar a cauda de um cão grande, o animal irá reagir sem dificuldade em saber contra quem e facilmente lhe ocorrerá como persuadir o Jónatas a não repetir a brincadeira. É verdade que isto não tem nada de ético, mas já lá vamos. O importante primeiro é perceber que o mecanismo para identificar estes conflitos, reclamar deles e coagir para que não se repitam é consequência natural de capacidades sensoriais, motoras e cognitivas comuns em várias espécies.

Quando animais destes vivem em grupos, a pressão para reduzir conflitos e maximizar benefícios condiciona padrões colectivos de comportamento. Assim, em galinheiros, matilhas de lobos e grupos sociais de golfinhos, por exemplo, surgem normas implícitas, aprendidas por cada nova geração pela socialização com os mais velhos, e que regulam comportamentos que vão desde quem pode dar bicadas em quem até estratégias complexas de caça e reprodução. Na nossa espécie, a capacidade de codificar estes padrões em linguagens e ritos cria a moral, um conjunto de normas e de regras explícitas que condicionam o comportamento de indivíduos em cada cultura. É comum invocar-se deuses para ameaçar infractores ou justificar as regras mas, em rigor, isso seria dispensável. Talvez dizer “se roubas cortamos-te as mãos” não seja tão eficaz como dizer “roubar é pecado aos olhos de Xumbundu, por isso se roubas cortamos-te as mãos e Xumbundu condenará a tua alma ao inferno das mil diarreias”. Mas a diferença, se houver, será meramente quantitativa. A ideia é a mesma: as normas surgem pela interacção dos elementos do grupo, esses elementos encarregam-se de coagir o respeito pelas normas e a moral que daí advém é apenas a representação simbólica de padrões que cristalizaram sem plano nem propósito. Com isto já se faz leis, religiões, costumes, castas, tradições e regras sociais complexas. Mas, como há muitos pontos de equilíbrio nestes sistemas complexos, a moral de uma sociedade pode ser muito diferente daquela que surge noutra e pode incluir racismo, escravatura, tortura, despotismo e outras injustiças terríveis, conforme calhe. Quanto a isto, a religião de nada adianta.

A ética é um bicho diferente porque não é feita de comportamentos, nem de normas, nem de regras, direitos ou obrigações. A ética é feita de perguntas. Quando Sócrates perguntou o que é a virtude, todos os seus contemporâneos julgavam que a resposta era óbvia. Mas não era. Nem é. Porque não devemos roubar? Quando é legítimo matar? Viver é um direito, um privilégio ou uma obrigação? Estas perguntas são importantes porque impedem uma adesão cega ao sistema moral que nos tenha calhado e permitem uma abordagem consciente e racional dos problemas. Eu considero que homens e mulheres têm direitos iguais porque considero que são equivalentes naquilo que importa para ter direitos, como sentir, pensar e dar valor à sua existência. O Jónatas acha que é por «terem sido criados à imagem e semelhança de Deus» mas essa premissa não tem fundamento factual, não passa de uma interpretação possível para a rábula da costela e nem sequer é consensual no cristianismo. Também não permite estender a noção de direitos a animais de outras espécies que, apesar de não serem semelhantes ao deus do Jónatas, partilham connosco muito daquilo que justifica ter direitos.

A ética serve para substituir os mecanismos cegos de estabilização de comportamentos pelo debate consciente e as racionalizações do status quo por justificações racionais. Os princípios que daí advêm depois podem ser transpostos para normas, como leis, formas de governo e afins, corrigindo gradualmente os erros do passado. Ao contrário do que o Jónatas defende, a religião não traz benefícios nisto porque é apenas mais um legado desses mecanismos primitivos que dominaram as sociedades até há poucos séculos. Os mesmos mecanismos que governam galinheiros e matilhas. E a ética não pode vir de Deus porque a ética não é algo que nos dão. É algo que temos de fazer por nós, pois exige questionar, reflectir e perceber os problemas de outras perspectivas. O único deus que poderia participar nesta actividade seria um deus filósofo, disposto a dialogar e a justificar as suas posições. Mas como um deus filósofo não é útil aos sacerdotes, as religiões só inventam deuses déspotas, prepotentes e preconceituosos, que nada podem contribuir para esta empreitada.

1- Igualdade e diferenças, segundo comentário.

sábado, outubro 11, 2014

Treta da semana (passada): a matéria prima.

No debate do passado dia 28, a Paula Simões, da AEL, focou os problemas essenciais da taxa sobre a cópia privada em suportes digitais (1). Em primeiro lugar, a taxa cobra um direito que não temos porque a distribuição é dominada pelo DRM e por licenças de acesso sem cópia persistente. A Paula Simões refutou também a tese da taxa ser paga pelos vendedores do equipamento digital. Além de economicamente inviável, é ilegal taxar pelo direito à cópia privada empresas que não têm esse direito. O Pedro Wallenstein, da GDA, contrapôs que «Há interesses em conflito e é preciso encontrar um equilíbrio». Segundo este, «Deslocaram o adversário [...] para os criadores e para aqueles que fornecem a matéria prima em vez de deslocar para uma indústria multinacional que factura milhões» e só se «essa indústria fizer reflectir nos consumidores essa componente, que é a componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum» é que «a comunidade de consumidores, a comunidade de internautas e os cidadãos» se devem revoltar. Há muita coisa errada aqui. Chama «componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum» à taxa que teremos de pagar em benefício de organizações como a GDA. Concordo que a cultura é património de todos, e é assim que declaro ser tudo o que eu publico, seja aulas, código ou artigos. Mas, se é assim, não se pode taxar a cópia privada.

Wallenstein também descartou o problema da lei incidir sobre um direito privado alegando que só importa o equilíbrio entre interesses e que não devemos ligar aos detalhes formais da lei. Isto é insensato porque a letra da lei é a orientação principal dos tribunais. E é especialmente mau neste caso porque o copyright funciona ao contrário da maioria das leis que regulam conflitos entre agentes comerciais e cidadãos privados. Nas relações laborais, poluição, segurança ou direitos do consumidor, a lei tenta proteger o cidadão privado da disparidade de poder entre o indivíduo comum e empresas com advogados contratados a tempo inteiro. A legislação de copyright, imposta por tratados internacionais, faz o contrário, dando a empresas como a Disney e a Sony ainda mais poder para interferir na vida das pessoas. Isto justifica que se preste especial atenção aos detalhes.

Por outro lado, quando a Paula Simões propôs que se legalize a partilha de ficheiros para fins não comerciais de forma a justificar a cobrança, Wallenstein disse que isso não pode ser porque todo o “edifício legislativo” depende da proibição da cópia, mesmo privada. Nisto já quer que os aspectos formais contem mais do que o tal equilíbrio. Mas até formalmente Wallenstein está enganado. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) estabelece que a cópia é um direito exclusivo do autor e que a cópia privada é uma excepção cujo prejuízo, se houver, tem de ser compensado. Mas a protecção dos direitos conexos é diferente. Os direitos conexos são os “direitos” de uma data de gente que não é autor da obra, como artistas executantes e produtores. São estes que a GDA de Wallenstein representa. E, no título dos direitos conexos, está explícito que «A protecção concedida neste título não abrange [o] uso privado» (artigo 189º do CDADC). Ou seja, Wallenstein quer que os detentores dos direitos conexos beneficiem da taxa sobre uma alegada excepção a direitos que estes não têm.

No entanto, o problema mais fundamental é a ideia de que o artista produz uma “matéria prima virtual” que é consumida pelo público e aproveitada pelos negociantes de cartões de memória para lucrarem rios de dinheiro. Isto é um disparate. A diferença entre produção e arte sempre foi clara. Quando o homem pré-histórico caçava, usava o seu trabalho para obter matéria prima da qual criava utensílios e refeições que depois eram consumidos pelo uso ou ingestão. Mas quando desenhava um antílope na parede da caverna não estava a criar matéria, virtual ou qualquer outra. Estava a comunicar. Dança, literatura, cinema, música e afins são formas de comunicar e a tecnologia que acusam de expropriar a “matéria prima” do artista está apenas a facilitar a comunicação. E esse é que é o problema. Durante séculos, as limitações tecnológicas à comunicação criavam um monopólio natural que permitia lucrar pela distribuição de suportes materiais que só alguns tinham capacidade industrial para reproduzir. Nessa altura, a vida privada estava naturalmente fora de consideração. As pessoas tocavam, cantavam e dançavam sem pagar à PassMúsica e escreviam cartas com poemas sem ter de contratar advogados. Agora, todos conseguimos transmitir imagens, sons e textos instantaneamente para qualquer parte do mundo. Wallenstein alega que, por isso, é «necessária uma adaptação do edifício legislativo à realidade tecnológica». Mas é preciso pensar se queremos substituir as antigas restrições tecnológicas por restrições legais. O mero facto de agora podermos fazer mais coisas não implica que devam ser proibidas.

Se percebermos que arte é comunicação percebemos que o que está em causa não é gerir os conflitos entre produtores, transportadores e consumidores de matéria prima sujeita a direitos de propriedade. O problema que temos é o de gerir o conflito entre, por um lado, os interlocutores que comunicam entre si com os meios que a tecnologia permite e que, conforme as circunstâncias, podem ter um papel de profissionais ou amadores, de autores, executantes ou de público e, por outro lado, quem tenta impor restrições a esta comunicação para cobrar dinheiro. Wallenstein tem razão em dizer que os nossos adversários não são os criadores. Até porque, profissionais ou amadores, todos somos criadores e todos contribuímos para a tal «componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum». Mas é falso que os adversários sejam os vendedores de equipamento. Os verdadeiros adversários são pessoas como Wallenstein, que querem restringir a liberdade de comunicar para poderem cobrar pela distribuição daquilo que nós podemos distribuir.

1- Resumo no site Esquerda.net: Cópia privada: "Esta lei veio colocar cidadãos contra autores"

domingo, outubro 05, 2014

Igualdade e diferenças.

O discurso de Emma Watson nas Nações Unidas, a propósito da campanha “HeForShe”, foi elogiado por frisar que o feminismo não implica odiar os homens (1). Realmente, a discriminação é um problema de todos e lutar por direitos iguais não exige odiar ninguém. Infelizmente, é provável que qualquer pessoa a quem seja necessário dizer isto será uma pessoa a quem não adianta dizê-lo. No entanto, por muito difícil que seja mudar mentalidades, é inevitável que as pessoas sejam substituídas, com o passar do tempo, e quanto mais se discutir estes problemas mais fácil será às próximas gerações corrigir os erros das anteriores. É neste espírito que vou criticar a definição que Watson propôs para o feminismo:

«A crença de que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É a teoria da igualdade política, económica e social dos sexos.»

Concordo plenamente que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É corolário do princípio fundamental de que todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Não é por serem todas iguais, até porque cada pessoa é diferente das outras e até vai sendo diferente de si própria ao longo da sua vida. Devemos ter os mesmos direitos e oportunidades porque, independentemente das diferenças, somos seres que sentem, desejam, planeiam, sonham, anseiam e pensam ao longo da vida. É isso que nos torna todos diferentes, únicos até, mas também é isso que nos faz a todos igualmente dignos de viver o que somos e como somos, cada um à sua maneira. Se pensarmos nestes atributos que nos tornam diferentes e fundamentam os nossos direitos enquanto indivíduos, é fácil perceber como é injusto discriminar alguém pelo grupo em que o colocamos, seja pela cor, pelo sexo ou pelo sítio onde nasceu. Devemos julgar e respeitar cada pessoa pelo que essa pessoa é e não por uma média do seu grupo ou um preconceito acerca do que “essa gente” deve ser.

Na nossa sociedade, a discriminação sexual não é a pior. Por exemplo, discriminar as pessoas pelo sítio onde nasceram é mais grave. Quem vive em regiões mais afluentes tem dificuldade em admitir que as pessoas nascidas do lado de lá de uma linha arbitrária no mapa são tão merecedoras de direitos e oportunidades quanto as que nasceram do lado de cá. A orientação sexual também parece ser motivo de maior discriminação do que o sexo em si e quem não se encaixa nos estereótipos de género tende a sofrer ainda mais discriminação do que quem se conforma com o esperado de um homem ou de uma mulher (2). Mas a discriminação sexual é muito grave noutros sítios e é algo que, por cá, se percebe estar inversamente correlacionado com o civismo. Por isso, a discriminação sexual é um bom campo de batalha nesta guerra contra a injustiça de avaliar indivíduos pelos grupos em que os colocamos, sem esquecer que a guerra tem mais batalhas do que esta.

É da segunda parte da definição que discordo, a da «teoria da igualdade política, económica e social dos sexos». Logo à partida, parece sugerir que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos porque são iguais, quando a igualdade de direitos não tem nada que ver com a igualdade no resto. Também é improvável que, ao darmos direitos e oportunidades iguais a toda a gente, passe a haver «igualdade política, económica e social» entre todos. Pessoas diferentes têm preferências e aptidões diferentes e não vão todas fazer o mesmo. É certo que Watson se refere à média dos homens e das mulheres e não ao que cada um faz individualmente mas, mesmo assim, não é razoável esperar que a igualdade de direitos resulte na mesma proporção de homens e mulheres em profissões como polícia de choque ou educador de infância. Também não deve ser só a discriminação que faz com que as top models femininas ganhem mais do que os seus congéneres masculinos, ou o contrário no futebol profissional. Se bem que estes exemplos sejam extremos, é provável que as diferenças físicas, hormonais e de desenvolvimento entre os sexos tenham efeitos médios perceptíveis na generalidade dos casos. É duvidosa a hipótese de que homens e mulheres individualmente livres de escolher o que fazem acabem por fazer, em média, exactamente a mesma coisa.

Mas é enquanto norma que esta “teoria” é mais prejudicial porque, se tentamos forçar uma igualdade social, económica e política entre os sexos, estamos a cometer precisamente a injustiça que devíamos combater. Estamos a subordinar os direitos de cada indivíduo a preconceitos acerca do grupo. Esta confusão entre a igualdade de direitos e a igualdade de escolhas, que leva à imposição de quotas e medidas afins, apenas muda o aspecto da discriminação sem resolver o problema. É como combater a escravatura exigindo paridade no número de escravos de diferentes raças. O problema que temos de resolver não é o de haver diferenças médias entre grupos. O problema é o de haver restrições às escolhas do indivíduo em função de medidas agregadas do grupo, o que acontece quer o objectivo da discriminação seja favorecer um dos sexos quer seja o de forçar a paridade. Para evitar lutar contra si próprio, o feminismo devia pugnar apenas pela igualdade de oportunidades e de direitos, o que inclui o direito à diferença sem discriminação.

1- UN Women, Emma Watson: Gender equality is your issue too.
2- Por exemplo, Não quer ser "ela". Não quer ser "ele". Só quer ser uma pessoa. Nota: se não conseguirem ler isto por o Público protestar que já não têm artigos de borla, abram o link uma janela privada ou limpem os cookies.

quarta-feira, outubro 01, 2014

Treta da semana (passada): a careca é uma cor de cabelo.

A crítica de Rui Ramos ao ateísmo de Stephen Hawking segue a fórmula do costume. Primeiro, se Hawking «acredita que Deus não existe» então, tal como o crente em Deus, tem «fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus.» Depois, que chegou à sua conclusão da mesma forma que o crente: «A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa.» Finalmente, que a atitude de Hawking para com a ciência é igual à de qualquer crente. «Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo»(1).

Esta forma de criticar o ateísmo sempre me pareceu estranha pela admissão implícita de que a crença em Deus é estapafúrdia. Não é que discorde. Concordo inteiramente que é um disparate formar crenças acerca da realidade por meio da fé e da devoção beata. Mas é estranho julgarem que a falta de fundamento epistémico da crença religiosa é um bom argumento contra o ateísmo. No entanto, mais interessante é perceber porque é que as alegações de Ramos são falsas.

A fé não é o mesmo que a crença. Acreditar é simplesmente aceitar uma proposição como verdadeira enquanto que a fé é um compromisso pessoal de fidelidade e perseverança para com certas ideias (2). É perfeitamente possível acreditar sem fé. Eu acredito que Deus não existe da mesma forma como acredito que a Terra se formou há 4.5 mil milhões de anos, sem sentir qualquer dever de fidelidade para com estas proposições. E é também possível ter fé sem ter crença se a fidelidade a uma ideia não bastar para que se consiga acreditar. A confusão de Ramos entre fé e crença atropela a diferença entre a devoção do crente aos princípios da sua religião e a forma descomprometida como todos regularmente adoptamos e descartamos crenças conforme julgamos conveniente.

O contexto destas crenças também é diferente. A ciência procura a melhor explicação para os dados de que se dispõe. É verdade que isto só resulta se houver dados suficientes e, por isso, a ciência só começou a ter sucesso nos últimos séculos; sem saber nada sobre decaimento radioactivo, a erosão ou a formação do sistema solar não havia razões para acreditar que a Terra tinha 4.5 mil milhões de anos em vez de só dez mil. Mas, com o que sabemos agora, a melhor explicação fica tão entalada na estrutura interligada de observações e outras explicações que, a menos de uma pequena margem de erro, só o valor de 4.5 mil milhões de anos pode ser aceite.

A crença de que um deus inteligente e bondoso criou a Terra por milagre não sofre destas restrições. Em geral, os preceitos de cada religião são arbitrários e podiam ser qualquer coisa. Se criou tudo por milagre, tanto podia ter criado o universo há treze mil milhões de anos como podia ter criado tudo há dez mil anos em sete dias ou em sete minutos na sexta-feira passada. Milagre por milagre, também podia ter criado os fósseis, os vestígios de erosão e até as memórias que cada um de nós tem. Sem qualquer suporte empírico, só a fé leva o crente a decidir que a sua crença é mais acertada do que as dos outros.

O processo também é muito diferente. A ciência não é um «equivalente laico da fé religiosa». A ciência progride explorando e testando alternativas. É este processo de rejeitar o que se revela incorrecto que vai apertando o cerco às explicações admissíveis, deixando cada vez menos elementos arbitrários. Nas religiões, o primeiro passo consiste em afirmar algo como Verdade. E pronto. O resto é teólogos a inventar desculpas para as inconsistências e arbitrariedade da escolha inicial (3). É verdade, como menciona Ramos, que houve «séculos de meditação e de debate» acerca de Deus e outros deuses. Mas o debate e a meditação são inúteis se não se está disposto a descartar as hipóteses erradas.

Hoje é evidente que os deuses são mera ficção porque qualquer coisa que se tente explicar invocando um deus explica-se melhor rejeitando esse deus como fantasia, desde a formação das galáxias e a origem das espécies à existência do mal e a diversidade das religiões. Também não é a «pobreza da [...] concepção de Deus» que faz diferença porque, por muito “rica” que seja, é uma concepção arbitrária, infundada e inútil para explicar seja para o que for. A ciência eliminou os deuses de todas as explicações para o universo que nos rodeia. Sobraram apenas as alegações que os crentes mantêm por fé. Mas, antes de nos metermos pela metafísica da existência dos deuses na premissa de que estas alegações correspondem à realidade, devemos primeiro determinar se é preciso deuses para explicar a fé dos crentes. Também aqui a ciência responde pela negativa. Há evidências claras de que é muito fácil aos seres humanos agarrarem-se a superstições e que a intensidade desse apego não é indicador fiável da verdade das crenças.

Não é preciso idolatrar a ciência para perceber que a fé não serve para compreender a realidade. É precisamente isso que Ramos argumenta contra Hawking, errando apenas por presumir que a posição de Hawking deriva da fé. Mas não é preciso fé para concluir que os deuses são tão fictícios quanto os unicórnios, os fantasmas e os dragões. Basta fazer o puzzle com as peças que encaixam.

1- Rui Ramos, O deus de Stephen Hawking
2- Catholic Encyclopedia, Faith.
3- A propósito disto, recomendo esta palestra de David Deutsch na TED: A new way to explain explanation

domingo, setembro 28, 2014

Cobrar direitos.

A GDA-Direitos dos Artistas é mais uma de várias organizações de gestão colectiva de taxas que se tem de pagar quando se toca num concerto, se tem música ambiente, se organiza festas ou até se compra folhas de papel*. É como a SPA, Passmúsica, AGECOP e afins. Em particular, a GDA «tem como missão a gestão coletiva dos Direitos Conexos ao Direito de Autor dos Artistas, Intérpretes ou Executantes, onde se incluem atores, bailarinos e músicos bem como os seus sucessores.»(1) Isto porque, ao contrário dos outros profissionais, o artista que seja contratado e pago para fazer um trabalho tem o “direito” de continuar a receber dinheiro durante mais setenta anos. Não directamente, mas sempre por intermédio de organizações privadas de “gestão colectiva” desses direitos e que, naturalmente, têm as suas despesas. Por exemplo, na página 27 do Relatório e Contas de 2013 da SPA podemos ver que esta organização recebeu 36 milhões de euros e gastou sete milhões em “Pagamentos ao pessoal” (2). Apesar da alegada eficiência do sector privado, quando se entrega milhões de euros de taxas e impostos à gestão privada, muito do dinheiro acaba nos bolsos dos “gestores”. Não admira, por isso, que estas organizações estejam muito satisfeitas com a alegada justiça de nos cobrar mais quinze milhões de euros de taxa sobre telemóveis, discos rígidos e cartões de memória.

Hoje à noite, na sede do Bloco de Esquerda, a Paula Simões, da Associação Ensino Livre, vai debater esta taxa com o Pedro Wallenstein, presidente da GDA (3). Como não devo poder ir, deixo já aqui o meu apoio à Paula e alguns comentários às tretas da GDA. E quem não puder assistir ao vivo pode assistir à transmissão em directo no site esquerda.net.

A justificação para esta nova taxa é tratar-se de «uma compensação aos artistas, autores e produtores pelas cópias que os consumidores de obras protegidas pelo direito de autor e direitos conexos, todos nós, realizamos na e para a nossa esfera privada.»(4) O primeiro ponto que queria salientar é o uso falacioso do termo “consumidores”. É falacioso porque este termo tem uma conotação negativa e, neste caso, enganadora. Um consumidor é alguém que usufrui de algo destruindo ou degradando o seu valor. É o que se faz quando se consome cerveja, gasolina ou electricidade. Quem assiste a uma peça de teatro, lê um livro ou ouve uma música não está a destruir nada nem a degradar o seu valor. Pelo contrário. Quanto mais audiência uma obra de arte tiver maior é o seu valor cultural. É importante contrariar este engodo do artista produtor e do público consumidor porque o valor da cultura advém da participação colectiva de todos. Do que escreve e dos milhões que lêem; do que compõe e dos milhões que ouvem; do que representa e dos milhões que assistem. Uma obra sem público não tem valor cultural.

Outro problema é o da compensação. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) estipula que a cópia privada só é legal se não «atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.» (artigo 75º, ponto 4). Mas se a cópia privada não atingir a exploração normal da obra não faz sentido exigir uma compensação por um alegado prejuízo nessa exploração. Por outro lado, se houver prejuízo então a cópia não será legal. Como a redacção da lei já exclui a possibilidade de danos pela cópia privada legal, não faz sentido cobrar uma taxa compensatória por este direito.

Outro problema está na noção da cópia privada como uma excepção ao alegado direito que esta gente toda tem de nos restringir o uso da nossa propriedade privada: «É entendimento generalizado que estas cópias se realizam sem que seja possível ou mesmo desejável, para proteger a nossa privacidade e permitir o melhor usufruto da obra, obter a necessária autorização específica por parte dos criadores da obra cultural, Artistas, Autores e Produtores.» Mas o artigo 217º do CDADC estipula ser ilegal neutralizar «qualquer medida eficaz de carácter tecnológico» que vise restringir a cópia ou outra utilização da obra. Como isto inclui «toda a técnica, dispositivo ou componente que, no decurso do seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir actos relativos a obras, prestações e produções protegidas, que não sejam autorizados pelo titular dos direitos de propriedade intelectual», este artigo elimina o direito legal à cópia privada não autorizada no domínio digital. Ao autor que não queira autorizar a cópia basta incluir na representação digital da sua obra qualquer elemento tecnológico que restrinja o seu uso e reprodução. A taxa sobre o equipamento digital visa cobrar por um direito que, na prática, não existe no domínio digital.

Há muitos outros problemas fundamentais na linha de inferências que pretende justificar esta taxa, desde a gestão destas taxas por organizações privadas (5) até ao próprio fundamento deste suposto direito de mandar no que é dos outros. Mas, para este debate acerca da taxa sobre suportes digitais para compensar os autores pela excepção aos seus direitos, há dois pontos importantes que não devem ser polémicos. Primeiro, a lei que já temos só admite a cópia privada legal quando esta não atinge a exploração comercial da obra. Por isso, não pode haver prejuízo pela cópia legal. E, em segundo lugar, a lei dá ao gestor dos direitos o poder de impedir a cópia legal, no domínio digital, pelo recurso às tais medidas tecnológicas que, hoje em dia, são triviais de incluir até em CD. São ineficazes para impedir a cópia mas suficientes para que a cópia se torne ilegal e, por isso, fora do âmbito de qualquer taxa compensatória.

PS: A Paula Simões tem, no seu blog, uma análise mais profunda deste problema: Exercício: Qual é o prejuízo decorrente da cópia privada?

*Errata: O papel foi só até 2004. A Lei nº 50 de 2004 passou a excluir o papel dos suportes virgens a taxar.

1- GDA, O que é a GDA?
2- SPA, Relatório e Contas
3- Esquerda.net, Bloco promove debate sobre cópia privada
4- GDA, Cópia Privada, finalmente a justiça de uma lei que favoreça a Cultura e não as margens de lucro da indústria?
5- Ver, por exemplo, este artigo do Rick Falkvinge: COPYRIGHT COLLECTING SOCIETIES A MORASS OF BAD INCENTIVES