Treta da semana (passada): a matéria prima.
No debate do passado dia 28, a Paula Simões, da AEL, focou os problemas essenciais da taxa sobre a cópia privada em suportes digitais (1). Em primeiro lugar, a taxa cobra um direito que não temos porque a distribuição é dominada pelo DRM e por licenças de acesso sem cópia persistente. A Paula Simões refutou também a tese da taxa ser paga pelos vendedores do equipamento digital. Além de economicamente inviável, é ilegal taxar pelo direito à cópia privada empresas que não têm esse direito. O Pedro Wallenstein, da GDA, contrapôs que «Há interesses em conflito e é preciso encontrar um equilíbrio». Segundo este, «Deslocaram o adversário [...] para os criadores e para aqueles que fornecem a matéria prima em vez de deslocar para uma indústria multinacional que factura milhões» e só se «essa indústria fizer reflectir nos consumidores essa componente, que é a componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum» é que «a comunidade de consumidores, a comunidade de internautas e os cidadãos» se devem revoltar. Há muita coisa errada aqui. Chama «componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum» à taxa que teremos de pagar em benefício de organizações como a GDA. Concordo que a cultura é património de todos, e é assim que declaro ser tudo o que eu publico, seja aulas, código ou artigos. Mas, se é assim, não se pode taxar a cópia privada.
Wallenstein também descartou o problema da lei incidir sobre um direito privado alegando que só importa o equilíbrio entre interesses e que não devemos ligar aos detalhes formais da lei. Isto é insensato porque a letra da lei é a orientação principal dos tribunais. E é especialmente mau neste caso porque o copyright funciona ao contrário da maioria das leis que regulam conflitos entre agentes comerciais e cidadãos privados. Nas relações laborais, poluição, segurança ou direitos do consumidor, a lei tenta proteger o cidadão privado da disparidade de poder entre o indivíduo comum e empresas com advogados contratados a tempo inteiro. A legislação de copyright, imposta por tratados internacionais, faz o contrário, dando a empresas como a Disney e a Sony ainda mais poder para interferir na vida das pessoas. Isto justifica que se preste especial atenção aos detalhes.
Por outro lado, quando a Paula Simões propôs que se legalize a partilha de ficheiros para fins não comerciais de forma a justificar a cobrança, Wallenstein disse que isso não pode ser porque todo o “edifício legislativo” depende da proibição da cópia, mesmo privada. Nisto já quer que os aspectos formais contem mais do que o tal equilíbrio. Mas até formalmente Wallenstein está enganado. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) estabelece que a cópia é um direito exclusivo do autor e que a cópia privada é uma excepção cujo prejuízo, se houver, tem de ser compensado. Mas a protecção dos direitos conexos é diferente. Os direitos conexos são os “direitos” de uma data de gente que não é autor da obra, como artistas executantes e produtores. São estes que a GDA de Wallenstein representa. E, no título dos direitos conexos, está explícito que «A protecção concedida neste título não abrange [o] uso privado» (artigo 189º do CDADC). Ou seja, Wallenstein quer que os detentores dos direitos conexos beneficiem da taxa sobre uma alegada excepção a direitos que estes não têm.
No entanto, o problema mais fundamental é a ideia de que o artista produz uma “matéria prima virtual” que é consumida pelo público e aproveitada pelos negociantes de cartões de memória para lucrarem rios de dinheiro. Isto é um disparate. A diferença entre produção e arte sempre foi clara. Quando o homem pré-histórico caçava, usava o seu trabalho para obter matéria prima da qual criava utensílios e refeições que depois eram consumidos pelo uso ou ingestão. Mas quando desenhava um antílope na parede da caverna não estava a criar matéria, virtual ou qualquer outra. Estava a comunicar. Dança, literatura, cinema, música e afins são formas de comunicar e a tecnologia que acusam de expropriar a “matéria prima” do artista está apenas a facilitar a comunicação. E esse é que é o problema. Durante séculos, as limitações tecnológicas à comunicação criavam um monopólio natural que permitia lucrar pela distribuição de suportes materiais que só alguns tinham capacidade industrial para reproduzir. Nessa altura, a vida privada estava naturalmente fora de consideração. As pessoas tocavam, cantavam e dançavam sem pagar à PassMúsica e escreviam cartas com poemas sem ter de contratar advogados. Agora, todos conseguimos transmitir imagens, sons e textos instantaneamente para qualquer parte do mundo. Wallenstein alega que, por isso, é «necessária uma adaptação do edifício legislativo à realidade tecnológica». Mas é preciso pensar se queremos substituir as antigas restrições tecnológicas por restrições legais. O mero facto de agora podermos fazer mais coisas não implica que devam ser proibidas.
Se percebermos que arte é comunicação percebemos que o que está em causa não é gerir os conflitos entre produtores, transportadores e consumidores de matéria prima sujeita a direitos de propriedade. O problema que temos é o de gerir o conflito entre, por um lado, os interlocutores que comunicam entre si com os meios que a tecnologia permite e que, conforme as circunstâncias, podem ter um papel de profissionais ou amadores, de autores, executantes ou de público e, por outro lado, quem tenta impor restrições a esta comunicação para cobrar dinheiro. Wallenstein tem razão em dizer que os nossos adversários não são os criadores. Até porque, profissionais ou amadores, todos somos criadores e todos contribuímos para a tal «componente que nós todos partilhamos enquanto cultura e património comum». Mas é falso que os adversários sejam os vendedores de equipamento. Os verdadeiros adversários são pessoas como Wallenstein, que querem restringir a liberdade de comunicar para poderem cobrar pela distribuição daquilo que nós podemos distribuir.
1- Resumo no site Esquerda.net: Cópia privada: "Esta lei veio colocar cidadãos contra autores"
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