sábado, maio 31, 2014

Treta da semana (passada): eucaristia pirata.

As bênçãos de Deus são infinitas. Tal como um ficheiro pode ser copiado sem gastar o original, também uns podem ser abençoados sem que se desabençoem terceiros. Nesta economia da abundância seria de esperar que não houvesse problemas em partilhar bênçãos e ficheiros. Mas há. Porque há direitos exclusivos de distribuição. Por violar o contrato de exclusividade que Deus terá celebrado com a Igreja Católica há dois mil anos, Martha Heizer foi excomungada pelo Jorge Bergoglio, o gestor de direitos e representante exclusivo do Criador do Universo.

Segundo relata o João Silveira, «O caso Heizer eclodiu em 2011, quando a professora de religião em Innsbruck (Áustria), decidiu desafiar o Vaticano sobre a questão da ordenação de mulheres, anunciando a sua intenção de celebrar a Eucaristia em sua casa, em Absam, uma pequena cidade perto de Innsbruck.»(1) A usurpação dos direitos de distribuição de bênçãos e comunhões «é considerada pela a Igreja como "delicta graviora", tal como a pedofilia e os crimes contra a Penitência.» É de notar, no entanto, que aqui o João Silveira exagerou um pouco. Obviamente, o crime de uma mulher celebrar missa não está ao nível do crime de um padre violar crianças. São delitos graves, mas não são a mesma coisa. É por isso que nenhum padre foi ainda excomungado por abusar sexualmente de menores.

Heizer é «co-fundadora e presidente da "Wir sind Kirche" (Nós Somos Igreja)», um grupo de católicos que defende «o sacerdócio feminino, além de uma maior democracia, a abolição do celibato dos sacerdotes e a adequação da moralidade sexual aos costumes modernos» Estas ideias são tão estranhas – democracia, igualdade e uma atitude moral com menos de cem anos – que o grupo só conseguiu reunir quinhentas mil assinaturas na Áustria e um milhão e oitocentas mil na Alemanha. Claramente, Bergoglio devia seguir os conselhos de Lilian Ferreira da Silva, que comenta assim no post: «É importante que sejam excomungados todos os que assim procedem e todos os que se sentem atraídos por tais tendências.» (2) Eu diria que era bom excomungarem não só essa gente mas também todos os católicos que usam contraceptivos, todos os que não vão regularmente à missa e todos que não considerem dever obediência total ao Papa. Não só expurgavam os hereges como ficávamos com uma ideia mais correcta da verdadeira importância que o catolicismo tem na Europa. Infelizmente, a Igreja é muito parca na excomunhão. Nem a mim excomungam, que só sou oficialmente católico por me terem baptizado mal nasci. Mas também, verdade seja dita, eu só nego a existência de Deus, ridicularizo o Espírito Santo e critico a Igreja post sim, post não. Nunca cheguei ao delito extremo de ser mulher e celebrar missa.

O João Pedro BM explica assim a gravidade do crime desta senhora, e o porquê da Igreja Católica não poder ordenar mulheres: «Cristo nao ordenou mulheres, também nao o fará a Igreja que Cristo fundou.» É uma hipótese interessante mas tem algumas falhas. Por exemplo, Cristo também não ordenou sul-americanos nem pessoas que não fossem judeus de nascença. Talvez, à cautela, fosse melhor excomungar também o Jorge Bergoglio e quaisquer outros sacerdotes que não tenham nascido judeus na palestina ocupada pelo império romano. Afinal, foi só entre esses que Jesus escolheu os seus apóstolos.

Também achei interessante, e reveladora, a solução que vários católicos propuseram para as reivindicações do grupo “Nós somos Igreja”. A Teresa Chaves, por exemplo, escreveu que «Se "Nos somos Igreja" tem uma visão diferente da doutrina católica, criem uma nova religião e deixem os cristãos em paz!» Esta proposta demonstra um enorme progresso na mentalidade católica. Antigamente, a atitude seria a de que os hereges mereceriam a morte por estar em jogo almas imortais e a vontade divina. Agora já admitem, ainda que implicitamente, que as religiões são meras invenções humanas e que quem não estiver satisfeito com uma que invente outra.

É curioso descobrir uma analogia tão forte entre dois assuntos que me têm interessado tanto e que, até agora, me pareciam completamente diferentes. Mas, no fundo, a legitimidade da doutrina católica tem tanto que ver com a vontade de Deus como o copyright do Rato Mickey tem que ver com incentivar o Walt Disney a desenhar mais bonecos. O que se passa aqui é simplesmente o esforço por parte de um grupo influente em controlar a distribuição de bens que são trivialmente duplicáveis e transmissíveis. Seja ficheiros, seja missas, o problema nesta economia não é a escassez mas apenas a ganância dos intermediários.

Editado às 20:12 para corrigir o apelido do Papa. Obrigado à Cristina Sobral por apontar o erro.

1- Senza Pagare, Papa Francisco excomungou a fundadora do "Nós Somos Igreja"
2- Nos comentários ao post: Papa Francisco excomungou a fundadora do "Nós Somos Igreja"

17 comentários:

  1. Lamento Ludwig, mas tu estás excomungado lata sentenciae.

    https://en.wikipedia.org/wiki/Latae_sententiae

    É tipo "rebenta a bolha" automático, que não tem consequências nenhumas porque é uma sentença que opera no domínio da semitótica platónica hiper-real, e é talvez por isso que nem soubesses que tinhas sido excomungado.

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  2. O Ludwig, decididamente, não compreende que, não obstante todas as razões por si apresentadas para não levar a sério a religião, ou, neste caso, a igreja católica, as pessoas se desunhem em contenciosos, não para se "auto-excomungarem", mas para se manterem na comunhão daquilo em que crêem. E não compreende, mas vive em função desse "poder de atração", rodopiando como um desgovernado grão de poeira que nada pode fazer para sair dessa força centrípeta que, no fim de contas, é uma força que o Ludwig não pode reivindicar como sua.
    Há religiões e religiões. A do Ludwig é a dos que se acham sábios porque sabem dizer que tudo sabem.

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  3. Nem era preciso inventarem uma nova religião. Podiam juntar-se a uma igreja protestante. Já existem e com grande variedade.

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  4. Caro Ludwig,

    Bergoglio e não Bergoclio. O papa é de ascendência italiana e em italiano o "lh" escreve-se "gl".

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  5. António,

    Eu acho que essa notícia é uma confusão. Penso que o que aconteceu foi isto. Esses padres foram expulsos do sacerdócio mas não excomungados da Igreja Católica. Continuam tão católicos como qualquer outra pessoa, excepto mulheres que celebrem missa.

    «Já agora, como vice-presidente da Associação Ateísta Portuguesa espero que proponhas na próxima assembleia geral da associação que seja abolida a pena de expulsão aos associados "fundamentada em qualquer atitude ou desrespeito grave dos valores, princípios, objectivos e normas que regem a Associação".»

    Não é necessário porque a AAP já é obrigada a reger-se pelos princípios do direito e da Constituição Portuguesa e por isso nunca pode expulsar pessoas, por exemplo, por serem mulheres exercendo na associação o mesmo papel do que os homens.

    Nota que a minha objecção não é a que a Igreja Católica expulse do catolicismo quem defender que Deus não existe. Eu sou completamente a favor da minha excomunhão. O que me incomoda é que expulsem uma mulher por celebrar a missa católica e querer praticar dessa forma o catolicismo. Era como a AAP expulsar qualquer mulher que escrevesse posts a defender o ateísmo só por ser mulher.

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  6. Francisco,

    Eu sei que devia estar excomungado. Eu e mais carradas de católicos. Mas, na prática, continuamos a contar para o embuste da "sociedade maioritariamente católica" e coisas do género...

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  7. Carlos Soares,

    «O Ludwig, decididamente, não compreende que, não obstante todas as razões por si apresentadas para não levar a sério a religião, ou, neste caso, a igreja católica, as pessoas se desunhem em contenciosos, não para se "auto-excomungarem", mas para se manterem na comunhão daquilo em que crêem.»

    Pelo contrário, Carlos. É precisamente por compreender isso que compreendo que haja católicos que, acreditando nos preceitos do catolicismo, possam também acreditar que as mulheres têm tanta legitimidade como os homens para celebrar missas e que, por isso, queiram reformar a Igreja em vez de a abandonar. A proposta de que estas pessoas devem abandonar a Igreja Católica – que já vi vinda de vários católicos, estranhamente – não só implica que não levam a sério essa coisa de existir mesmo um Deus e ser como os católicos dizem ser, como também demonstra que não compreendem isso que aqui apontas.

    Se uma pessoa se sente católica, se quer comungar com a sua igreja mas acha que há algo de errado nessa igreja é razoável que queira corrigir o que há de mal em vez de querer abandonar a sua religião.

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  8. Ludwig,

    o teu forte mesmo é o nem sim nem não antes pelo contrário. A inconsequência do pensar. O pontapé para o ar a ver onde a bola vai cair. É o típico problema de quem assume o dislate e dele se defende, não por ser defensável. Isso é um jogo, como outro qualquer, com o valor, as contradições e as ironias dos jogos. Mas, como não se cansa de dizer o "Criacionismo Bíblico", não é racional nem inteligente. Não é que me preocupe. Coisas importantes me preocupam.
    Podes estar descansado que não me darei a trabalhos de te persuadir daquilo que tens a obrigação de indagar por ti próprio.

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  9. António Parente,

    «Pensas o que te é mais conveniente.»

    Não é uma questão de conveniência. É que não encontrei qualquer confirmação de que esses padres tinham sido excomungados, e tudo o que encontrei foi apenas que tinham sido expulsos do sacerdócio.

    «Isso é demagógico e populista. Pegas nisso mas se amanhã as mulheres acederem ao sacerdócio encontras outro argumento qualquer para combater a Igreja Católica.»

    O meu argumento principal contra a Igreja Católica é assentar a sua doutrina em premissas falsas. Como a de que o universo terá sido criado por um ser inteligente que nos ama. Mas nada tenho contra a ideia de que expulsem da Igreja Católica quem defender que o universo não foi criado por um ser inteligente. Parece-me que faz todo o sentido que uma pessoa que defenda o que eu defendo não possa pertencer à Igreja Católica, e acho justo que expulsem quem rejeitar a hipótese da existência de Deus.

    Mas expulsarem da Igreja uma mulher por ter celebrado missa, ou por defender que as mulheres também podem celebrar missa, é diferente porque é uma discriminação injusta. Há muita gente na Igreja Católica que celebra missa e não é expulso, e esta só foi expulsa porque é mulher.

    «Uma mulher que celebra missa católica rompe com a comunidade em que se insere porque sabe perfeitamente - ainda mais a senhora em causa não é ingénua e tinha perfeita consciência do que fazia e das consequências - que isso não é permitido.»

    Aí está o problema. Se não é legítimo proibir algo a uma pessoa em virtude dessa pessoa ser mulher – à mulher não se deve poder proibir mais do que se proíbe ao homem – então essa própria proibição é um exemplo de discriminação injusta por parte da Igreja.

    «Não me parece que tenhas qualquer interesse nesse assunto da "igualdade" na Igreja Católica.»

    Eu não tenho interesse em particular na “igualdade” na Igreja Católica. Mas tenho interesse na igualdade de direitos em geral, sem aspas e seja onde for. No dia em que a Igreja Católica permitir que mulheres celebrem a missa continuarei a achar que é um ritual ridículo mas pelos já não será tão injusto.

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  10. Carlos Soares,

    «o teu forte mesmo é o nem sim nem não antes pelo contrário. A inconsequência do pensar.»

    Experimenta ler isto em voz alta e depois continua a ler o resto do teu comentário. É impressionante...

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  11. António,

    Eu preferia que ou me desses alguma evidência mais sólida de que esses padres foram realmente excomungados ou admitisses que a tua alegação de que eu estava enganado é que estava incorrecta. Essa de “o tema está encerrado”, nestas circunstâncias, não é muito satisfatória.

    O artigo que referiste mencionava a AP como fonte. Aqui está um apanhado mais recente: VATICAN: 848 PRIESTS DEFROCKED FOR ABUSE SINCE '04. Não vejo nada sobre excomunhão.

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  12. Este comentário foi removido pelo autor.

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  13. É interessante que o Ludwig diz-se ateus mas vive a sua vida como se Deus existisse (tão intensamente que discute as questões teológicas) embora essa possibilidade o perturbe.

    Ainda assim, não deixa de ser interessante, porque alguns dizem-se cristãos mas vivem a sua vida como se Deus não existisse, e pelos vistos essa possibilidade não os perturba.

    Nas questões que o Ludwig coloca (como se procurasse respostas para elas) a Bíblia tem, mais uma vez, a resposta.

    Igreja vem da palavra grega Ekklesia ( εκκλησία) que significa assembleia. Ela é constituída por todos os crentes em Cristo. Paulo diz que na Igreja "[n]ão há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus." (Gálatas 3:29).

    Este verso aponta para a igual dignidade de todos os crentes no seio da Igreja e para o governo democrático da assembleia.

    Admito que possam surgir algumas dúvidas sobre o relevo da complementaridade dos sexos no ensino e no governo da Igreja, mas nessas matérias controvertidas é preferível deixar isso à consciência de cada um e a cada comunidade em particular do que decidir de forma dogmática.

    Por outro lado, sobre o casamento dos Bispos ou pastores da Igreja, a Bíblia é ainda mais explícita:

    "Convém, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma mulher, vigilante, sóbrio, honesto, hospitaleiro, apto para ensinar" (1 Timóteo 3:2)

    Ou seja, em matéria de ciência como de teologia, a Bíblia tem as respostas.

    O Ludwig pretende ser um especialista em pensamento crítico. Em si mesmo, isso tanto pode ser bom como mau.

    Um pensador crítico vai criticando tudo até ao infinito se não tiver um ponto de apoio crítico absoluto e imutável. Ele critica os críticos, os críticos dos críticos, os críticos dos críticos dos críticos, os críticos dos críticos dos críticos dos críticos (ad infinitum) sem nunca ter verdadeiramente a certeza de nada acerca da origem, do sentido e do destino do Universo e do Homem.

    A Bíblia é o melhor ponto de apoio crítico que alguém pode ter. Existem boas razões para isso, embora não tenhamos tempo para as desenvolver aqui e agora.



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    Respostas
    1. A sério que gostava de encontrar na Bíblia a resposta para a chamada "Grande teoria unificada". Presumo que muitos cientistas também.
      Também, noutros ramos, encontrar resposta na Bíblia sobre a "conjetura de Goldbach", ou até sobre a demonstração do teorema da incompletude de Gödel.
      Como sei que sobre estes temas não é o sitio para procurar, porque é que ainda existe alguém que se dá ao trabalho de dizer que a "em matéria de ciência como de teologia, a Bíblia tem as respostas"?

      Meu caro, deixe-se de coisas: a Bíblia é o que é, e definitivamente, não é manual de ciências.

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