domingo, outubro 05, 2014

Igualdade e diferenças.

O discurso de Emma Watson nas Nações Unidas, a propósito da campanha “HeForShe”, foi elogiado por frisar que o feminismo não implica odiar os homens (1). Realmente, a discriminação é um problema de todos e lutar por direitos iguais não exige odiar ninguém. Infelizmente, é provável que qualquer pessoa a quem seja necessário dizer isto será uma pessoa a quem não adianta dizê-lo. No entanto, por muito difícil que seja mudar mentalidades, é inevitável que as pessoas sejam substituídas, com o passar do tempo, e quanto mais se discutir estes problemas mais fácil será às próximas gerações corrigir os erros das anteriores. É neste espírito que vou criticar a definição que Watson propôs para o feminismo:

«A crença de que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É a teoria da igualdade política, económica e social dos sexos.»

Concordo plenamente que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É corolário do princípio fundamental de que todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Não é por serem todas iguais, até porque cada pessoa é diferente das outras e até vai sendo diferente de si própria ao longo da sua vida. Devemos ter os mesmos direitos e oportunidades porque, independentemente das diferenças, somos seres que sentem, desejam, planeiam, sonham, anseiam e pensam ao longo da vida. É isso que nos torna todos diferentes, únicos até, mas também é isso que nos faz a todos igualmente dignos de viver o que somos e como somos, cada um à sua maneira. Se pensarmos nestes atributos que nos tornam diferentes e fundamentam os nossos direitos enquanto indivíduos, é fácil perceber como é injusto discriminar alguém pelo grupo em que o colocamos, seja pela cor, pelo sexo ou pelo sítio onde nasceu. Devemos julgar e respeitar cada pessoa pelo que essa pessoa é e não por uma média do seu grupo ou um preconceito acerca do que “essa gente” deve ser.

Na nossa sociedade, a discriminação sexual não é a pior. Por exemplo, discriminar as pessoas pelo sítio onde nasceram é mais grave. Quem vive em regiões mais afluentes tem dificuldade em admitir que as pessoas nascidas do lado de lá de uma linha arbitrária no mapa são tão merecedoras de direitos e oportunidades quanto as que nasceram do lado de cá. A orientação sexual também parece ser motivo de maior discriminação do que o sexo em si e quem não se encaixa nos estereótipos de género tende a sofrer ainda mais discriminação do que quem se conforma com o esperado de um homem ou de uma mulher (2). Mas a discriminação sexual é muito grave noutros sítios e é algo que, por cá, se percebe estar inversamente correlacionado com o civismo. Por isso, a discriminação sexual é um bom campo de batalha nesta guerra contra a injustiça de avaliar indivíduos pelos grupos em que os colocamos, sem esquecer que a guerra tem mais batalhas do que esta.

É da segunda parte da definição que discordo, a da «teoria da igualdade política, económica e social dos sexos». Logo à partida, parece sugerir que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos porque são iguais, quando a igualdade de direitos não tem nada que ver com a igualdade no resto. Também é improvável que, ao darmos direitos e oportunidades iguais a toda a gente, passe a haver «igualdade política, económica e social» entre todos. Pessoas diferentes têm preferências e aptidões diferentes e não vão todas fazer o mesmo. É certo que Watson se refere à média dos homens e das mulheres e não ao que cada um faz individualmente mas, mesmo assim, não é razoável esperar que a igualdade de direitos resulte na mesma proporção de homens e mulheres em profissões como polícia de choque ou educador de infância. Também não deve ser só a discriminação que faz com que as top models femininas ganhem mais do que os seus congéneres masculinos, ou o contrário no futebol profissional. Se bem que estes exemplos sejam extremos, é provável que as diferenças físicas, hormonais e de desenvolvimento entre os sexos tenham efeitos médios perceptíveis na generalidade dos casos. É duvidosa a hipótese de que homens e mulheres individualmente livres de escolher o que fazem acabem por fazer, em média, exactamente a mesma coisa.

Mas é enquanto norma que esta “teoria” é mais prejudicial porque, se tentamos forçar uma igualdade social, económica e política entre os sexos, estamos a cometer precisamente a injustiça que devíamos combater. Estamos a subordinar os direitos de cada indivíduo a preconceitos acerca do grupo. Esta confusão entre a igualdade de direitos e a igualdade de escolhas, que leva à imposição de quotas e medidas afins, apenas muda o aspecto da discriminação sem resolver o problema. É como combater a escravatura exigindo paridade no número de escravos de diferentes raças. O problema que temos de resolver não é o de haver diferenças médias entre grupos. O problema é o de haver restrições às escolhas do indivíduo em função de medidas agregadas do grupo, o que acontece quer o objectivo da discriminação seja favorecer um dos sexos quer seja o de forçar a paridade. Para evitar lutar contra si próprio, o feminismo devia pugnar apenas pela igualdade de oportunidades e de direitos, o que inclui o direito à diferença sem discriminação.

1- UN Women, Emma Watson: Gender equality is your issue too.
2- Por exemplo, Não quer ser "ela". Não quer ser "ele". Só quer ser uma pessoa. Nota: se não conseguirem ler isto por o Público protestar que já não têm artigos de borla, abram o link uma janela privada ou limpem os cookies.

quarta-feira, outubro 01, 2014

Treta da semana (passada): a careca é uma cor de cabelo.

A crítica de Rui Ramos ao ateísmo de Stephen Hawking segue a fórmula do costume. Primeiro, se Hawking «acredita que Deus não existe» então, tal como o crente em Deus, tem «fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus.» Depois, que chegou à sua conclusão da mesma forma que o crente: «A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa.» Finalmente, que a atitude de Hawking para com a ciência é igual à de qualquer crente. «Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo»(1).

Esta forma de criticar o ateísmo sempre me pareceu estranha pela admissão implícita de que a crença em Deus é estapafúrdia. Não é que discorde. Concordo inteiramente que é um disparate formar crenças acerca da realidade por meio da fé e da devoção beata. Mas é estranho julgarem que a falta de fundamento epistémico da crença religiosa é um bom argumento contra o ateísmo. No entanto, mais interessante é perceber porque é que as alegações de Ramos são falsas.

A fé não é o mesmo que a crença. Acreditar é simplesmente aceitar uma proposição como verdadeira enquanto que a fé é um compromisso pessoal de fidelidade e perseverança para com certas ideias (2). É perfeitamente possível acreditar sem fé. Eu acredito que Deus não existe da mesma forma como acredito que a Terra se formou há 4.5 mil milhões de anos, sem sentir qualquer dever de fidelidade para com estas proposições. E é também possível ter fé sem ter crença se a fidelidade a uma ideia não bastar para que se consiga acreditar. A confusão de Ramos entre fé e crença atropela a diferença entre a devoção do crente aos princípios da sua religião e a forma descomprometida como todos regularmente adoptamos e descartamos crenças conforme julgamos conveniente.

O contexto destas crenças também é diferente. A ciência procura a melhor explicação para os dados de que se dispõe. É verdade que isto só resulta se houver dados suficientes e, por isso, a ciência só começou a ter sucesso nos últimos séculos; sem saber nada sobre decaimento radioactivo, a erosão ou a formação do sistema solar não havia razões para acreditar que a Terra tinha 4.5 mil milhões de anos em vez de só dez mil. Mas, com o que sabemos agora, a melhor explicação fica tão entalada na estrutura interligada de observações e outras explicações que, a menos de uma pequena margem de erro, só o valor de 4.5 mil milhões de anos pode ser aceite.

A crença de que um deus inteligente e bondoso criou a Terra por milagre não sofre destas restrições. Em geral, os preceitos de cada religião são arbitrários e podiam ser qualquer coisa. Se criou tudo por milagre, tanto podia ter criado o universo há treze mil milhões de anos como podia ter criado tudo há dez mil anos em sete dias ou em sete minutos na sexta-feira passada. Milagre por milagre, também podia ter criado os fósseis, os vestígios de erosão e até as memórias que cada um de nós tem. Sem qualquer suporte empírico, só a fé leva o crente a decidir que a sua crença é mais acertada do que as dos outros.

O processo também é muito diferente. A ciência não é um «equivalente laico da fé religiosa». A ciência progride explorando e testando alternativas. É este processo de rejeitar o que se revela incorrecto que vai apertando o cerco às explicações admissíveis, deixando cada vez menos elementos arbitrários. Nas religiões, o primeiro passo consiste em afirmar algo como Verdade. E pronto. O resto é teólogos a inventar desculpas para as inconsistências e arbitrariedade da escolha inicial (3). É verdade, como menciona Ramos, que houve «séculos de meditação e de debate» acerca de Deus e outros deuses. Mas o debate e a meditação são inúteis se não se está disposto a descartar as hipóteses erradas.

Hoje é evidente que os deuses são mera ficção porque qualquer coisa que se tente explicar invocando um deus explica-se melhor rejeitando esse deus como fantasia, desde a formação das galáxias e a origem das espécies à existência do mal e a diversidade das religiões. Também não é a «pobreza da [...] concepção de Deus» que faz diferença porque, por muito “rica” que seja, é uma concepção arbitrária, infundada e inútil para explicar seja para o que for. A ciência eliminou os deuses de todas as explicações para o universo que nos rodeia. Sobraram apenas as alegações que os crentes mantêm por fé. Mas, antes de nos metermos pela metafísica da existência dos deuses na premissa de que estas alegações correspondem à realidade, devemos primeiro determinar se é preciso deuses para explicar a fé dos crentes. Também aqui a ciência responde pela negativa. Há evidências claras de que é muito fácil aos seres humanos agarrarem-se a superstições e que a intensidade desse apego não é indicador fiável da verdade das crenças.

Não é preciso idolatrar a ciência para perceber que a fé não serve para compreender a realidade. É precisamente isso que Ramos argumenta contra Hawking, errando apenas por presumir que a posição de Hawking deriva da fé. Mas não é preciso fé para concluir que os deuses são tão fictícios quanto os unicórnios, os fantasmas e os dragões. Basta fazer o puzzle com as peças que encaixam.

1- Rui Ramos, O deus de Stephen Hawking
2- Catholic Encyclopedia, Faith.
3- A propósito disto, recomendo esta palestra de David Deutsch na TED: A new way to explain explanation

domingo, setembro 28, 2014

Cobrar direitos.

A GDA-Direitos dos Artistas é mais uma de várias organizações de gestão colectiva de taxas que se tem de pagar quando se toca num concerto, se tem música ambiente, se organiza festas ou até se compra folhas de papel*. É como a SPA, Passmúsica, AGECOP e afins. Em particular, a GDA «tem como missão a gestão coletiva dos Direitos Conexos ao Direito de Autor dos Artistas, Intérpretes ou Executantes, onde se incluem atores, bailarinos e músicos bem como os seus sucessores.»(1) Isto porque, ao contrário dos outros profissionais, o artista que seja contratado e pago para fazer um trabalho tem o “direito” de continuar a receber dinheiro durante mais setenta anos. Não directamente, mas sempre por intermédio de organizações privadas de “gestão colectiva” desses direitos e que, naturalmente, têm as suas despesas. Por exemplo, na página 27 do Relatório e Contas de 2013 da SPA podemos ver que esta organização recebeu 36 milhões de euros e gastou sete milhões em “Pagamentos ao pessoal” (2). Apesar da alegada eficiência do sector privado, quando se entrega milhões de euros de taxas e impostos à gestão privada, muito do dinheiro acaba nos bolsos dos “gestores”. Não admira, por isso, que estas organizações estejam muito satisfeitas com a alegada justiça de nos cobrar mais quinze milhões de euros de taxa sobre telemóveis, discos rígidos e cartões de memória.

Hoje à noite, na sede do Bloco de Esquerda, a Paula Simões, da Associação Ensino Livre, vai debater esta taxa com o Pedro Wallenstein, presidente da GDA (3). Como não devo poder ir, deixo já aqui o meu apoio à Paula e alguns comentários às tretas da GDA. E quem não puder assistir ao vivo pode assistir à transmissão em directo no site esquerda.net.

A justificação para esta nova taxa é tratar-se de «uma compensação aos artistas, autores e produtores pelas cópias que os consumidores de obras protegidas pelo direito de autor e direitos conexos, todos nós, realizamos na e para a nossa esfera privada.»(4) O primeiro ponto que queria salientar é o uso falacioso do termo “consumidores”. É falacioso porque este termo tem uma conotação negativa e, neste caso, enganadora. Um consumidor é alguém que usufrui de algo destruindo ou degradando o seu valor. É o que se faz quando se consome cerveja, gasolina ou electricidade. Quem assiste a uma peça de teatro, lê um livro ou ouve uma música não está a destruir nada nem a degradar o seu valor. Pelo contrário. Quanto mais audiência uma obra de arte tiver maior é o seu valor cultural. É importante contrariar este engodo do artista produtor e do público consumidor porque o valor da cultura advém da participação colectiva de todos. Do que escreve e dos milhões que lêem; do que compõe e dos milhões que ouvem; do que representa e dos milhões que assistem. Uma obra sem público não tem valor cultural.

Outro problema é o da compensação. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) estipula que a cópia privada só é legal se não «atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.» (artigo 75º, ponto 4). Mas se a cópia privada não atingir a exploração normal da obra não faz sentido exigir uma compensação por um alegado prejuízo nessa exploração. Por outro lado, se houver prejuízo então a cópia não será legal. Como a redacção da lei já exclui a possibilidade de danos pela cópia privada legal, não faz sentido cobrar uma taxa compensatória por este direito.

Outro problema está na noção da cópia privada como uma excepção ao alegado direito que esta gente toda tem de nos restringir o uso da nossa propriedade privada: «É entendimento generalizado que estas cópias se realizam sem que seja possível ou mesmo desejável, para proteger a nossa privacidade e permitir o melhor usufruto da obra, obter a necessária autorização específica por parte dos criadores da obra cultural, Artistas, Autores e Produtores.» Mas o artigo 217º do CDADC estipula ser ilegal neutralizar «qualquer medida eficaz de carácter tecnológico» que vise restringir a cópia ou outra utilização da obra. Como isto inclui «toda a técnica, dispositivo ou componente que, no decurso do seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir actos relativos a obras, prestações e produções protegidas, que não sejam autorizados pelo titular dos direitos de propriedade intelectual», este artigo elimina o direito legal à cópia privada não autorizada no domínio digital. Ao autor que não queira autorizar a cópia basta incluir na representação digital da sua obra qualquer elemento tecnológico que restrinja o seu uso e reprodução. A taxa sobre o equipamento digital visa cobrar por um direito que, na prática, não existe no domínio digital.

Há muitos outros problemas fundamentais na linha de inferências que pretende justificar esta taxa, desde a gestão destas taxas por organizações privadas (5) até ao próprio fundamento deste suposto direito de mandar no que é dos outros. Mas, para este debate acerca da taxa sobre suportes digitais para compensar os autores pela excepção aos seus direitos, há dois pontos importantes que não devem ser polémicos. Primeiro, a lei que já temos só admite a cópia privada legal quando esta não atinge a exploração comercial da obra. Por isso, não pode haver prejuízo pela cópia legal. E, em segundo lugar, a lei dá ao gestor dos direitos o poder de impedir a cópia legal, no domínio digital, pelo recurso às tais medidas tecnológicas que, hoje em dia, são triviais de incluir até em CD. São ineficazes para impedir a cópia mas suficientes para que a cópia se torne ilegal e, por isso, fora do âmbito de qualquer taxa compensatória.

PS: A Paula Simões tem, no seu blog, uma análise mais profunda deste problema: Exercício: Qual é o prejuízo decorrente da cópia privada?

*Errata: O papel foi só até 2004. A Lei nº 50 de 2004 passou a excluir o papel dos suportes virgens a taxar.

1- GDA, O que é a GDA?
2- SPA, Relatório e Contas
3- Esquerda.net, Bloco promove debate sobre cópia privada
4- GDA, Cópia Privada, finalmente a justiça de uma lei que favoreça a Cultura e não as margens de lucro da indústria?
5- Ver, por exemplo, este artigo do Rick Falkvinge: COPYRIGHT COLLECTING SOCIETIES A MORASS OF BAD INCENTIVES

Treta da semana (passada): a treta fracturada.

Alexandre Homem de Cristo escreveu que «a esquerda fracturante» sofreu uma «importante derrota política» porque tem afirmado «que o aquecimento global é uma evidência dos nossos tempos […] E com uma causa simples de identificar: a poluição causada pelo homem». Mas agora, segundo Cristo, está demonstrado que «O aquecimento global estagnou»(1), daí a alegada derrota. Isto no início do texto. No fim, Cristo admite que a sua premissa é falsa ao afirmar que «a questão-chave nunca foi reconhecer que há aquecimento global ou que a acção humana pode contribuir para o efeito estufa (isso está efectivamente demonstrado)». No entanto, para Cristo a falsidade assumida da premissa nada interfere na validade da conclusão.

Não se querendo ficar pela confusão lógica de suportar a sua conclusão negando a premissa da qual esta depende, Cristo dedica também boa parte do seu texto à confusão conceptual entre aquecimento global e alterações climáticas. Afirma que «as evidências [para o aquecimento global] deixaram de ser evidentes» porque «um artigo publicado na reputada revista “Science” […] mostra como é complexo o equilíbrio de factores que têm influência sobre o clima». O aquecimento global é o aumento da temperatura média da Terra. A Terra recebe energia do Sol e irradia energia para o espaço. Conforme aumentamos a concentração de CO2 na atmosfera diminuímos a quantidade de energia que a Terra irradia àquela temperatura. Como passa a receber mais energia do que perde, a temperatura média aumenta até atingir um novo equilíbrio entre a energia que perde e a que recebe do Sol. As alterações climáticas são os efeitos que este aumento de temperatura tem no clima. Este é um problema muito diferente, e muito mais complexo, porque o clima de cada região depende de muitos factores, entre os quais a distribuição das temperaturas, que não é uniforme. O artigo que Cristo menciona é sobre este problema e não tem nada que indique que «o aquecimento global estagnou no início deste século». Pelo contrário.

Consistente com o rigor da sua análise, Cristo refere o artigo apenas como «um artigo publicado na reputada revista “Science”». Ao leitor que queira verificar as suas alegações resta o Google e o contexto para encontrar o artigo (2). O que talvez não tenha sido acidental porque o artigo não suporta em nada a tese de Cristo. Segundo Cristo, o artigo afirma que «o aquecimento global estagnou no início deste século e, tudo indica, assim permanecerá até cerca de 2030». No entanto, o que o artigo afirma é que «Um escoadouro global de calor a profundidades intermédias dos oceanos está associado a diferentes regimes climáticos de aquecimento da superfície sob efeito antropogénico: A parte final do século XX viu um aquecimento global rápido porque mais calor permaneceu à superfície. No século XXI, o aquecimento da superfície abrandou conforme mais calor se deslocou para os oceanos profundos.» (3).

Ao contrário da confusão que Cristo faz, este artigo não indica que o aquecimento global abrandou. Algumas outras explicações propostas para o abrandamento do aquecimento da superfície incluem o abrandamento do aquecimento global. Por exemplo, aumento da irradiação pela redução da concentração de vapor de água na atmosfera ou o efeito de outros poluentes que reflectem parte da luz do Sol. Mas este artigo indica precisamente o contrário: que a diferença está apenas no aquecimento à superfície e não no aquecimento global. Enquanto que no final do Século XX a superfície dos oceanos aqueceu mais rapidamente, agora são as águas profundas que estão a aquecer, como demonstram as medições de temperatura a várias profundidades. Os autores propõem que esta transferência de calor se deve a correntes verticais geradas por variações na salinidade e que este fenómeno é cíclico, pelo que podemos esperar que, após um período em que aquecem as águas profundas dos oceanos, volte a aquecer novamente a superfície. Mas, globalmente, se este artigo estiver correcto, o aquecimento continua e não há razão para ficarmos mais descansados por o aquecimento actual ocorrer nas águas profundas. O nível dos oceanos continua a subir, porque um mecanismo importante é a expansão térmica da água (4); alterações na temperatura afectam as correntes oceânicas que, por sua vez, têm muita influência no clima; e o fundo dos oceanos contém quantidades muito grandes de gases de estufa, como o metano, sequestrados pela combinação de pressões altas e temperaturas baixas (5). O aquecimento dessa parte dos oceanos não é boa notícia.

É irónico que o argumento de Cristo para demonstrar a suposta aldrabice ideologicamente motivada da «esquerda fracturante» seja esta aldrabice confusa e auto contraditória que, fora de um quadro clínico, só se explica por uma forte influência ideológica. De outra forma, não se compreende porque é que ele haveria de suportar a sua tese num artigo que diz o contrário do que ele defende. O aquecimento global não arrefeceu e a complexidade dos efeitos deste aquecimento é mais uma boa razão para o tentarmos travar. E isto não é um problema só da “esquerda fracturante”. É um problema de todos que só a direita pateta tem dificuldade em perceber.

1- Observador, O aquecimento global arrefeceu a esquerda fracturante
2- Chen, Xianyao, and Ka-Kit Tung. "Varying planetary heat sink led to global-warming slowdown and acceleration." Science 345.6199 (2014): 897-903. (pdf disponível aqui)
3- « A vacillating global heat sink at intermediate ocean depths is associated with different climate regimes of surface warming under anthropogenic forcing: The latter part of the 20th century saw rapid global warming as more heat stayed near the surface. In the 21st century, surface warming slowed as more heat moved into deeper oceans.»
4- Wikipedia, Current sea level rise
5- Wikipedia, Methane clathrate

domingo, setembro 21, 2014

Três confusões.

Adivinhando-se um reavivar da contenda pelo copyright, a propósito da nova taxa, achei pertinente apontar três confusões nos conceitos que se invoca para justificar que todos devemos dinheiro aos autores por trabalho que não lhes encomendámos.

Se um cozinheiro profissional trabalha e não lhe pagam é claro que estão a violar os seus direitos e que isso tem de ser ilegal. O mesmo para qualquer outro profissional, seja cabeleireiro, professor, canalizador ou o que calhar. Por isso, se afirmam que a lei deve garantir que os músicos profissionais têm direito a uma remuneração, ninguém estranha. No entanto, neste caso, há um abuso do termo “profissional”. Quando pensamos num profissional pensamos em alguém que trabalha sob contrato, desempenhando uma tarefa que lhe prometeram remunerar ou vendendo algo a quem se comprometeu comprar. Por exemplo, se o cozinheiro tem um contrato com o restaurante ou o músico tem um contrato com a orquestra e não lhes pagam o prometido, então a lei deve intervir. Mas alguém que inventa receitas na esperança de as vender não é um cozinheiro profissional. E se, como é quase certo, os seus potenciais clientes preferirem partilhar as receitas gratuitamente entre si em vez de lhas comprar, não tem qualquer legitimidade para exigir pagamento porque ninguém lhe encomendou nada.

Há artistas e autores que trabalham como profissionais. Em jornais, orquestras e corpos de baile, por exemplo. E, com a tecnologia que temos, qualquer um pode trabalhar de forma profissional se acordar com o seu público a remuneração pelo trabalho que vai fazer. Também já há artistas a fazer isto pela Internet, até porque o princípio é o mesmo que vender bilhetes para um concerto. Tal como nas outras profissões, também na arte o trabalho profissional, no sentido rigoroso do termo, não carece de direitos especiais para garantir uma remuneração justa porque esta é acordada entre as partes à partida. O problema do copyright só persiste porque, por pressão dos distribuidores e pelas limitações tecnológicas de outrora, tornou-se tradição os autores trabalharem sem qualquer garantia de remuneração e só depois tentarem encontrar quem lhes dê alguma coisa. É uma abordagem legítima, mas fazer as coisas por essa ordem é característica de amadores e não de profissionais.

Mesmo admitindo que monopólios, taxas e restrições sobre a cópia só são necessários por falta do profissionalismo de garantir a remuneração antes de fazer o trabalho, há quem argumente que, ainda assim, um artista que produz algo que outros apreciem merece ser remunerado. Em muitos casos a alegação é duvidosa. Por exemplo, quando penso no que o Tozé Brito merece pelo que fez à música portuguesa, não é remuneração que me ocorre. Mas mesmo que o artista mereça ser remunerado é preciso distinguir dois sentidos de “merecer”. Num sentido, a coisa merecida é tão importante e justa que todos temos a obrigação de a garantir. Por exemplo, quando dizemos que as crianças merecem ter acesso à educação ou que um trabalhador merece receber o salário que lhe prometeram pelo trabalho que fez estamos a dizer que deve ser assim nem que seja pela força, cobrando impostos ou ameaçando procedimentos judiciais. Mas quando dizemos que os bombeiros merecem ganhar mais do que os futebolistas estamos a afirmar que seria justo mas sem defender que a lei o obrigue. Esta distinção é importante quando se invoca o mérito dos autores, que até o podem ter, para justificar legislação que esse mérito não justifica. Mérito por mérito, diria ser maior o do bombeiro que o do músico.

Finalmente, os “direitos do autor”. Isto pode referir um conjunto de privilégios que se atribui ao autor por ser diferente dos restantes cidadãos, uma noção que ninguém estranharia no século XVI, quando se inventou estas leis. Um exemplo extremo deste conceito é o (mítico) droit du seigneur, segundo o qual o nobre teria o direito de desvirginar as filhas dos plebeus. Mas o sentido mais adequado à sociedade moderna é o que usamos nos “direitos do trabalhador estudante” ou “direitos do eleitor”. Estas expressões não designam privilégios exclusivos dos membros de uma classe mas, pelo contrário, direitos concedidos a todos para que seja mais fácil desempenharem esse papel na sociedade. Por exemplo, o direito de faltar ao trabalho para fazer exames não é uma recompensa nem um privilégio. Serve para tornar mais fácil a quem trabalha continuar os estudos. Esta mudança de perspectiva inverte o que devem ser os “direitos do autor”. Em vez do direito, de uns poucos, de receberem dinheiro pelo que outros fazem ou proibirem a partilha de informação, devem ser direitos de todos para que seja mais fácil qualquer um ser autor. E isto dá o contrário do que temos. Em vez do monopólio sobre a obra o direito do autor devia ser o direito de acesso e partilha de informação, porque é disso que ele precisa para criar. Em vez do direito de proibir a criação de obras derivadas, o autor devia ter o direito de transformar livremente qualquer elemento da sua cultura. Quer por justiça quer para incentivar a criatividade, em vez de conceder privilégios a quem já criou devíamos conceder a todos os direitos que os ajudem a criar.

Prevejo que, nos próximos tempos, se fale muito dos direitos dos autores profissionais e de como merecem ser pagos pelo seu trabalho. Gostava que, sempre que isso acontecesse, se lembrassem destas três confusões. Qualquer profissional, no sentido rigoroso do termo, tem o direito à remuneração garantido por lei em virtude do contrato que celebrou pela venda do seu trabalho. Se não tem é amador. Muita gente merece muita coisa, mas só em casos excepcionais é que isso justifica coagir terceiros pela força da lei. E, finalmente, numa sociedade igualitária e digital, os direitos do autor não devem ser privilégios aristocráticos dos membros da SPA. Devem ser direitos de todos e devem facilitar o acesso, a partilha e a transformação das obras para que se maximize a criatividade.

sábado, setembro 20, 2014

Treta da semana (passada): profissionais da pobreza.

A semana passada a Isabel Jonet “alertou” que «Há profissionais da pobreza em Portugal» (1). À primeira vista, pode parecer que acusá-la de ser um dos principais profissionais da pobreza é como acusar os médicos de serem profissionais da doença ou os bombeiros de serem profissionais da desgraça. Mas há uma grande diferença entre Jonet e os restantes. Os médicos e os bombeiros fazem o que podem para prevenir os problemas, depois fazem o que podem para os resolver e só em casos extremos é que administram paliativos ou deixam a casa arder. Em contraste, a Isabel Jonet não só se limita a disfarçar os sintomas da pobreza, sem nada fazer para a prevenir ou reduzir, como também deturpa os factos e defende ideologias que impedem que o problema se resolva.

Aponta que «Em Portugal há aquilo a que chamamos a transmissão intergeracional da pobreza e temos que quebrar com essa transmissão». É verdade. Poucos ficarão surpreendidos em saber que os filhos de pais pobres tendem a ser mais pobres do que filhos de pais ricos e que as crianças de famílias pobres enfrentam obstáculos enormes simplesmente por serem pobres. Têm pior alimentação. Têm menos apoio dos pais, que normalmente têm menos formação e menos disponibilidade para passar tempo de qualidade com os filhos. Uma pausa serena para conversar ou brincar com os filhos é um luxo pouco acessível a quem passa cada momento a esgravetar trocos para a refeição seguinte. E estas crianças crescem num ambiente mais pobre. As avós ajudam muito, e são de graça, mas o contacto com outras crianças e educadores é importante e dificilmente se consegue que seja bom e gratuito.

Há também uma diferença grande entre a atitude de quem é pobre e a de quem não é, por força das circunstâncias. Quem tem estabilidade económica pode fazer planos a longo prazo mas, para quem vive da mão para a boca e sem qualquer segurança, isso não faz sentido. Não vale a pena planear poupar por uns anos, ou sequer uns meses, quando sobra tão pouco e se a qualquer momento se pode ficar sem nada por factores que não se controla. É fácil, para quem vive confortavelmente, criticar os pobres por “esbanjarem” o pouco que têm em coisas supérfluas. Mas se tivessem regularmente de almoçar pão com chá e nunca soubessem como iriam estar daí a umas semanas provavelmente também não lhes daria para pôr no banco os cinquenta euros que por algum feliz acaso sobrassem naquele mês.

Finalmente, há também o efeito da própria forma como se apoia os pobres. Aqui em casa, seria difícil pagarmos colégio privado aos nossos três filhos. Por isso, recorremos à ajuda do Estado pondo-os na escola pública. O que não é vergonha nenhuma porque a escola pública é para toda a gente que lá queira ter os filhos. Mas a situação seria diferente se, em vez de um sistema de educação universal, as escolas públicas fossem só para pobrezinhos, só admitindo os filhos de quem demonstrasse não ter dinheiro para o colégio privado. A ajuda condicionada à pobreza do beneficiário não é só humilhante e injusta. É também uma barreira à saída da pobreza porque faz com que uma melhoria no rendimento possa resultar na perda de apoios indispensáveis.

Mas o mundo de Jonet é mais simples. A pobreza não resulta de problemas sociais e económicos, nem de desigualdades, nem das trafulhices dos ricos. Deve-se simplesmente à preguiça dos pobres. «Há profissionais da pobreza habituados a andar de mão estendida, sem qualquer preocupação em mudar». E a solução não tem de considerar coisas aborrecidas como a discriminação, a justiça ou a redistribuição. Isso afecta o rendimento dos ricos e, como toda a gente sabe, os ricos são sempre os mais trabalhadores. O importante, para Jonet, é que «quando se ajuda uma família pobre, deve-se procurar que essa família queira deixar de ser pobre e não encare a assistência como uma forma de vida». Não basta garantir que o pobrezinho que se ajuda tem certificado de pobreza. É preciso também confirmar que quer largar o vício de ser pobre, deixar de ser mandrião e tornar-se rico como as pessoas decentes. Não se vai desperdiçar recursos com aquele tipo de pobre que teima em continuar pobre mesmo depois de lhe darmos uma sopa e um pacote de arroz.

Há quem julgue que pessoas como a Isabel Jonet ajudam a combater a pobreza. Mas, quanto mais a senhora fala, mais me convence do contrário. Por um lado, porque apenas disfarçam o problema. Enquanto houver caridadezinha nas paróquias e voluntários a distribuir latas de conserva pode-se fingir que o problema está a ser resolvido. Isto também ajuda a manter os pobres calados, não vão tirar-lhes a sopa se não se portarem bem. Por outro lado, dirigir instituições de “solidariedade” cria uma ilusão de autoridade moral que torna mais fácil empurrar a opinião pública para longe de qualquer solução eficaz.

O PIB dividido pelos agregados familiares, segundo a Pordata e as minhas contas, dá uma média de 3.500€ por mês, ou 2.100€ depois de retirados os impostos. Com este dinheiro seria perfeitamente viável dar umas centenas de euros por mês a todas as famílias, sem restrições, o que eliminaria os problemas principais do sistema que temos. Haveria menos barreiras para sair da pobreza, menos discriminação dos pobres, mais estabilidade para todos poderem planear a sua vida e, logo à partida, menos pobreza. Mas como isto implica menos dinheiro para os mais ricos, abençoada seja a Isabel Jonet e as suas ideias parvas...

1- Jornal de Notícias, "Há profissionais da pobreza em Portugal", alerta Isabel Jonet

terça-feira, setembro 16, 2014

O que faltou ontem.

Como qualquer circo, o Prós e Contras de ontem teve praticamente de tudo. Mas houve três falhas que tentarei aqui colmatar.

Primeiro, não ficou claro que não existe o direito à cópia privada no domínio digital. O Rui Seabra mencionou isso mas, com pouco tempo para falar e uma linguagem demasiado técnica, a mensagem acabou por não passar. A cópia privada é uma excepção legal que permite a cópia para uso pessoal sem a autorização do detentor do direito de cópia. Por exemplo, tirar uma fotocópia de um livro pode ser legal mesmo que a editora o proíba. É esta excepção que justifica a compensação pela cópia privada, se bem que esse direito só seja reconhecido quando não causa prejuízo, o que faz questionar a necessidade de compensação. Seja como for, isto funciona com livros em papel e cassetes de música mas não funciona com e-books, DVD ou músicas digitais. No domínio digital, a lei proíbe que se contorne mecanismos de restrição de cópia, o que dá aos detentores dos direitos a possibilidade de impedir a cópia legal caso não a queiram autorizar. Sendo assim, no domínio digital não há forma legal de copiar contra a vontade dos detentores dos monopólios, ficando logo excluída a necessidade de compensação.

Faltou também esclarecer que os portugueses não se dividem em vinte e tal mil autores de um lado e dez milhões de “consumidores” do outro. Em primeiro lugar, porque a cultura não se consome. Consumir implica destruir valor, como quando queimamos gasolina ou comemos batatas fritas, mas a cultura tem tanto mais valor quanto mais pessoas a partilhem. Mais relevante ainda, do ponto de vista jurídico, a lei protege todas as obras por igual, quer provenham de profissionais e tenham fins lucrativos quer provenham de amadores pelo simples prazer de criar. E, se bem que o domínio analógico fosse dominado pelos profissionais, o domínio digital é claramente dominado pelos amadores. Como a lei considera tanto autor quem filmou os filhos nas férias ou escreveu um email como quem realizou um documentário ou publicou um livro, a nossa preocupação não pode ser com os vinte e tal mil associados da SPA. Tem de ser com os dez milhões de autores portugueses.

Finalmente, talvez por lapso da produção, faltou o convite à Sociedade de Autores de Culinária e Afins, cujo comunicado me pediram para divulgar e que transcrevo abaixo.

É com pesar, e alguma revolta, que mais uma vez a Sociedade de Autores de Culinária e Afins (SACA) se vê excluída de um importante diálogo sobre a Propriedade Intelectual e os Direitos de Autor. Há anos que pugnamos para esclarecer os consumidores, tal como tentaram fazer os Exmos. Secretário de Estado da Cultura, Presidente da SPA e Vice-Presidente da SPA. De facto, a maioria da população sofre da ilusão de que, quando compram algo, têm o direito de fazer com a sua propriedade o que entenderem. Este é um erro crasso de quem não compreende a diferença fundamental entre ser dono do suporte ou da sua Forma, uma diferença reconhecida já desde o tempo de Platão.

Considere-se, por exemplo, o Pastel de Nata, um dos grandes símbolos de Portugal e, segundo o saudoso Ministro Álvaro Santos Pereira, de todos os bolos com creme o que mais potencial teria para tirar Portugal da crise. Nas lojas, o exmo. Consumidor pode adquirir este produto na sua forma mais simples ou, com um valor ligeiramente superior, acompanhado de um pacotinho de canela. Desta maneira, o autor culinário pode gerir o mercado de forma a oferecer a cada cliente o que este mais deseja. No entanto, muitas pessoas não percebem que a compra daquele suporte de massa e creme onde o Pastel foi instanciado não lhes dá o direito de usufruir do Pastel de formas não autorizadas. Por isso, compram o pastel mais barato para depois usufruir dele com canela comprada nas grandes superfícies. Este abuso dos direitos de usufruto do Pastel é apenas um exemplo dos inúmeros ataques que constantemente assolam a nossa indústria culinária e de restauração.

Com o advento da Internet e das chamadas “novas tecnologias”, generalizou-se a pirataria das receitas. A poderosa indústria dos electrodomésticos, além de ter tomado conta da blogoesfera, tem lucrado milhões vendendo auxiliares de pirataria, que vão de tachos a robots de cozinha, passando por batedeiras e varinhas mágicas. Estamos cientes de que o problema da pirataria é muito diferente de permitir, com a devida compensação, que o comprador do suporte usufrua da obra de formas não autorizadas, seja pela alteração do formato seja pela adição da canela. Mas é importante explicar o contexto que assola uma indústria fundamental para o nosso país. A música e os livros são coisas importantes, com certeza, mas a alimentação tem de vir primeiro. Não se pode permitir que as pessoas continuem a cozinhar e a partilhar receitas sem regras, e que uma indústria tão importante seja arrasada por amadores quando cozinheiros profissionais passam fome. Assim, propomos ao Exmo. Sr. Secretário de Estado da Cultura que estenda a taxa sobre o equipamento digital a todos os condimentos, ingredientes, aparelhos de cozinha e livros. Reconhecemos que há livros que não são de culinária, mas esses são uma rara excepção e não é justo que a indústria livreira lucre à custa dos profissionais da Criação Alimentar.

José Rendeiro da Cunha,
Chefe de Culinária e Presidente da SACA.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Ciência e filosofia

são a mesma coisa. Se bem que hoje pareça uma afirmação estranha, até meados do século XIX nem sequer havia cientistas. Desde que uns gregos trocaram a mitologia por uma abordagem crítica e racional até que William Whewell cunhou o termo “cientista”, quem procurava o conhecimento era filósofo*. Mesmo o “cientista” original era somente quem estudava as filosofias naturais, excluindo disciplinas como a psicologia, a história ou a sociologia. Só a especialização crescente em vários campos é que fez calcificar a noção da ciência como separada da filosofia. Uma noção que, além de falsa, é prejudicial para ambas.

Normalmente, invoca-se uma de duas razões para separar filosofia e ciência: a de que são métodos diferentes ou a de que abordam problemas diferentes. A primeira é fácil de descartar porque o melhor método para responder a qualquer questão é sempre o de pensar criticamente nas respostas à luz da experiência. Aristóteles propôs que as pedras caíam porque o seu lugar natural era em baixo. Por experiência, sabia ser errado propor que as pedras subiriam por o seu lugar natural ser no céu. É também esta a abordagem da física moderna e, se Aristóteles soubesse o que se sabe hoje, teria proposto algo semelhante ao que se propõe agora. A abordagem racional e crítica é a mesma quer se chame filosofia quer se chame ciência. O que dá a sensação de serem diferentes é, por vezes, interpretar-se as perguntas de forma diferente. O que nos traz à segunda razão que se invoca para distinguir ciência e filosofia.

Vamos considerar, como exemplos, as questões “o que é a matéria?” e “o que é o bem?”. Os proponentes da separação dirão que a primeira questão é científica por ser abordada de forma empírica enquanto que a segunda é filosófica por ser debatida pela argumentação crítica. Mas, em qualquer área, a fronteira do conhecimento é sempre parca em experiência. A física moderna é um enorme edifício conceptual testado e fundamentado empiricamente mas o seu limite, onde a construção decorre, é dominado pela argumentação. Enquanto não se consegue testar as teorias mais sofisticadas, os físicos teóricos argumentam entre si como fazem os filósofos da ética e como faziam os gregos na antiguidade. A diferença está apenas na quantidade de conhecimento prévio que isto exige. Enquanto que o conhecimento empírico necessário para perceber Aristóteles ou a filosofia ética é apenas o que qualquer pessoa normal já tem, para filosofar na física moderna é preciso saber muito mais e quem percorra esse caminho acaba rotulado de “físico” e “cientista” o que, por preconceito, exclui que o reconheçam como filósofo também. Mas a diferença no fundamento empírico é apenas de grau e não de categoria.

Também quem filosofar na ética tem de usar o seu conhecimento empírico para filtrar as hipóteses que apresenta. É por isso que não se vê filósofos a propor que o bem moral seja definido em função de fazer cócegas, lavar mais branco ou ter a embalagem mais atraente. Por experiência, sabemos que faz mais sentido olhar para factores como expectativas, consequências, actos ou virtudes. A ilusão de que a filosofia ética não é empírica resulta apenas do conhecimento empírico necessário, neste momento, estar facilmente acessível a todos. Assim, o estudo adicional que a filosofia ética exige foca os argumentos em vez das experiências e das hipóteses que delas surjam. Mas isto pode mudar. Se a neuropsicologia descrever em detalhe como factores externos e mecanismos internos restringem as nossas decisões, e como quantificar experiências subjectivas, esse conhecimento informado pela experiência passará a ser indispensável para a filosofia da ética. Não só por eliminar hipóteses factualmente incorrectas, como já aconteceu a boa parte das éticas de inspiração religiosa, mas porque a nossa capacidade de conceptualizar detalhes é muito limitada e, sem ajuda da experiência, só conseguimos formular ideias vagas.

Resumindo, eu considero a filosofia e a ciência como extremos num contínuo, com a filosofia exigindo menos dados empíricos (mas sempre alguns) e mais argumentação e a ciência exigindo menos argumentação (mas sempre alguma) e mais conhecimento empírico. Isto facilmente induz o erro de ver a filosofia como uma fase primitiva da ciência, erro que eu próprio tenho cometido até começar a escrever este post. Esse erro advém de olhar para um ponto fixo por onde o conhecimento avança. Mas, se acompanharmos essa fronteira em expansão, vemos que a filosofia está sempre na crista da onda, abrindo o caminho para a consolidação empírica a que chamamos ciência. E, mesmo sendo a frente mais filosófica e a cauda mais científica, não há uma fronteira definida entre elas nem se pode separar as duas porque a abordagem é a mesma, só as circunstâncias é que vão gradualmente mudando e tornando uma na outra.

Perceber que filosofia e ciência são partes de um contínuo indivisível é importante quer para cientistas quer para filósofos. Pode ajudar os cientistas que dizem desprezar a filosofia a perceber que nunca podem prescindir dela e pode ajudar, por exemplo, o Dawkins a lembrar-se de que tem sempre de ter cuidado com a consistência dos argumentos que apresenta. Também pode ajudar os filósofos que acusam os cientistas de serem “filosoficamente ingénuos” a perceber que, estando a filosofia à frente da ciência, é um erro ignorar a investigação científica. Por exemplo, acusar Krauss de ter um conceito “filosoficamente ingénuo” do nada pode ser um disparate tão grande como o de, sem compreender a teoria da relatividade, acusar Einstein de ter um conceito “filosoficamente ingénuo” da gravidade só porque nunca citou Aristóteles nos seus artigos. Imaginar que a filosofia e a ciência estão separadas permite acusações cómodas de parte a parte por dispensar o conhecimento dos factos ou a reflexão adequada. Mas o resultado tende a ser um disparate que seria fácil evitar se percebessem que não se pode reflectir sem informação nem se pode compreender sem reflexão.

* Também havia teólogos, místicos, profetas e essa gaita toda. Mas isso sempre foi aldrabice.

domingo, setembro 07, 2014

Treta da semana: Gonçalismo.

Gonçalo Portocarrero de Almada propôs que «Apesar de, na aparência, a nossa sociedade ser machista, na realidade são elas que mandam!» (1). Passou depois a apresentar exemplos que sugerem precisamente o contrário. Começou por contar que, «no relato bíblico, foi a mulher que obrigou o homem a comer o fruto proibido». Se reconhecermos que este relato não é uma descrição correcta dos factos mas sim um mito inventado por homens, é evidente o machismo na atribuição da culpa à mulher. E a interpretação de Portocarrero é ainda mais machista porque a expressão original é simplesmente «tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela» (Gen. 3:6). Interpretar isto como obrigar Adão a comer o fruto não está longe de interpretar uma mini-saia como “estar a pedi-las”.

Mais à frente, Portocarrero aponta que «Muitos privilégios da condição feminina não são extensivos aos homens: a consorte do rei é rainha, como as plebeias Letícia de Espanha, Sílvia da Suécia e Sónia da Noruega. Mas o marido da rainha só é príncipe, como Filipe de Edimburgo, Bernardo da Holanda ou Frederico da Dinamarca». A mulher que se case com um rei será rainha porque se presume que, havendo um rei, a rainha não manda nada e é simplesmente a esposa do rei. Para que a rainha seja a regente não pode estar casada com um rei e é por isso que o marido da rainha reinante tem de ser menos que rei. Senão seria ele a mandar. Isto só pode parecer discriminação em favor da mulher a quem também acreditar que três é um e que a bolacha é Deus. Para qualquer pessoa com discernimento é mais um exemplo de machismo e não de “privilégios da condição feminina”.

Portocarrero também critica a assimetria entre machismo e feminismo. «Um homem que considera as mulheres menos aptas para o exercício de um cargo ou profissão é, obviamente, machista. Mas, se uma senhora tecer a mesma opinião em relação aos cavalheiros, ninguém a acusará de feminista […] Em tese, também poderia haver um machismo bom e um feminismo mau.» Um machismo bom, duvido. Mas um feminismo mau, sim. O feminismo bom será o que defende a igualdade de direitos e rejeita a discriminação em função do sexo ou do género. O feminismo mau é também discriminatório, como o machismo. Por exemplo, é um feminismo bom defender que mulheres e homens devem poder fazer parte de corporações de bombeiros, ou de forças de segurança, sem discriminação. Mas será um feminismo mau o que defender que os testes físicos das mulheres devem ser mais fáceis do que os dos homens. Além de discriminatório, isto ignora o facto incontornável de que as exigências físicas das tarefas a executar não diminuem magicamente quando as tarefas são executadas por uma mulher.

No entanto, há uma grande diferença entre o machismo e o feminismo mau porque o machismo tem muitos séculos de tradição e uma aceitação social muito mais enraizada que qualquer feminismo, bom ou mau. Até os exemplos que Portocarrero escolheu demonstram isso claramente. Portanto, é como na canoagem. Quem remar olhando para o umbigo espera haver uma simetria entre a canoa apontar para aquele lado ou para o outro. Mas quem estiver atento à margem verá que é mais fácil empurrar a canoa a favor da corrente do que para o outro lado. Em águas paradas poderia ser como Portocarrero reclama mas, infelizmente, estamos muito longe disso. Tão longe que é preciso remar contra a corrente só para ficar parado e chamar feminismo à ideia tão simples de que devemos ter todos os mesmos direitos.

No entanto, concordo com Portocarrero quando afirma que «Impor restrições, por razão do sexo, no acesso aos cargos políticos, ou outros, é perverter a ordem da justiça». Mas lamento que seja inconsistente na aplicação desse princípio. Sendo padre, dá «graças a Deus por me ter chamado para a única profissão que elas nunca poderão exercer!» Não poderão porque, por razão do seu sexo, lhes impõem restrições no acesso a esse cargo. Mas, se não fosse essa perversão da ordem da justiça, poderiam perfeitamente fazer o que o senhor padre faz. Podem não ser muitas as mulheres com essa vocação, mas há com certeza algumas capazes de proferir disparates da mesma magnitude.

1- I Online, Eles e Elas.

sábado, setembro 06, 2014

Incentivo.

O Samuel Henriques criticou o meu post anterior sobre a taxa pela cópia privada. Uma das críticas foi a de que eu refiro sempre o copyright quando «O direito de autor português não corresponde ao copyright anglosaxónico»(1). É precisamente por isso. Eu não sou contra o direito do autor ser reconhecido como criador da obra, de não ser associado a deturpações do que criou e de decidir se publica a obra ou se a mantém privada, por exemplo. O que oponho é a concessão de um monopólio legal sobre a cópia e sobre a criação de obras derivadas. Ou seja, o copyright. O Samuel também apontou que é fácil criticar a taxa sobre equipamento digital sem atacar o monopólio sobre a cópia. Até pode ser. No entanto, o problema maior aqui não é pagar 4€ de taxa na compra de um disco rígido. Muito pior é ser crime partilhar informação que está publicamente disponível em qualquer loja.

O Samuel desafiou-me também a propor uma «solução que melhor ajude a criação artística». A premissa parece ser a de que estes monopólios incentivam os autores a criar as suas obras e que só podemos abolir esta legislação se a substituirmos por algo que incentive ainda mais. Aceito o desafio, mas tenho de desfazer os mal entendidos primeiro.

O Reino Unido foi pioneiro nestas coisas. Em 1538 passou a exigir aprovação e censura prévia de todo o material impresso e, em 1662, atribuiu à guilda dos tipógrafos o direito exclusivo de imprimir o que a Coroa autorizasse. Quando um tipógrafo registava uma obra ficava com o direito exclusivo e perpétuo de a imprimir, sem que o autor fosse sequer consultado. Eventualmente, os protestos dos autores levaram, em 1710, à primeira legislação de copyright. Esta mantinha o sistema de monopólio mas concedia ao autor o monopólio inicial e limitava a sua duração a 14 anos (2). É importante perceber como o contexto em que este sistema surgiu diferia do copyright moderno, especialmente no domínio digital. O monopólio era concedido sobre a tipografia, uma actividade industrial acessível apenas a uns poucos comerciantes e fora do alcance da generalidade dos autores e dos leitores. Além disso, a concessão do monopólio aos autores foi uma reacção à injustiça de o conceder logo aos tipógrafos e assumia que, de qualquer forma, os autores teriam de ceder esse monopólio por não serem donos de tipografias. No fundo, algum monopólio existiria, com ou sem a lei, pelas restrições que a tecnologia impunha e ao contrário do que acontece agora.

Há também evidências de que o copyright era menos benéfico para os autores do que um mercado livre e competitivo. Por exemplo, a falta desta legislação na Alemanha do século XIX levou a preços mais baixos e a maiores volumes de vendas do que no Reino Unido, beneficiando autores, leitores e a cultura em geral (3). Hoje também é evidente que o monopólio só serve os distribuidores. O decréscimo dramático na venda de discos fez encerrar muitas lojas e causou prejuízos às editoras mas não resultou em qualquer decréscimo na composição de músicas novas nem em prejuízo, em média, para os artistas (4). Nada disto deve surpreender quem percebe como um monopólio funciona: um monopólio permite aumentar os lucros por limitar a concorrência. Por exemplo, hoje estão a ser reeditados mais livros escritos nas décadas de 1900 e 1910 do que em qualquer década entre 1920 e 1980. O número de títulos com edições novas apenas ultrapassa o de 1910 para obras mais recentes do que 1990. Este buraco de 80 anos corresponde à duração média do copyright dessas obras, período durante o qual o detentor do monopólio opta por não editar títulos que possam concorrer com outros que esteja a promover (5).

Outro erro é julgar que os autores precisam de um incentivo para criar. É claro que, depois de terem sucesso, vão sempre querer mais monopólios, por mais tempo, para ganharem mais dinheiro (6). Mas um artista precisa de tanto incentivo para se exprimir pela arte como eu preciso para comer chocolate. O que temos de dar ao autor são condições para que possa criar, condições essas que o copyright degrada significativamente por dificultar o acesso à cultura, por obrigar os jovens artistas a competir com detentores de vastos monopólios e por proibir a criação de obras derivadas.

Para responder ao Samuel, há alternativas melhores para ajudar a criação cultural. Maior investimento na educação artística aumentaria muito a qualidade das obras, quer por formar melhor os autores quer por tornar o público mais exigente. Melhor apoio social a famílias carenciadas reduziria o número de autores que perdemos por lhes ser impossível começar essa carreira. A quem precisa de comer agora não adianta uma promessa vaga de, eventualmente, receber royalties durante setenta anos. Em geral, o que mais ajuda a criação artística é o que mais ajudar cada pessoa a seguir os seus interesses e a aproveitar a suas aptidões. Mas se queremos uma medida imediata, eficaz e de custo zero para fomentar a criatividade artística, então a melhor alternativa ao copyright é simplesmente aboli-lo. Com a tecnologia que temos, esse sistema monopolista do tempo de Gutenberg faz muito mais mal do que bem.

No entanto, nada disto importa. Discutir os efeitos económicos do copyright é como discutir se a escravatura seria boa ou má para a economia. O copyright usa os nossos impostos para financiar medidas coercivas que restringem o que podemos fazer com o nosso equipamento, e a informação que podemos partilhar, só para rentabilizar um modelo de negócio que, no fundo, consiste em vender números. Ao lado deste absurdo, qualquer questão de ajudar ou dificultar a criação artística torna-se irrelevante.

1- Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.
2- Wikipedia, Statute of Anne
3- Quem lucra.
4- Torrent Freak, ARTISTS MAKE MORE MONEY IN FILE-SHARING AGE THAN BEFORE IT
5- Heald, How Copyright Keeps Works Disappeared Illinois Program in Law, Behavior and Social Science Paper No. LBSS14-07; Illinois Public Law Research Paper No. 13-54.
6- Por exemplo, BBC, Rock veterans win copyright fight

domingo, agosto 31, 2014

Treta da semana: a sandes pública.

Uns jovens “activistas” decidiram criar um “movimento solidário”. «Pegando no Conceito dos "Banhos Públicos" e dando-lhe alguma utilidade Social surge então as "Sandes Públicas", a ideia é simples Prepara uma sandes e oferece-a alguém cheio de apetite!»(1). Por “alguém cheio de apetite” querem dizer alguém cuja miséria seja tão grande que não tem que comer ou onde dormir e por “utilidade Social” querem dizer fazer um vídeo mostrando como são bonzinhos e dão sandes aos sem-abrigo. Uma sandes, mais precisamente, porque depois nomeiam outros para que façam o mesmo e propaguem o movimento solidário de mostrar os sem-abrigo no YouTube a receber sandes. Na entrevista, salientam que o que os move não é a fama, apesar de mencionarem com orgulho os milhares de fãs e visualizações. O que lhes importa é «o sentimento do dever cumprido»(2). No meio desta aberração toda, até é isso que mais me preocupa.

O problema já é antigo e nunca se deveu à falta de solidariedade, porque quem tem muito facilmente diz ter pena de quem não tem nada. O problema foi sempre a má distribuição. Como já dizia António Aleixo:

O pão que sobra à riqueza,
distribuído pela razão,
matava a fome à pobreza
e ainda sobrava pão.

Antes que mais jovens activistas se precipitem, saliento que não se trata de uma exortação à distribuição de sandes. O pão do poema é metafórico. Mas o mais relevante neste poema é que não propõe distribuir por solidariedade, nem por caridade, nem por pena dos pobrezinhos. É pela razão. Ou seja, da forma justa e certa.

Se alguém é atropelado não tiramos uma foto enquanto lhe damos um penso. Queremos ambulância, hospital, médicos e que for preciso para o tratar. Mesmo que essa pessoa não tenha dinheiro e mesmo que se tenha atirado para a estrada sem olhar, é uma pessoa que sofreu um acidente e todos temos o dever de lhe garantir auxílio. Por isso pagamos para que se construa hospitais, para que se contrate médicos e para que se preste cuidados de saúde a quem precisar. Não é por solidariedade. É por dever.

Se alguém estiver a ser espancado na rua não o entrevistamos enquanto lhe damos uma palavra de coragem. Exigimos polícia, justiça e o que for preciso para que haja segurança nas ruas. E, para isso, pagamos esquadras, polícias e juízes. Não é por pena dos espancados. É por obrigação. É também o que fazemos com os passeios, as estradas, os jardins e a iluminação pública, e também com os esgotos, as escolas e as campanhas de vacinação. Não é por caridade mas por ser a forma correcta de resolver os problemas importantes. Todos devem fazer o mesmo sacrifício para que todos beneficiem por igual daquilo a que todos têm direito.

Também não está certo que quem passa fome e dorme ao relento leve uma sandes e seja filmado para o YouTube. É preciso garantir-lhe um rendimento que dê condições mínimas para viver. Para que tenha onde dormir, onde fazer as necessidades e tratar da higiene, onde possa guardar as suas coisas e para que possa comer condignamente. E não é por ser um coitadinho, nem tão pouco importa se é pobre porque teve azar ou porque é preguiçoso ou doente. É uma pessoa e uma pessoa não merece viver assim. Ninguém tem o direito ao «sentimento do dever cumprido» enquanto este problema não se resolver e é asneira achar que esta caridadezinha é inofensiva. É como tratar um tumor no cérebro com aspirina. Medido pelo sofrimento que causa, este é o maior problema de Portugal e temos de o levar a sério.

Por isso aqui vai o meu desafio. Arrumem a máquina de filmar e enfiem a sandes onde quiserem que isto não precisa de adereços. Eu apoio quem implementar um rendimento incondicional garantido em Portugal e aceito que me aumentem os impostos o que for preciso para o conseguir. Agora nomeio toda a gente que diga importar-se com a pobreza a comprovar com a carteira o que dizem de boca e fazer o mesmo. Não é para dar uma sandes ou 20€. É para dar o que for preciso, todos os meses e a vida toda para resolver isto de vez, que já é altura. E não é por caridade, nem por solidariedade nem por pena. É pela razão.

PS: para poupar trabalho, aqui fica o link: http://www.rendimentobasico.pt.

1- Facebook, Sandes Públicas
2- SIC, "Sandes Públicas" são uma causa solidária.

Dawkins, a filosofia, e o aborto.

O Dawkins já se meteu noutra alhada. Afirmou ser imoral não abortar um feto com trissomia 21 (1) e, desta vez, discordo dele. Mas antes de explicar porquê, queria apontar o dedo à treta de descartarem argumentos alegando que o proponente não percebe de filosofia. Neste caso, acusam-no de ser tão ignorante que reprovaria numa disciplina de filosofia (2), o que nem faz sentido. Eu tenho um doutoramento em bioquímica e trabalho em modelação de interacções de proteínas mas, se fosse repetir agora o exame da primeira disciplina de bioquímica que tive na faculdade, chumbava de certeza porque já não me lembro nada de cinética enzimática. A maior parte dos detalhes que aprendemos num curso esvai-se depressa, até porque o objectivo do ensino superior não é formar enciclopédias com pernas. O mais importante é a capacidade de aprender matérias novas e complexas, capacidade essa que duvido que falte ao Dawkins.

Essa alegada ignorância filosófica é também uma ignorância peculiar. Na filosofia natural, os argumentos são filtrados pela sua adequação aos dados empíricos, sendo por isso útil conhecer os dados antes de argumentar. Mas alguns filósofos defendem que a filosofia natural, que agora se chama ciência, não é filosofia e, para as manter separadas, reduzem a filosofia à argumentação especulativa desprovida do crivo empírico. Se bem que assim seja trivial alegar que o outro é ignorante – argumentos há muitos – como isto sabe a pouco acabam por fazer o que se vê no artigo onde acusam Dawkins de ignorância filosófica: «Em última análise, além dos argumentos confusos de Dawkins, o problema principal é que ele não tem evidências. Não há dados empíricos que suportem a sua afirmação que o nascimento de um bebé com síndrome de Down torna o mundo – ou o bebé – mais infeliz»(2). É um padrão recorrente nesta abordagem. Acusam alguém de ser filosoficamente ignorante mas, tal como é mais persuasivo criticar a física de Aristóteles com as evidências da física moderna do que criticar a teoria da relatividade com os argumentos aristotélicos, o que acaba por contar no fim são as evidências e não o conhecimento de um grande número de argumentos, muitos dos quais irrelevantes.

Mas o pior é que a refutação pela alegação de ignorância filosófica é uma falácia. O mérito de um argumento não tem nada que ver com a ignorância de quem o propõe. Chamar ignorante ao interlocutor apenas tenta tornar a refutação mais persuasiva pelo preconceito contra o termo mas sem que seja legítimo inferir daí o que quer que seja. Pelo menos dos filósofos devia exigir-se que não cometessem este erro com tanta frequência.

A posição que Dawkins exprimiu deriva-se trivialmente da premissa de que, até às tantas semanas, a vida do feto é eticamente irrelevante. Vamos supor que o casal tem um problema de saúde que faz com que os seus filhos nasçam deficientes mas que se pode garantir que a criança será saudável se primeiro o casal se submeter a um tratamento simples, barato e com um risco menor do que o da gravidez. Parece-me aceitável dizer que é imoral terem filhos sem se tratarem primeiro e duvido que alguém fosse acusado de ignorante, confuso ou intolerante por sugerir tal coisa. O que está em causa, e que o autor do artigo (2) não compreendeu, não é que a criança seja tão deficiente que a sua vida nem valha a pena viver. É claro que é possível ter uma vida feliz com trissomia 21. Mas o importante é que é melhor ainda viver sem trissomia 21 e se essa alternativa não acarretar outros custos éticos será imoral não optar por ela.

Muitos dos que defendem a legalidade do aborto defendem também que a vida do feto não tem valor ético até certa data. Porque não pensa, não tem cérebro ou o que seja. Este é um ponto importante porque é difícil defender um direito incondicional de matar o feto se considerarmos que a sua vida conta. Mas se assumirmos que o feto é eticamente irrelevante, então o tratamento para a trissomia 21 pode perfeitamente consistir em abortar o feto deficiente para ter outro, saudável. É eticamente equivalente a tratar os pais e é precisamente o que fazem 95% dos casais portugueses quando o feto tem trissomia 21 (3).

Eu discordo de Dawkins porque discordo da premissa. Antes da concepção, os milhões de milhões de potenciais filhos estão em igualdade de circunstâncias e a concepção daquele em vez de qualquer outro depende de uma conjugação improvável de factores alheios à vontade dos pais. Nessa situação, o custo ético de impedir a concepção de um embrião deficiente é pequeno e compensado pela concepção de um embrião saudável. Mas com o feto em desenvolvimento, a decisão de o matar será a causa principal da perda da a sua vida toda e apenas um de muitos factores causais contribuindo para a concepção daquele irmão em particular que o irá substituir. A relação causal diferente entre a decisão e cada uma das consequências faz com que a perda da primeira vida tenha mais peso do que o ganho da vida que a substitui. É uma situação análoga à de matar uma pessoa para salvar outras que precisam de transplantes, por exemplo.

Isto não implica que abortar um feto com trissomia 21 deva ser ilegal. A lei só deve intervir quando a coação for o mal menor e, neste caso, impedir o aborto pela força da lei seria mais imoral do que o aborto em si. Na verdade, até admito que eu talvez cometesse essa imoralidade de abortar um feto com trissomia 21 porque sei o que criar filhos exige dos pais, mesmo quando são saudáveis, e a capacidade de distinguir entre o que é moral e o que é imoral não nos torna imunes ao egoísmo. No entanto, acho que Dawkins, e Peter Singer, não têm razão nisto. Não por serem ignorantes, nem por estarem confusos, nem sequer por apresentarem argumentos inválidos. Acontece simplesmente que é falsa a premissa de que a vida do feto não conta.

1- Guardian, Richard Dawkins: 'immoral' not to abort if foetus has Down's syndrome
2-The Daily Beast, Richard Dawkins Would Fail Philosophy 101
3-Diário Digital, Trissomia 21 tende a diminuir devido a abortos, dizem pais

sexta-feira, agosto 29, 2014

Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) está satisfeita com a nova taxa sobre a cópia privada. Não admira, porque boa parte dos milhões que o governo nos vai cobrar será “gerida” pela SPA. Mas o que lhes importa é a somente a defesa «de um princípio e de uma causa e não a defesa do lucro por parte de estruturas empresariais»(1). Apesar de 80% dos cinco milhões de euros que contam receber serem para pagar a empresas estrangeiras (2). Esta causa é alargar «a cobrança dos direitos nesta área à esfera digital», «satisfazer os direitos dos autores» e lutar pelo «prestígio cultural» do país. No entanto, nenhum destes termos – “direitos”, “autores” e “cultura” – significa o que devia significar.

Os direitos são valores morais que ponderamos para decidir o que é legítimo cada um fazer. Por exemplo, o direito de nos exprimirmos com liberdade torna ilegítimo censurar mas, como cada um também tem direito à sua vida e autonomia, a liberdade de expressão não autoriza ameaçar ou burlar os outros. A “cobrança dos direitos” é uma noção incoerente, porque direitos não são algo que se cobre, mas sugere haver um direito moral suficientemente importante para justificar termos de pagar uma taxa à SPA quando compramos equipamento digital. Legalmente, esta taxa fundamenta-se em três premissas: que deve haver um monopólio sobre a cópia; que há uma excepção a esse monopólio por ser legalmente permitido copiar para uso privado; e que essa excepção causa um prejuízo que tem de ser compensado pela taxa. Muita gente tem protestado contra os factos das duas últimas premissas. A proibição de contornar o DRM elimina, na prática, a cópia legal sem autorização e os suportes digitais servem também para guardar as criações do comprador e as cópias legais compradas aos detentores dos monopólios e, por isso, o benefício é maior do que o prejuízo. No entanto, a primeira premissa tem ficado fora desta discussão apesar de ser a mais fundamental e a que presume um direito moral.

Vamos supor que a Ana escreveu um poema e vendeu uma cópia do ficheiro ao Bruno. O Bruno agora quer dar uma cópia do ficheiro à Carla mas a Ana opõe-se porque quer ganhar mais dinheiro vendendo também à Carla. A questão é se, ponderando os direitos de todos, será legítimo dar à Ana o poder legal de impedir o Bruno de dar uma cópia do ficheiro à Carla. Por um lado, o Bruno e a Carla têm o direito de comunicar entre si sem interferência de terceiros, o Bruno tem direitos de propriedade sobre o seu computador e o direito de partilhar o que é seu, e a Carla tem o direito de aceder à cultura, entre outros. Por outro lado, o único interesse que a Ana tem em jogo é o de vender o ficheiro à Carla, o que nem sequer é um direito da Ana porque depende da vontade da Carla. Claramente, não há, do lado da Ana, direitos suficientemente importantes para justificar a restrição dos direitos do Bruno, da Carla e de todas as outras pessoas que vivam naquela jurisdição. O problema fundamental da “cobrança de direitos” é que o monopólio sobre a cópia não é um direito moral. Pelo contrário. Da forma como se tem estendido à esfera pessoal, é uma violação sistemática de direitos morais importantes*.

Quando a SPA alega que a taxa vai “satisfazer os direitos dos autores”, também o termo “autores” está deturpado. Os beneficiários da taxa são os detentores dos monopólios e são beneficiários em virtude apenas de deterem esses monopólios. O resto é irrelevante. Por isso, a maior parte do dinheiro reverte para empresas e não para autores, outra parte vai para produtores e executantes e a pequena fatia que calha aos autores não lhes cabe por serem autores. Autores somos todos, por cada email, fotografia, vídeo, comentário ou post que criamos, e não recebemos nada por isso. Os “autores” que esta taxa beneficia são simplesmente as pessoas que fazem negócio a vender cópias de obras, aproveitando um monopólio legal.

Finalmente, a “cultura” que esta taxa pretende proteger e prestigiar não é a cultura no sentido do conhecimento, hábitos, língua, valores e obras que uma comunidade partilha em comum. O Português, Os Lusíadas, o Mosteiro dos Jerónimos e o Natal fazem parte da nossa cultura, num bolo enorme que também inclui a migalha onde estão os livros do José Jorge Letria e as músicas do Pedro Abrunhosa. Mas o que a SPA chama “cultura” é apenas essa migalha de obras cuja cópia é restringida por lei e que, precisamente por serem de distribuição restrita, contribuem muito menos para a cultura do que se as pudéssemos partilhar e transformar livremente. Cultura não é o que se vende nas lojas ou se guarda na gaveta. É o que se aprende, ensina e partilha livremente entre todos. Confundir negócio com cultura é outra peça central na defesa dos monopólios sobre a cópia. Por exemplo, a Ana Rita Guerra escreveu que, por causa das inovações tecnológicas, «Há que encontrar uma nova forma de monetizar o trabalho intelectual e artístico» (3). É verdade que a tecnologia força mudanças nos modelos de negócio. Mas isso é um problema de quem faz negócio e não tem nada que ver com cultura.

A propaganda do copyright depende totalmente destas deturpações. Por isso, quando os ouvirem falar de “direitos”, lembrem-se de que vos exigem o sacrifício de direitos muito mais importantes do que o “direito” de cobrar taxas ou vender discos. Quando vos falarem dos “autores”, lembrem-se de que autores somos todos nós e não apenas quem faz negócio com o monopólio da cópia. E quando vos disserem que é para proteger a “cultura”, lembrem-se de que a cultura não é um negócio e que não se protege restringindo a distribuição. Pelo contrário, a cultura só o é quando é de todos e quando todos são livres de usufruir dela e de a usar para criar mais cultura.

* A situação seria diferente se o Bruno quisesse vender o ficheiro à Carla. Nesse caso, estaria em jogo apenas o conflito entre o negócio do Bruno e o negócio da Ana, pelo que podia ser legítimo dar prioridade à Ana durante um tempo limitado. É por isso que não vejo problemas fundamentais na concessão de alguns monopólios desde que sejam exclusivamente para fins comerciais.

1- SPA, SPA considera positivo o novo diploma sobre a cópia privada
2- SPA, Lei da Cópia Privada 2014
3- Dinheiro Vivo, Lei da cópia privada. O drama, a tragédia, o horror

segunda-feira, agosto 25, 2014

A refutação.

É estranho tanta gente alegar que a ciência não pode refutar a hipótese de Deus existir. Durante séculos, a ciência desbastou esse Deus que inundava o mundo inteiro e transformava rios em sangue até já só restar um apanhado homeopático de suposições metafísicas. Comparando o que sobra com o que era, este deus foi mais refutado do que qualquer astrologia, bruxaria ou alquimia. Por isso, tem-me intrigado que tanta gente inteligente defenda algo tão absurdo. Há dias, o Domingos Faria deu-me uma dica importante para identificar o problema. O Domingos explicou-me que a ciência não pode refutar a hipótese de Deus existir porque não se pode criar um argumento dedutivamente válido que conclua “Deus não existe” a partir da premissa de que “X é uma teoria científica verdadeira”, qualquer que seja a teoria X. É uma justificação excelente porque mostra claramente onde o Domingos se está a enganar.

Primeiro, vamos identificar uma condição necessária para aplicar a regra do Domingos. Um argumento é dedutivamente válido se a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. Por exemplo, “é impossível que um polícia seja desonesto e o Sousa é polícia; portanto, o Sousa só pode ser honesto”. Este argumento pode não ser sólido mas é válido porque, se o Sousa não for honesto, então uma das premissas tem de ser falsa. E o argumento continua válido mesmo que exista um deus omnipotente capaz de tornar o Sousa num polícia desonesto. Se esse deus existir, então a primeira premissa será falsa, porque será possível um polícia ser desonesto, mas o argumento continuará válido porque a verdade das premissas continuaria a garantir a verdade da conclusão.

Acontece o mesmo com a teoria da relatividade e os tomates. A teoria da relatividade diz que é impossível transportar um tomate da Terra até Marte em menos de três minutos. Assim, é válido este argumento: “A teoria da relatividade é verdadeira; portanto, é impossível existir um ser capaz de levar um tomate da Terra até Marte em menos de três minutos”. Se o Deus do Domingos é omnipotente, então existe um argumento válido que parte de uma teoria científica e conclui que esse deus não existe. Tal como no exemplo anterior, o argumento pode não ser sólido. Mas, se existir um Deus capaz do milagre do tomate, então a teoria da relatividade é falsa. Na verdade, todas as teorias científicas modernas serão falsas se existir um Deus capaz de fazer milagres. Nem precisa de os fazer, baste ser possível que os faça.

Mas vamos assumir que o Deus do Domingos não tem a capacidade de fazer nada que uma teoria científica diga ser impossível e que, por isso, não há argumentos dedutivamente válidos que permitam refutar a tese teísta partindo de uma teoria científica. É de notar, no entanto, que este deus é muito diferente do Deus que os teístas propõem, sendo mais impotente do que omnipotente. Mas ignoremos esse detalhe e avencemos para o problema seguinte.

A validade dedutiva de um argumento é útil apenas quando as proposições em causa cobrem todas as possibilidades. Na prática, é difícil que isto aconteça, podendo-se invocar hipóteses auxiliares que tornam o argumento inválido. Por exemplo, em 1903 Blondot afirmou ter descoberto uma nova radiação, os raios N, que não se conseguia fotografar mas que vários físicos franceses alegavam ser visível usando os prismas adequados. No entanto, a maioria dos investigadores não conseguia observar a alegada radiação e, durante uma demonstração, Robert Wood retirou disfarçadamente o prisma do aparelho mas nenhum dos peritos franceses notou. Todos continuaram a dizer que viam os raios N. Nessa altura, não havia qualquer teoria científica de onde se pudesse formar um argumento dedutivamente válido que refutasse a existência dos raios N. Era possível invocar hipóteses adicionais explicando quaisquer resultados e Blondot continuou a insistir que os raios N eram verdadeiros. Mas a comunidade científica teve razão em descartar esta hipótese porque era mais plausível tratar-se de um problema cognitivo de alguns investigadores do que existir mesmo uma radiação tão misteriosa e mal comportada.

Em geral, a refutação científica de uma hipótese não resulta de um argumento dedutivamente válido. Isso só é possível em casos extremos, como o da hipótese de existir um ser omnipotente, que é inconsistente com tudo o que a ciência diz ser impossível. Mais comum é a verdade das premissas não poder garantir absolutamente a verdade da conclusão por se estar a lidar com informação incompleta. No entanto, pode haver uma hipótese alternativa com mais fundamento. Por exemplo, não se pode refutar dedutivamente a existência do Homem Aranha a partir de qualquer teoria científica. Há sempre margem para bloquear a conclusão com hipóteses auxiliares. No entanto, e infelizmente, esta hipótese pode ser descartada pela ciência porque a hipótese mais plausível é a do Homem Aranha ser um personagem fictício. Se o Homem Aranha fosse real já teria protestado contra a injustiça absurda de o deixarem fora dos filmes dos Vingadores só porque a Sony tem os direitos exclusivos da adaptação cinematográfica.

Em suma, a tese do Domingos só se aplica a um deus que não possa fazer nada contrário às teorias científicas porque a mera possibilidade de o fazer já é inconsistente com o que a ciência diz ser impossível. Além disso, o Domingos presume que a ciência só refuta hipóteses por argumentos dedutivamente válidos, o que é falso. A ciência refuta hipóteses, principalmente, encontrando alternativas mais fundamentadas. Foi assim que se descartou o calórico, o flogisto, a alquimia e tantas outras hipóteses que deram lugar a alternativas melhores. E é também assim que a ciência descarta a hipótese de Deus existir em favor da alternativa mais plausível de que este é apenas mais um dos muitos deuses que a nossa espécie tem inventado.

1- Wikipedia, N ray.

domingo, agosto 24, 2014

Treta da semana (passada): maus professores.

Alexandre Homem Cristo, «mestre em ciência política e especialista em políticas de educação»(1), concluiu que «Temos maus professores» e que «São alguns dos piores das gerações do presente que estão nas escolas a preparar as gerações do futuro.»(2) A metodologia é fascinante. Para avaliar cerca de cem mil professores do quadro, Cristo considerou os resultados que dez mil professores contratados obtiveram numa prova para se candidatarem a umas centenas de vagas (3). E este é um dos problemas menores da análise.

Com cem mil profissionais, seja do que for, é inevitável que uns sejam maus. Eu até encontrei alguns. Por exemplo, uma professora que tive no sétimo ano ensinou-nos que os animais nos pólos são brancos para reflectir a luz e baixar a temperatura ambiente. Quando eu perguntei se não seria para se confundirem com a neve descartou a minha pergunta e seguiu com a matéria. Essa senhora era má professora, mas o problema dela não era a ortografia, a interpretação de ditos populares ou sequer ter dito aquele disparate. Também tive professores que se baralhavam e diziam coisas erradas mas eram bons professores porque corrigiam os erros e ajudavam os alunos a aprender. E tive uma professora no mestrado que sabia a matéria mas dava as aulas lendo devagarinho umas transparências escritas à mão. A ortografia, que me lembre, era perfeita, mas aquelas aulas eram piores que estudar sozinho, com sono e em câmara lenta.

O que quero dizer com isto é que a diferença entre um bom professor e um mau professor não se mede pelos factores que Cristo considerou. Ele concluiu que os professores são maus porque «14% reprovou [...] 63% cometeu erros ortográficos (15% fez 5 ou mais erros) [...] 67% cometeu erros de pontuação» e «quem hoje frequenta os cursos da área da educação são, em média, os que têm níveis socioeconómicos mais baixos». No total, eu tive aulas com cerca de duzentos professores, uma amostra próxima do número de vagas a que concorrem os examinados nesta prova e mais representativa do que a de Cristo porque não se restringiu apenas a professores contratados. Mas nunca encontrei um professor que fosse mau por dar erros ortográficos, por dar erros de pontuação ou por ser pobre. Os maus professores foram sempre aqueles que não tinham aptidão para o ensino. O resto nunca fez tanta diferença.

Esta aptidão é uma combinação variável de características difíceis de definir e que depende da idade dos alunos, da matéria a leccionar e da personalidade do professor. Inclui a empatia necessária para compreender as dúvidas dos alunos porque, além da matéria, o professor precisa também de perceber que obstáculos cada aluno está a encontrar. Inclui a simpatia, porque aprender exige esforço e se o professor é chato ou irritante é difícil que os alunos lhe prestem atenção. Inclui a capacidade de se explicar com clareza, o que não implica uma prosa polida e gramaticalmente correcta. Há professores que conseguem melhores resultados com um “Faz assim, pá!” do que outros com a verbiagem mais erudita. Acima de tudo, exige que o professor crie uma relação de colaboração com os alunos. Por muito que saiba, um professor sem esta aptidão é menos útil do que o livro. Um problema da análise de Cristo, e da abordagem do Ministério, é que nenhuma das características que distinguem entre bons e maus professores pode ser aferida cotando erros ortográficos e perguntas da treta numa prova escrita.

Cristo diz que temos maus professores porque «é fácil tornar-se professor». A julgar pelo texto dele e pela proporção entre candidatos e vagas, suspeito que seja mais fácil tornar-se «especialista em políticas de educação» do que professor. Seja como for, para seleccionar os melhores professores é preciso avaliar as aulas e isso é que é difícil. Com cem mil professores leccionando matérias diferentes a alunos muito diferentes, seria preciso um corpo grande de avaliadores capazes não só de avaliar cada aula mas também de uniformizar os critérios para seriar professores leccionando em condições diferentes. Não é uma tarefa viável. Se o objectivo for melhorar a educação e não apenas cortar nos serviços públicos, tem de se atacar primeiro onde compensa mais. E, neste momento, o que daria mais proveito com menos custo seria acabar com as avaliações e com a propaganda contra os professores. A burocracia das avaliações consome recursos preciosos, porque são professores a tratar da papelada, e não se avalia o mais importante, que é a qualidade das aulas. O efeito da avaliação que agora temos é motivar os professores a dispersar-se por tretas em detrimento daquilo que interessa. Além disso, o problema principal do ensino em Portugal não é a qualidade dos professores. Antes de alguém propor “políticas de educação” devia passar umas horas com os alunos do ensino básico para perceber a percentagem assustadora de crianças desprovidas da educação mínima necessária para estar numa sala de aula. Estas crianças resistem a qualquer tentativa de ensino, gabando-se até do suposto feito de não aprender nada, e dificultam a aprendizagem às restantes. O expediente político de fazer dos professores bode expiatório não só lhes retira autoridade no combate a este problema como faz muitos pais pensarem que ser “encarregado de educação” é como ser o encarregado da obra, que nada faz senão mandar fazer.

Para termos melhores professores era preciso uma avaliação correcta, em vez da fantochada de avaliar por critérios sem correlação com a aptidão para o ensino, e era preciso a profissão atrair melhores profissionais do que aqueles que já a exercem. Com as condições que temos, isto exigiria um investimento enorme em avaliadores e salários. Neste momento, o mais rentável é melhorar as condições de trabalho dos professores. Quanto mais fácil for ensinar melhor será o ensino. E isso pode-se começar já a fazer, a custo zero, simplesmente descartando as medidas parvas dos últimos anos. É que mesmo que alguns professores sejam maus, os maiores estragos têm sido obra dos “especialistas em políticas educativas”.

1- Expresso, Não temos uma Educação com futuro
2- Observador, Temos maus professores.
3- Parlamento Global, Temos maus especialistas, Alexandre Homem Cristo?

quarta-feira, agosto 20, 2014

Feminismos.

Há umas semanas, Richard Dawkins tentou exemplificar o problema de se deixar as emoções toldarem o raciocínio. No Twitter, escreveu «X é mau. Y é pior. Se alguém achar que isto é uma defesa de X, que se vá embora e não volte enquanto não aprender a pensar logicamente»(1). Depois ilustrou a generalização com a violação, substituindo X por “date rape” e Y por violação por um estranho. Infelizmente, o exemplo foi perfeito demais.

A resposta emocional foi tão forte que muita gente simplesmente ignorou o argumento de Dawkins, que era acerca da lógica e não da violação, e considerou apenas a alegação de que «Date rape is bad. Stranger rape at knifepoint is worse». Além disso, mesmo pessoas que, normalmente, tentam abordar os problemas de forma racional, optaram por proclamar a sua indignação com Dawkins por este «chegar ao ponto de insinuar que a reacção emocional dele a um tema muitas vezes emocionalmente destrutivo, prevalece sobre a de qualquer pessoa que possa discordar. Não se pode comparar violações numa escala. Ponto final.»(2)

Além de falharem o alvo, devia também ser fácil perceber que a premissa de não se poder comparar violações tem de ser falsa. Em qualquer outro problema ético ou jurídico temos de fazer comparações mesmo havendo sempre aspectos subjectivos. Se em vez de violação for agressão, burla, homicídio, furto, assalto ou ataque terrorista é óbvio que se pode dizer que há casos piores do que outros. Por outro lado, o próprio conceito moral e jurídico de violação exige essa comparação para se traçar a linha que separa o tolerável daquilo que merece cadeia. Por exemplo, exigir sexo ameaçando terminar o namoro é desprezível mas não deve ser ilegal. Coagir uma relação sexual ameaçando despedimento ou despejo já pode justificar-se constituir crime e se a ameaça for de um tiro ou uma facada será um crime ainda mais grave. Não se pode legislar ou regular o comportamento sem avaliar aspectos subjectivos numa escala onde se marque os limites a partir dos quais os actos devam ser reprimidos.

Individualmente, por muito que cada um se tente orientar por ideais de cepticismo e racionalidade, encontrará sempre temas em que lhe é mais difícil ser racional. Por isso, individualmente, não me preocupa cada uma destas respostas emotivas ao que Dawkins escreveu, mesmo vindas de cépticos. As pessoas são mesmo assim. Uma vantagem importante das comunidades de cépticos, ateus e demais racionalistas é a facilidade com que criticam as ideias dos outros e a naturalidade com que aceitam essas críticas. Isto permite colmatar colectivamente as falhas individuais, corrigindo no grupo o que é difícil ao indivíduo corrigir. Mas, neste caso, o mecanismo de correcção colectiva está a ser afogado pelo coro de “misoginia” e “sexismo” de quem defende o feminismo errado.

Há um feminismo assente na ideia de que, independentemente das diferenças entre homens e mulheres, em questões éticas, morais ou jurídicas é tudo gente com direitos iguais que o sexo não serve para discriminar. Esse feminismo conquistou muito de bom em algumas partes do mundo e é preciso mantê-lo vivo para continuar o trabalho e levar esses avanços onde ainda não chegaram. O feminismo que se indigna com Dawkins é o contrário. É o feminismo dos “women's issues”, dos direitos da mulher em vez dos direitos da pessoa e da ideia de que só as mulheres podem decidir sobre esses direitos. Este feminismo, além de injusto, acaba por prejudicar até as mulheres. Por exemplo, o primeiro feminismo contribuiu para se aceitar, cada vez mais, que pai e mãe são igualmente responsáveis pela gravidez e pelos filhos e que a sociedade deve zelar pela maternidade e paternidade. Isto tem ajudado a aliviar pressões económicas sobre as grávidas e a reduzir a discriminação nos contratos de trabalho. O outro feminismo fez dar à mulher o direito legal de abortar sempre que queira. Além de descurar os direitos do abortado isto tornou a gravidez num problema exclusivo da mulher, invertendo boa parte do que o outro feminismo conseguiu. O resultado é o aborto de um quarto dos fetos em Portugal (3) e é pouco credível que vinte mil abortos por ano se devam a uma opção livre, sem aquelas pressões sociais e económicas que um feminismo a sério devia combater.

A tese de que «Não se pode comparar violações numa escala. Ponto final.» também rema contra o progresso. A moral tem evoluído principalmente tornando a escala cada vez mais inclusiva e universal. No início só lá estavam homens com influência e quem violasse uma mulher tinha de saldar contas com o pai ou com o marido. Gradualmente, foi-se incluindo camponeses, escravos, estrangeiros, mulheres, crianças e agora até se tenta estender a escala a outras espécies. Graças ao feminismo da igualdade de direitos, em alguns países as mulheres não só estão na escala a par com os homens como contribuem para a definir com o seu voto e pela participação cívica. Mas uma sociedade justa exige que se possa debater livremente essa escala e que se considere os interesses de todos quando se decide onde separar o tolerável do proibido.

O feminismo emotivo, indignado, que defende que as mulheres têm uma escala à parte, que só as mulheres podem avaliar certas coisas e que é machismo opinar sem ovários não só reforça preconceitos menos lisonjeiros acerca do feminismo e do feminino como arrisca desfazer o progresso que o feminismo mais fundamentado tem conseguido. O progresso moral não se consegue lutando por direitos de certos grupos sem enquadrar consensualmente esses direitos nos direitos de todos. Para isso, é preciso mais capacidade para discutir os problemas de forma objectiva do que de gritar que se está ofendido ou indignado.

1- Richard Dawkins, Response to a bizarre twitter storm
2- Amy Roth, On Richard Dawkins Being a Liability to Atheism
3- Aproximadamente sessenta mil nascimentos por ano e vinte mil abortos.

domingo, agosto 17, 2014

Treta da semana (passada): a patente.

A notícia de que o governo dos EUA tem “a patente do Ébola” tem feito furor nos sites conspiracionistas. «Será esta a confirmação do que corre pela Internet sobre o vírus ser fabricado, plantado e cuidadosamente testado para o controlo da população mundial?» (1). Será? A pergunta parece ser retórica, mas o artigo adianta que «a razão pela qual os EUA reclamam os corpos das vítimas de Ébola para que sejam transportados para território americano (alegadamente de forma voluntária) prende-se com a possibilidade de estas vítimas conterem propriedade intelectual americana.» Aparentemente, os EUA não só querem matar uma boa parte da população mundial como também querem recolher todos os cadáveres. Verdadeiramente diabólico. Só falta venderem Soylent Green.

Há uma explicação alternativa, menos apelativa para os aficionados da conspiração. A patente cobre vários aspectos do isolamento, purificação, sequenciação, replicação, detecção e transformação daquela estirpe do vírus, eventualmente com vista a produzir uma vacina (2). Este trabalho exigiu muito investimento, pago pelos contribuintes nos EUA, não só pela tarefa em si mas também porque trabalhar com estes vírus requer mais cuidados do que um bico de Bunsen e uma bata branca. Sendo a legislação das patentes o que é, a forma mais eficiente de impedir que uma empresa privada patenteie isto tudo é ser o CDC a patenteá-lo primeiro. Caso contrário, teriam de demonstrar em tribunal terem sido os primeiros, um litígio demorado, dispendioso e sempre incerto. Desta forma o governo dos EUA pode divulgar a informação e licenciar os procedimentos e o uso das estirpes depositadas no CDC sem correr o risco de um privado ficar com o monopólio. A legislação das patentes está tão mal feita que uma boa parte das patentes submetidas visa apenas impedir que outros patenteiem o mesmo (3).

A conspiração real aqui, que não é nada secreta, é o esforço dos detentores de “propriedade intelectual” para comprar aos políticos leis cada vez mais abrangentes. Não é tão bombástica quanto as “revelações” fictícias destes sites mas devia preocupar-nos mais. A possibilidade de patentear cada vez mais coisas, incluindo algoritmos, organismos e sequências genéticas, está a drenar imensos recursos à economia e a dificultar a inovação (4), com consequências graves quando se trata de terapias ou vacinas (5).

A patente devia ser um acordo, para benefício mútuo, celebrado entre a sociedade e o inventor. Um exemplo histórico disto foi o monopólio que Henrique VI concedeu em 1449 a João de Utynam. Em troca de ensinar a sua técnica de fabrico de vidro aos artesãos ingleses, o inventor ficou com o direito exclusivo de explorar comercialmente esse processo no Reino Unido durante vinte anos (6). Conceder protecção em troca da revelação de um potencial segredo industrial é a justificação fundamental das patentes, que exigem uma descrição detalhada e pública da invenção protegida. No entanto, ao conceder patentes sobre coisas como a sequência de um vírus, um algoritmo ou o gesto de deslizar o dedo para activar o telemóvel (7), o sistema que agora temos afastou-se muito do seu propósito original.

Um Estado ter de conceder a si próprio um monopólio legal sobre investigação paga com fundos públicos para evitar que se torne exclusiva de alguma empresa privada demonstra claramente que o sistema de patentes se tornou uma aberração. É este problema que devíamos atacar. Quer nas patentes quer no copyright, fomo-nos gradualmente afastando da ideia do monopólio concedido para beneficiar a sociedade. Por exemplo, conceder uma patente em troca da revelação de um processo que de outra forma ficaria secreto ou o direito exclusivo de imprimir em papel uma obra que sem esse monopólio ninguém iria imprimir e distribuir. Em vez disso, prevalece agora a premissa de que as ideias são propriedade de alguém – autor ou gestor – e que são os direitos de propriedade que justificam os monopólios mesmo à custa dos direitos de terceiros.

Esta patente sobre a sequência, transformação e diagnóstico do vírus não confirma o «que corre pela Internet sobre o vírus ser fabricado, plantado e cuidadosamente testado para o controlo da população mundial». Mas o sistema que permite patentear estas coisas está a violar os direitos de muita gente e a causar mortes de outra forma evitáveis.

1- Portugal Mundial, Porque o governo americano é detentor da patente do Ébola?(via Facebook)
2- Google, Human ebola virus species and compositions and methods thereof
3- Wikipedia, Defensive Patent Aggregation
4- Por exemplo, «Last year [2011], for the first time, spending by Apple and Google on patent lawsuits and unusually big-dollar patent purchases exceeded spending on research and development of new products, according to public filings.», New York Times, The Patent, Used as a Sword 5- Por exemplo, MERS watch, Dutch Patent Grab Blocks MERS Vaccine Research
6- IP & Science, The History of Patents
7- USPTO, Unlocking a device by performing gestures on an unlock image