sábado, maio 03, 2014

Austeridade, parte 4: pagar o sector público.

Subjacente às justificações para a austeridade tem estado a ideia de que o sector privado produz riqueza que depois o sector público gasta e, não havendo dinheiro, é essa despesa que temos de cortar. Nomeadamente, pensões, hospitais, escolas e luxos desses, deixando apenas o essencial como submarinos, a nacionalização de bancos falidos e os contratos de associação com colégios privados. Além das aldrabices do governo no alegado “corte de gorduras”, o princípio em si está fundamentalmente errado.

Se por “riqueza” nos referirmos à criação de bens ou serviços úteis, o sector público é tão ou mais produtivo que o sector privado. Podem alegar ser ineficiente manter centros de saúde ou escolas em regiões com pouca população, ou que os funcionários públicos trabalham pouco, mas no sector privado também se faz muita coisa inútil. Imaginem o transtorno que seria uma semana de greve dos vendedores porta-a-porta, dos consultores de imagem, de barbeiros, designers de moda, cantores pimba ou futebolistas. Mesmo olhando apenas para circulação de dinheiro, é preciso frisar que todo o dinheiro gasto pelo sector público vai para o sector privado. A propaganda que pinta o sector público como um parasita da economia privada é falsa. A forma mais correcta de ver a relação entre estes dois lados da economia é pensando na circulação do dinheiro como um incentivo ao trabalho e na diferença entre o sector público e o privado como estando apenas no nível em que é decidido como este incentivo é usado. No sector privado, o indivíduo que tem dinheiro incentiva o trabalho que lhe der jeito. No sector público – a menos de tachos e aldrabices – o dinheiro é posto a circular para benefício de quem precisa em vez de quem tem. Mas como o dinheiro circula por todo o lado e a economia funciona como um todo é enganador pensar no corte de uma parte como uma “poupança”.

Resta, no entanto, o problema de como o sector público pode obter dinheiro para incentivar o serviço público. Pode fazê-lo por três vias: cobrando impostos; pedindo empréstimos a investidores privados; ou criando dinheiro. Uma diferença fundamental entre o sector público e o privado é que todo o dinheiro que existe é criado no sector público. No caso do Euro, os políticos decidiram que o BCE só pode emprestar o dinheiro que inventa aos bancos privados, mas esta opção de não fazer esse dinheiro circular primeiro por hospitais ou escolas continua a ser uma opção política. Basta haver vontade para que o BCE se torne um credor de último recurso dos Estados da UE, como é norma em qualquer banco central.

Se bem que seja má ideia o Estado criar todo dinheiro de que precisa e dispensar empréstimos e impostos, é importante perceber porquê. É má ideia porque se a quantidade de dinheiro crescer mais depressa do que cresce a produção de bens e serviços o dinheiro passa a valer cada vez menos. É a inflação, uma coisa boa em quantidades moderadas – o BCE tem como mandato mantê-la próximo dos 2% ao ano, ou seja, de criar dinheiro apenas 2% mais depressa do que cresce a economia – mas que pode ser um problema se for excessiva. E é importante perceber porque é que a criação de dinheiro não é uma solução mágica para todos os problemas para compreender que, em rigor, os impostos e a dívida pública não servem para financiar o Estado. O Estado podia financiar-se criando dinheiro. A função dos impostos e da dívida pública é apenas a de controlar a inflação retirando dinheiro à economia privada para compensar o dinheiro que o Estado lhe acrescenta com a despesa pública. Ou seja, servem para manter o valor do dinheiro. Perceber isto é fundamental para compreender os interesses por trás da austeridade.

As contas públicas dependem da combinação de quatro factores: a despesa do Estado, os impostos, a dívida pública e a inflação. Reduzir a despesa do Estado prejudica principalmente quem tem menos, não só directamente por diminuir a redistribuição nas prestações sociais mas também indirectamente pelo aumento do desemprego e consequente redução dos salários. O aumento dos impostos tanto pode afectar mais os ricos ou os remediados conforme forem impostos progressivos ou não. O aumento da dívida geralmente favorece os ricos, a menos que haja grandes reestruturações e se passe o risco a quem cobrou por ele. A inflação é a única medida que claramente prejudica mais quem tem muito dinheiro do que quem vive do seu trabalho, porque quando os preços sobem o preço do trabalho também sobe. Só o dinheiro em caixa e as dívidas é que desvalorizam.

Quando percebemos que, a nível europeu, há uma margem considerável para ajustar o peso relativo destes quatro mecanismos compreendemos como as medidas que estão a ser tomadas estão enviesadas para favorecer quem mais tem. Temos austeridade, temos aumentos no IVA enquanto se negoceia reduções no IRC, temos aumento da dívida pública que ninguém quer reestruturar e continua a haver um controlo apertado sobre a inflação mesmo contra a recomendação do FMI (1). Em vez de se tentar dividir o esforço de forma equitativa, com a aldrabice de que “não há dinheiro” vão sacrificando quem tem menos em benefício de quem já tem tudo. A austeridade não é um mal inevitável. Não é sequer um mal menor. É uma burla.

1- Krugman, Euphemistic At The IMF



Episódios anteriores: Parte 1, Parte 2 e Parte 3

6 comentários:

  1. Olá,

    Concordo em parte consigo embora talvez por razões diferentes. Percebo do seu comentário que as nossas visões são diferentes, mas gosto muito pouco da ‘guerra’ que em Portugal se faz entre contribuintes líquidos e receptores líquidos, ou seja, entre funcionários públicos e do privado ou se calhar até entre qualquer trabalhador e pensionista. Não me parece que ter este tipo de estupidez na cabeça ajude ao que quer que seja. É importante não olhar apenas para o nosso umbigo.

    Passando a analisar o seu comentário, o primeiro parágrafo parece conter uma premissa falsa: A de que austeridade significa redução de despesa pública. Austeridade parece-me significar apenas diminuição do défice. E a diminuição do défice tem acontecido, e ocorre em geral, por aumento de impostos e redução de salários, pensões, etc. Quanto a contratos de associação, eu nem sei o que são, quanto a nacionalizações e submarinos completamente de acordo.

    Depois notar que riqueza é obviamente criação de bens e servições. E não há nada inútil, público ou privado, se o consumidor adquirir esses serviços de livre vontade. De seguida diz: “No sector privado, o indivíduo que tem dinheiro incentiva o trabalho que lhe der jeito”. É verdade. Mas o que é que lhe dá jeito? O que lhe dá dinheiro. Como obtém dinheiro? Se o consumidor comprar. Então o que lhe dá jeito é o que dá jeito ao consumidor. Excelente! Há é o problema de alguns não poderem pagar o valor de mercado!
    Sobre o que diz do setor público ser para quem precisa, isso é em parte verdade, mas em parte é apenas para todos. O que é bom diga-se. Se as coisas funcionarem bem todos recebem, ricos ou pobres, do estado justiça e segurança. De resto concordo, tem que haver uma componente de redistribuição. Mas essa é bem feita? Eu acho que não. O que seria justo? Para mim, e sendo um pouco mais técnico, considerando que a distribuição de rendimentos é bem aproximada por uma distribuição de poisson, escolheríamos os mais ricos a pagarem uma parte para os mais pobres. Quem são os mais ricos, os mais pobres e quanto seria transferido seria apenas uma função dos parâmetros da distribuição. Assim, não considerando apenas um ou outro caso específico, a classe média não seria em geral taxada nem receberia ‘benefícios’. Quase pela definição de classe média estes serão a maioria e se a classe média não consegue pagar por algum serviço o estado também não o conseguirá providenciar a esta maioria uma vez que a receita estatal é proveniente dos seus cidadãos. Mas quem decide eleições? A maioria. Milton Friedman chamava a isto a lei de Director: Os ricos e os pobres pagam para a classe média ter benefícios. Eu posso dar um exemplo: Transportes públicos. São e foram altamente deficitários. Mesmo antes da ‘swapada’. O preço do bilhete deveria ser superior. Há muita gente (eu incluído) que consegue pagar um preço superior. Há muita gente que é professor catedrático ou que trabalha em empresas enormes que utilizam transporte públicos. Todos eles pagam o mesmo que o Sr. João que tem dificuldades em sustentar-se a si e aos seus. Isto porque o prestador do serviço é o estado e cobra o mesmo preço a todos. Eu acho preferível que o estado garanta o serviço ao Sr. João mesmo que o prestador seja privado e cobre preço mais alto aos outros. Havia (ou ainda há, não sei) gente que tinha desconto só por ser estudante.

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  2. Isto já vai longo (tive que submeter em duas partes) e comento apenas a seguinte afirmação: “A inflação é a única medida que claramente prejudica mais quem tem muito dinheiro do que quem vive do seu trabalho”. Não percebo porquê a não ser que considere funcionários públicos e pensionistas como pessoas que não vivem do seu trabalho (para além de considerar pessoas ricas como pessoas que não vivem do seu trabalho ou achar que estas também não ganham mais nos seus negócios pelos preços aumentarem). Além disso quem tem parte dos seus rendimentos noutra moeda tem parte dos seus rendimentos a não serem afetados pela inflação. Quem é que faz negócios noutra moeda para não ser afetado? O rico ou o pobre? Além disso como você disse as dívidas são alteradas o que é um desincentivo ao investimento o que pode afetar essencialmente os mais pobres (o mesmo é válido para a deflação).

    Abraço e continuação de bons comentários,

    Pedro

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  3. Pedro,

    Obrigado pelos comentários interessantes. Discordo, mas parte do interesse vem mesmo daí :)

    «A de que austeridade significa redução de despesa pública. Austeridade parece-me significar apenas diminuição do défice. E a diminuição do défice tem acontecido, e ocorre em geral, por aumento de impostos e redução de salários, pensões, etc.»

    A austeridade não é mera redução do défice. É especificamente a redução do défice pela redução da despesa. Por exemplo, se um governo reduzir o défice recorrendo ao banco central para lhe dar empréstimos a juros muito baixos isto aumenta o PIB nominal (porque esse dinheiro será gasto) o que reduz o défice em proporção ao PIB à custa da inflação (porque reduz o peso dos encargos com empréstimos anteriores). Mas essa via de redução do défice não é austeridade.

    «E não há nada inútil, público ou privado, se o consumidor adquirir esses serviços de livre vontade.»

    Não é bem verdade. A utilidade dos bens e serviços é um contínuo. Não são todos igualmente úteis. Quando temos pouco dinheiro temos de optar por aqueles que têm mais utilidade. Comida, abrigo, medicamentos, por exemplo. Quando temos muito dinheiro e temos garantidos os mais necessários podemos gastar noutras coisas. Torneiras de ouro, relógios com diamantes, jardineiros e conselheiros de imagem.

    Um problema no sector privado é que os serviços e bens que são criados servem principalmente quem tem mais dinheiro, quando é quem tem mais dinheiro que tende a canalizar a maior parte do dinheiro para bens e serviços de pouca utilidade, visto já ter garantidos os mais úteis.

    Isto quer dizer que se medirmos a produtividade em utilidade veremos que o sector público é muito mais produtivo. É certo que um iate ou um colar de diamantes custam muito mais dinheiro do que um camião de vacinas, mas a vacinação é muito mais útil do que os colares de diamantes.

    «Sobre o que diz do setor público ser para quem precisa, isso é em parte verdade, mas em parte é apenas para todos.»

    Sim, concordo.

    «Para mim, e sendo um pouco mais técnico, considerando que a distribuição de rendimentos é bem aproximada por uma distribuição de poisson, escolheríamos os mais ricos a pagarem uma parte para os mais pobres. Quem são os mais ricos, os mais pobres e quanto seria transferido seria apenas uma função dos parâmetros da distribuição. Assim, não considerando apenas um ou outro caso específico, a classe média não seria em geral taxada nem receberia ‘benefícios’.»

    A redistribuição serve para resolver dois tipos de problemas. Um é garantir que todos podem ter uma participação mínima no mercado livre. Esse podia ser resolvido desta forma que sugeres, se bem que eu preferia uma simplificação: todos pagam em função da sua riqueza (rendimentos, propriedades, etc) de forma progressiva, e todos recebiam um ordenado de cidadão que era igual para toda a gente. Ia dar ao mesmo, porque quem estivesse no meio recebia de volta aproximadamente o que pagava.

    Mas há outro aspecto importante. O mercado livre é sempre distorcido pela vontade de quem tem mais dinheiro e não é fiável para garantir serviços ou bens de acesso universal. Também não serve para gerir monopólios naturais, tirar adequadamente partido de externalidades positivas, internalizar externalidades negativas e assim por diante. Por isso haverá sempre um grande conjunto de bens e serviços que têm de ser garantidos pelo Estado, além da regulação do comércio.

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  4. (cont...)


    «Todos eles pagam o mesmo que o Sr. João que tem dificuldades em sustentar-se a si e aos seus. Isto porque o prestador do serviço é o estado e cobra o mesmo preço a todos. Eu acho preferível que o estado garanta o serviço ao Sr. João mesmo que o prestador seja privado e cobre preço mais alto aos outros.»

    Eu não. Eu acho que o preferível era o Estado financiar os transportes públicos e compensar com impostos o dinheiro que isso injectaria na economia. O problema não é o Estado cobrar o mesmo a todos. O problema é o Estado tentar cobrir as despesas dos transportes públicos com o preço do bilhete, quando o preço do bilhete devia ser apenas uma taxa moderadora. Exactamente como se faz noutros serviços públicos.

    O mais importante é evitar a mistura entre o público e o privado, seja com empresas semi-públicas seja com contratos entre o Estado e empresas privadas. É bastante claro que isso só beneficia essas empresas.

    «“A inflação é a única medida que claramente prejudica mais quem tem muito dinheiro do que quem vive do seu trabalho”. Não percebo porquê a não ser que considere funcionários públicos e pensionistas como pessoas que não vivem do seu trabalho»

    Mesmo os funcionários públicos e pensionistas têm os seus rendimento se pensões actualizados pela inflação. Excepto no tal regime extraordinário da “austeridade”, que serve de desculpa para tudo...

    «Além disso quem tem parte dos seus rendimentos noutra moeda tem parte dos seus rendimentos a não serem afetados pela inflação. Quem é que faz negócios noutra moeda para não ser afetado? O rico ou o pobre?»

    Isso parece-me menos relevante do que o que acontece às reservas que tem na moeda inflacionada. Os ricos não são ricos por ter um rendimento alto, mas por ter um stock grande, e a inflação é o único “imposto” que pode incidir sobre esse stock sem problemas.

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  5. Ludwig,

    "ou que os funcionários públicos trabalham pouco, mas no sector privado também se faz muita coisa inútil."

    O problema é que se, no sector privado, um prestador de serviços "trabalhar pouco", eu rápidamente posso ir a um concorrente, se se gastam milhares de euros em inutilidades é problema do dono, etc. No estado, no entnato, se o moço das finanças for incompetente ou simplesmente mal educado eu não posso fazer nada - apresentar queixa, na maioria dos casos, não me resolve o problema. Se os professores, os médicos ou os polícias do sector publico forem maus profissionais estou tramado. Por isso é que há um grande enfâse na qualidade (ou grande falta dela) dos funcionários publicos é porque não há alternativa. Quando se gastam rios de dinheiro em inutilidades o problema não é do actual gestor - que mudará, certamente, no próximo ciclo politico, é meu, do Ludwig e de quase todos os Portugueses.

    Desculpar o "mau" do sector publico com o facto de o privado não ser perfeito parece-me ser uma grande falácia, dado que são coisas demasiado diferentes.

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  6. " problema é que se, no sector privado, um prestador de serviços "trabalhar pouco", eu rápidamente posso ir a um concorrente, se se gastam milhares de euros em inutilidades é problema do dono, etc."

    Isso não é verdade, se temos um contrato com a empresa A de cabo e queremos um serviço melhor, bom não há muito melhor, tlv tenha menos problemas mas tem menos serviço tb, isto tipicamente. no entanto existem tão poucos concorrêntes no mercado que não podemos falar bem de escolha.



    Em portugal as pessoas que acham o mercado muito bonito têm de meter na cabeça isto, não há suficientes consumidores para se falar de um mercado saudável. Aliás isto está na base da imensa quantidade de subsídeos para todo o tipo de produção. Isto acontece não por preguiça dos empresários mas porque sós não conseguimos competir com ninguém.

    Resumindo, em portugal quase sempre que se invoca a utilidade da concorrência o argumento não colhe.

    Já agora qual é o sector público que é mau ? os médicos ? os professores ? a polícia ?

    onde estão essas gorduras tão apregoadas ? é que ainda não se sabe


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