quarta-feira, novembro 30, 2011

“Orgulhe-se”

Tenho visto uns cartazes a exortar que me orgulhe por o fado ser património da humanidade. Alguns até têm o Figo, sei lá eu porquê. Acho bem que o fado seja património de todos, mas não vejo porque me hei-de orgulhar, visto não ter contribuído nada para isso. O pouco fado que canto é no duche e, felizmente, nenhum representante da UNESCO teve o azar de me ouvir. Eu sei que estamos em crise, que anda tudo deprimido e que é um passatempo nacional sentir orgulho pelos feitos alheios. De futebolistas, fadistas, f-istas em geral. Mas esse orgulho sabe-me a falso. Prefiro tentar fazer eu coisas de que me possa orgulhar. Mesmo sendo mais modestas, ao menos o orgulho é autêntico.

Mas o pior deste “património da humanidade” é não ser nada disso. A ideia é boa, tomar «medidas que visem assegurar a viabilidade do património cultural imaterial, incluindo a identificação, documentação, pesquisa, preservação, protecção, promoção, valorização, transmissão, essencialmente através da educação formal e não formal, bem como a revitalização dos diferentes aspectos desse património»(1). Mas a prática dá-lhe um tiro. Em Setembro, a UE prolongou de 50 para 75 anos o monopólio sobre gravações musicais. A AFP aplaudiu porque, entre outros, os discos que a Amália Rodrigues gravou há cinquenta anos «estavam em risco de cair no domínio público»(2). Este “património da humanidade” continua a ser propriedade privada de alguns.

Bom era que declarassem toda a cultura património da humanidade. Que é o que devia ser. Mas a sério. Deixarem o agricultor plantar, o programador programar, o compositor compor e qualquer um partilhar os frutos da criatividade humana sem proibições legais só para proteger monopólios. No fundo, declarar de uma vez por todas que a cultura é mais importante como património de todos do que como fonte de lucro pelo licenciamento da cópia. Mas isso suspeito que terá de ser pela tecnologia e pela desobediência civil, porque para ser pela via legal era preciso democracia primeiro.

1- Comissão Nacional da UNESCO, Portugal, Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial
2- AFP, Notícias

domingo, novembro 27, 2011

Treta da semana: o primo Raposo.

No seu blog, no Expresso, o Henrique Raposo publicou uma mensagem de um primo que pergunta ao funcionário público se «está disponível para trocar o seu vínculo-vitalício-ao-Estado por um contrato-ameaçado-pela-falência-e-pelo-desemprego? Quer trocar 12 meses certíssimos por 14 meses incertos?»(1) Eu saía a ganhar. O salário médio, no sector privado, para cargos que exijam dedicação exclusiva e doutoramento é bastante melhor do que os menos de dois mil euros mensais com que fico depois de pagar os impostos e a multa por ser funcionário público. Quanto à incerteza, passei oito anos a bolsas anuais, durante mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, só para me candidatar a este cargo. Quando finalmente consegui um contrato de trabalho, ainda fiquei cinco anos à experiência. E agora, mesmo tendo a nomeação definitiva, ainda não pertenço ao quadro da instituição onde tenho trabalhado e estudado estes últimos vinte anos. Quem apregoa por aí que na função pública está tudo garantido geralmente não faz ideia do que é exigido primeiro. Perguntem lá isso aos milhares de professores que vivem sem saber onde, ou se, vão ficar colocados no próximo ano.

Seja como for, esta proposta é demagogia da treta. Há muitos factores envolvidos, além do dinheiro. Eu escolhi esta carreira porque gosto do que faço e das pessoas com quem trabalho. Por outro lado, conheço pessoas no ensino secundário que trocariam de bom grado o público pelo privado só para não aturar a burocracia, os filhos mal criados dos outros e os pais que os mal criaram. A ideia do sector como um paraíso é uma deturpação grosseira e ignora que a diversidade de factores e situações dentro de cada grupo é muito maior do que a diferença média entre eles. O primo Raposo que não proponha isso a muita gente, porque pode bem arrepender-se com o que lhe sai. Mas o problema principal nestas comparações é descurar a diferença fundamental entre o sector privado e o sector público.

A economia privada emerge da tentativa individual de ganhar dinheiro como melhor se entende ou pode. Uns vendem o seu trabalho, outros compram trabalho e lucram vendendo o produto desse trabalho, e outros alugam os recursos que têm e vivem das rendas. Os detalhes são pouco relevantes. Tanto faz se é a vender revistas, cortar cabelos ou fabricar telemóveis. A motivação principal é o lucro e, mais coisa menos coisa, o que se faz em concreto é apenas um meio para esse fim. A função principal de uma fábrica, escola ou clínica, no sector privado, é a mesma. Dar dinheiro a quem lá investiu. Isto não é bom pelo resultado. Sem regulação ou redistribuição, cada um querer ganhar mais do que os outros resulta em grandes injustiças e sofrimento. Mas é bom por si, porque há um valor intrínseco na liberdade de negociar, ganhar dinheiro e enriquecer. São direitos que se deve garantir. E é por isso que o sector público é fundamentalmente diferente.

Se o primo Raposo se dedicar ao empreendedorismo na Somália, por exemplo, irá deparar-se com muitas dificuldades que não tem por cá. Graças aos funcionários públicos. É preciso infraestrutura, educação, segurança, justiça e mais uma data de outras coisas antes de se poder ter um sector privado funcional. Enquanto que o sector privado consiste em cada um seguir os seus interesses com os recursos que tem à sua disposição, o sector público é o que garante que o possam fazer e o que impede que descambe tudo em tiroteios de AK-47.

A história que nos contam é que estamos na miséria porque temos um Estado gordo e os funcionários públicos levam o dinheiro todo. A realidade é diferente. A percentagem de funcionários públicos em Portugal é menor do que nos EUA e metade da Suécia, Dinamarca, Noruega ou Finlândia (2). Os principais problemas da economia portuguesa são o baixo nível de educação (3), um sistema de justiça ineficaz, que só beneficia os ricos e aldrabões (especialmente os que são ambas as coisas) e, sobretudo, a corrupção institucionalizada, e legalizada, que a influência política do sector privado tem comprado. O problema não é gastar-se dinheiro público com pessoas que prestam serviços públicos. O problema é o imenso dinheiro público que vai para os bolsos daqueles privados que têm os contactos certos. A narrativa da gordura estatal e dos supostos privilégios da função pública é mais um barrete para tapar os olhos a quem está a ser roubado.

1- Henrique Raposo, Caro funcionário público, quer trocar?
2- Richard Posner, The Becker-Posner Blog, Too Many Government Workers?
3- Wall Street Journal, A Nation of Dropouts Shakes Europe

sábado, novembro 26, 2011

Equívocos, parte 13. A imagem de Deus.

Na sua série sobre os «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo», o Alfredo Dinis continua a insistir que o «Equívoco fundamental [do ateísmo] é […] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos». Este uso do termo “equívoco” faz-me lembrar as sábias palavras de Inigo Montoya. O Alfredo insiste também na falsa dicotomia de que o ateísmo «ou tece críticas inteligentes [...] à religião, e nesse caso só pode ser benéfico para ela; ou as suas críticas não são nem inteligentes, nem objectivas [e] não beliscam a religião.»(1) Omite a possibilidade mais importante, a do ateísmo desmascarar como infundada a confiança com que cada crente caracteriza o seu deus.

Neste episódio, o Alfredo Dinis aproveita novamente a ambiguidade da expressão “leitura literal” para induzir o equívoco de que os ateus estão «ao lado dos fundamentalistas cristãos que fazem uma leitura literal [da Bíblia]»(1). Consideremos o exemplo menos polémico do “Édipo Rei”, de Sófocles. Se por “leitura literal” se diz considerar todo o texto literalmente verdadeiro, então é óbvio que ninguém faz uma “leitura literal” desta peça dramática. É uma obra de ficção, baseada em lendas da época. Mas também não seria correcto ignorar o que lá está escrito e interpretar a obra como retratando a partilha de responsabilidade entre pais e filhos e a emancipação da mulher, fingindo que a morte de Laio e o incesto com Jocasta são apenas metáforas para o amor filial e a liberdade sexual. Ou qualquer outra coisa que se quisesse impor à leitura do texto. A intenção de Sófocles era que se lesse essa história como a tragédia que lá está descrita, e não como uma metáfora hippie sobre paz e amor.

É isto que os ateus fazem com a bíblia. O ateu não faz a “leitura literal” dos fundamentalistas. Eu não julgo que Deus tenha mesmo transformado a mulher de Lot num pilar de sal. Mas essa história não é uma metáfora para os perigos de comer sal em excesso, ou qualquer outra interpretação que agora possam dar-lhe para que Deus pareça mais bonzinho. É evidente que o autor queria transmitir literalmente o que escreveu: se desobedecem a Deus, por muito insignificante que seja a falta, ele lixa-vos com F grande. Principalmente às mulheres.

Segundo o Alfredo, «Dawkins e os demais autores do novo ateísmo ignoram que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Claro que não. Todos sabem que a Bíblia é uma selecção de histórias de muitos autores, com muitas ideias e prioridades diferentes. Se fosse tudo do mesmo, seria de esperar que Deus ou fosse o Kal-El ou o General Zod. Só essa diversidade explica que ora seja um ora seja o outro, conforme calha. Ao contrário do que o Alfredo defende, a divergência entre ateus como eu e crentes como ele não vem de julgarmos que a Bíblia é literalmente verdade nem de sermos ignorantes quanto à sua origem.

É precisamente pela diversidade cultural e ideológica dos seus autores que discordo do Alfredo quando afirma «que se deve ter em mente o sentido do conjunto dos textos bíblicos». Assumir um sentido conjunto para as histórias da Bíblia é que implica o erro de ignorar «que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Além disso, discordo também que «contextualização histórica e cultural» seja interpretar textos antigos de acordo com o que agora se considera aceitável numa religião, relegando para “metáfora” (de quê, nunca é claro) tudo o que pareça moralmente reprovável ou factualmente implausível, e retendo apenas o que for aceitável por critérios modernos. A «contextualização histórica e cultural» é precisamente o contrário. É ler Sófocles como Sófocles pretendia, e dar aos textos da Bíblia o significado que os seus respectivos autores lhes queriam dar.

Mas a divergência mais fundamental é outra, e resulta também de um equívoco. Escreve o Alfredo que «A imagem de Deus que os novos ateus recolhem da Bíblia baseia-se em passagens do Antigo Testamento nas quais Jahvé é descrito com traços vingativos e cruéis [… mas …] há que considerar que a imagem de Deus que se encontra na Bíblia é um conjunto de imagens sucessivas cujo pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo.» Os ateus não “recolhem uma imagem de Deus”. Os ateus sabem que há muitas “imagens” de Deus. Os muçulmanos têm umas, os evangélicos outras, os budistas outras e até católicos como os meus avós têm uma “imagem” de Deus diferente da imagem que o Alfredo tem. Se assim não fosse eu não teria sido logo baptizado com medo que parasse no inferno por falta de bênção. O problema principal é não haver fundamento para qualquer destas “imagens” de Deus.

O Alfredo diz que o «pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo», mas o peso das evidências não favorece essa hipótese sobre as do muçulmano, judeu ou budista. Mais importante ainda, se considerarmos o contexto em que surgiram as tradições religiosas e a diversidade das “imagens” de Deus, o mais plausível é que sejam apenas fruto da imaginação humana. Esta é uma hipótese crucial porque, se as religiões forem obras de ficção – como tudo indica serem – deixa de se justificar a teologia, o sacerdócio e o poder eclesiástico. A prestidigitação argumentativa acerca da definição de Deus, das interpretações da Bíblia e dos alegados equívocos dos ateus apenas serve para disfarçar a incapacidade de responderem à pergunta mais básica: como é que sabem que essa religião é verdadeira? Sem resposta para isto não há razão para dar crédito a qualquer “imagem” de Deus.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

quinta-feira, novembro 24, 2011

A crise, a causa e a greve.

Esta crise, que uns dizem ser de valores, outros de competitividade, e outros por “nós” termos vivido acima das nossas posses e agora não haver dinheiro, é, sobretudo, uma crise política. Por decisão política, uns poucos têm muito e muitos quase nada. Desta desigualdade nascem problemas sociais, económicos e até de saúde.


(obrigado ao xovan pelo link)

Mas se a fonte de tantos males é simplesmente uma redistribuição defeituosa, tem de haver algo que impeça a resolução do problema. Redistribuir melhor é simples, e nem é preciso eliminar todas as desigualdades. Afinal, não somos todos iguais. Há quem goste mais de campo, de ganhar muito dinheiro, de escrever em blogs, etc. E, pelo menos desde Rawls, é fácil perceber que a desigualdade só é justa enquanto beneficiar todos, especialmente os que ficam com menos. A possibilidade de vir a ser um dos ricos pode ser uma boa fonte de sonhos, ambição e motivação para trabalhar por algo. Mas quando a desigualdade é grande demais e se mostra inescapável, o efeito é o contrário. Quase todos perdemos com isso.

O problema é o quase. Os tais 1%, cuja influência na política é muito maior do que deveria ser.



(Este é comprido, mas vale a pena ver todo. Obrigado pelo email com o link)

Hoje muita gente fez greve, em protesto contra isto. Outros dizem não perceber porquê. «Nas presentes circunstâncias, com a greve geral, as reivindicações não são atendidas. O desemprego não diminui. A produção não aumenta. A legitimidade democrática das instituições não se altera. A crise não se resolve. Ninguém lucra absolutamente nada com ela, a começar pelos participantes.»(1) É verdade. Os movimentos de indignados, as manifestações e a greve geral não propõem soluções concretas. Não dizem como corrigir o problema. Não dão emprego, prosperidade, riqueza ou essas coisas. Mas o problema não é a falta de soluções concretas. O problema é não haver sistema que as implemente. Das PPP à austeridade, do BPN ao descartar de promessas eleitorais, do João Jardim ao sistema judicial, por todo o lado é evidente que não é desconhecer as soluções que impede a resolução destes problemas. Isto não se resolve simplesmente porque aqueles com poder para o fazer preferem manter as coisas como estão. A greve não é uma solução para este problema. É um aviso.

Outra crítica é que não é um aviso eficaz. Depende de o levarem a sério; se ninguém ligar, então a greve não serve para nada. Mas a greve mostra que há muita gente capaz de sacrificar, pelo menos, um dia de ordenado só para protestar. É um aviso que devia ser credível, e é preferível que comecem por estes avisos em vez dos outros, mais eficazes. Como na Líbia e no Egipto, por exemplo.

É pena que tanta gente tenha ido na conversa do Passos Coelho, quando era evidente que as promessas dele valiam menos que os títulos da dívida grega.

1- Vasco Graça Moura, Greve Geral

domingo, novembro 20, 2011

Treta da semana: a cultura.

Uma reportagem na Sábado da semana passada mostra um «teste de cultura geral» concebido por jornalistas da revista. Aplicaram o teste a «a 100 alunos de universidades de Lisboa», seleccionaram as maiores argoladas, e o resultado foi um vídeo que tem dado que falar(1).

Alguns apontam-no como evidência de que «uma parte considerável dos estudantes inquiridos não tem conhecimentos básicos. Por exemplo, 44% dos estudantes não soube dizer quem pintou o tecto da Capela Sistina, 24% não sabe quem é a chanceler da Alemanha...»(2) Um problema deste “não sabe” é a distância entre não terem mesmo conhecimento e não lhes ocorrer a resposta certa, imediatamente, com a câmara e o microfone apontados. Além disso, «Na totalidade dos 100 entrevistados, apenas cinco conseguiram acertar em todas»(2). Isto seria o valor esperado se cada um, em média, acertasse 85% das perguntas. Nem é assim tão mau. Em 100 alunos há certamente alguns cromos e, admito, é triste que tantos vivam desligados da política. Mas, dadas as condições deste “teste de cultura geral”, não são as respostas o que mais me preocupa.

A qualidade da peça é um pouco mais preocupante. Uma das perguntas era sobre o “símbolo” químico da água. Se bem que não concorde que se rotule alguém de ignorante só por não saber que os símbolos químicos representam elementos, e que a água tem uma fórmula química, parece-me que mesmo uma peça destas teria merecido uma consulta rápida da Wikipedia para confirmar se as perguntas estavam bem. Mas o pior é a noção de cultura, ignorância e “conhecimentos básicos” partilhada por jornalistas, entrevistados e boa parte da audiência. Isso sim, é preocupante.

Quando eu tinha uns dez anos, o meu avô contou-me como a escola no tempo dele era muito mais exigente. Na segunda classe já sabia de cor todos os rios de Portugal, e todas as linhas férreas. Com a falta de diplomacia característica da idade, perguntei-lhe para que é que isso servia. A ideia de cultura e “conhecimentos básicos”, subjacente à peça e a quem se indignou com a ignorância dos jovens, segue a mesma linha. As vinte perguntas focam dados triviais, inúteis e que qualquer um encontra no Google em segundos. É tão fácil encontrar esta informação que, mesmo sabendo quem pintou o tecto da Capela Sistina, se alguma vez eu precisasse de o referir iria confirmar na Wikipedia primeiro, não fosse a memória pregar-me uma partida. E, quando digo que estes factos são inúteis, não me refiro a uma eventual utilidade prática. Para mim, o conhecimento tem valor intrínseco, e não apenas instrumental. Mas para ser conhecimento a sério os dados têm de encaixar. O conhecimento explica e esclarece. Não papagueia.

No contexto da química ou da história da arte, a fórmula da água e o Michelangelo são peças importantes do puzzle. Mas como informação avulsa, como “cultura geral”, não são grande coisa. O que esta peça revela, e as reacções a ela, é que se dá muito pouco valor à compreensão e à capacidade de explicar. O que importa é saber os nomes dos rios todos. Antigamente, isto até se compreendia. Quando a informação era escassa, saber estas coisas impressionava e indicava pertença à elite dos que sabiam ler e tinham acesso a livros. Mas hoje chove-nos informação em cima, constantemente, e ser culto já não devia ser só ter nomes e datas na ponta da língua.

Para testar a cultura geral e conhecimentos básicos devia-se pedir explicações em vez de factos decorados. Por exemplo, porque é que os planetas são redondos, o que é a inflação, porque é que o suor refresca a pele, porque é que Portugal não participou na segunda guerra mundial, porque é que a água sobe se chupamos a palhinha e se há uma altura máxima à qual pode subir. Saber encaixar a informação e compreender a realidade é muito mais importante do que ganhar queijinhos no Trivial Pursuit. Excepto, é claro, se for para jogar Trivial Pursuit.

1- Sábado, Vox Pop: A ignorância dos nossos universitários (vídeo)
2- Nuno Gouveia, A ignorância universitária

sábado, novembro 19, 2011

Definições.

Comentando o post de há dias, sobre metafísica, ciência e filosofia, o Mats/Lucas escreveu que «A filosofia precede a ciência uma vez que a ciência opera segundo princípios filosóficos. Antes de saberes correr, tens que saber andar. Antes de fazeres ciência, tens que definir o que é ciência.»(1) De certa forma, é verdade que a filosofia precede a ciência. Antes de se poder testar modelos, fazer experiências e reunir dados, necessário para a ciência, é preciso pensar nas questões, discutir conceitos e conceber hipóteses, o que já é filosofia. É por isso que grande parte daquilo que hoje é ciência antigamente foi classificado como filosofia.

Mas não é verdade que a filosofia tenha de definir a ciência para se poder fazer ciência, nem que a ciência opere «segundo princípios filosóficos», como o xadrez e a bisca “operam” segundo as respectivas regras. Regras que, por isso, é necessário definir antes de se poder jogar. A diferença está na direcção do ajuste. Enquanto as regras do xadrez e da bisca determinam como se joga, e é o jogo que se ajusta às regras, quando a filosofia estuda a ciência tenta descrever e perceber o que a ciência é. E se bem que a ciência seja uma categoria mais restrita do que a filosofia, exigindo testes às hipótese que considera, não há razão para expulsar uma investigação da filosofia só porque se tornou científica. A ciência é uma parte integrante dessa paixão pelo sabedoria a que chamam filosofia. Por exemplo, a filosofia da ciência é claramente científica. Não se limita a analisar conceitos e procurar relatos consistentes do seu objecto de estudo. Também apresenta hipóteses testáveis que confronta com evidências históricas. Pelos critérios que a própria filosofia da ciência propõe para identificar ciência, este ramo da filosofia, pelo menos, é claramente científico.

A confusão entre os dois tipos de definição é comum pela sua utilidade na propagação de tretas. Por um lado, temos o problema de definir conceitos arbitrários como kryptonite ou futebol que, sendo produto da nossa imaginação, se moldam à definição que lhes impusermos. Por outro lado, temos o problema de definir termos que referem aspectos da realidade. Podemos definir “pardal” como quisermos, mas só se a definição se subordinar às características dos pardais é que vai corresponder ao que queremos que corresponda.

Se alguém propõe uma terapia alternativa, uma previsão astrológica ou um milagre, importa saber se a alegação corresponde à realidade. Mas quando se questiona essa correspondência, é costume mudarem de assunto e discorrer sobre a definição de “terapia”, de “astrologia”, de “deus” e afins. A conversa torna-se então num monólogo fútil sobre definições arbitrárias, descurando o mais importante. Por exemplo, há tempos o Alfredo Dinis criticou-me assim: «Como te referes tantas vezes ao carácter absurdo das crenças na ressurreição de Cristo e na transubstanciação, pensei que soubesses do que estavas a falar. Afinal não sabes.»(2). Realmente, desconheço qual será a definição preferida do Alfredo. Mas o que me importa é que “ressurreição de Cristo” refere algo supostamente milagroso que Jesus terá feito e que, violando a ordem natural, lhe permitiu vencer a morte. Ao contrário do que acontecia aos seus contemporâneos. E “transubstanciação” refere a hipotética alteração da substância da hóstia quando o padre profere certas palavras, que não ocorre, por exemplo, quando eu digo hocus pocus a uma bolacha Maria. Os teólogos podem definir estes termos como quiserem; há até um longo historial de dedicação a esta prestigiosa actividade. Mas o que interessa saber é se aconteceu mesmo alguma coisa de especial a Jesus ou à hóstia. Porque, se não aconteceu, então por muito que definam e redefinam, estes termos não passarão de perlimpimpim teológico. Daí a importância de obter primeiro dados concretos acerca do sucedido antes de se tentar definir o que ocorreu.

É também isto que os criacionistas querem fazer com a ciência e os vendedores de banha da cobra fazem com a medicina. A ciência e a medicina são actividades humanas, mas têm objectivos concretos: gerar conhecimento e curar maleitas. Por isso, é preciso definir esses termos de forma a referirem os processos mais adequados para atingir esses fins. Mas quando isto choca com a fé numa interpretação da Bíblia ou um negócio de mezinhas, fazem de conta que se pode redefinir tudo a gosto. E, no fim, a questão daquilo que alegam ser verdade acaba também por depender de definições. Nomeadamente, depende de se definir “verdade” como sinónimo de treta.

1- Ciência, metafísica e filosofia.
2- Em cheio, na palha.

domingo, novembro 13, 2011

Treta da semana: fé nos tecnocratas.

Esta semana, no “Edição da Noite”, o Alfredo Barroso e o António Capucho conversaram sobre os “tecnocratas” da Europa (1). São a figura mitológica do momento, estes supostos crânios da economia, isentos de ideologia política e unânimes a recomendar austeridade como cura para qualquer maleita (2). O António Capucho chegou até a defender que era bom esses tais “tecnocratas” tomarem o poder na Grécia e na Itália, acabando com aquelas mariquices da democracia como eleições e referendos, e disse serem «homens de pouca fé»(1) aqueles que não confiarem na austeridade tecnocrata para nos salvar. Isto é uma treta.

Em detalhe, a situação económica da União Europeia é um caos. Mas, em traços largos, nem é muito complicada. Como em qualquer Estado, há partes mais ricas, que produzem mais, vendem mais e têm de conceder crédito para escoar o que produzem. E há partes mais pobres, que compram mais do que podem pagar e contraem dívidas. Em qualquer Estado, estes desequilíbrios resolvem-se de várias maneiras. A mobilidade laboral leva pessoas das zonas pobres para as mais ricas, deslocando também o consumo, as transferências do erário e a política fiscal contrariam as transferências privadas, e o banco central pode sempre garantir liquidez e, pela inflação, ir diminuindo o peso das dívidas.

Infelizmente, a UE não é um Estado. Línguas e hábitos diferentes dificultam a mobilidade. Se umas dezenas de milhões de gregos começassem a procurar emprego na Alemanha, provavelmente muita gente repensava isto da austeridade. Mas é pouco provável que o façam e, mesmo que em teoria o pudessem fazer, se tentassem acabava-se logo a UE. As transferências de dinheiro público dentro da UE também são pequenas, muito abaixo do que acontece dentro de qualquer país e muito aquém do que seria preciso para equilibrar as contas. E o Banco Central Europeu foi concebido por banqueiros que convenceram os políticos – mais com lugares de administração do que com argumentos, presumo – de que o ideal é um banco central que não pode emprestar dinheiro aos Estados, só aos bancos privados, e que serve principalmente para manter a inflação baixa. Dê lá por onde der. Agora, o BCE fica a soprar o chá enquanto a casa arde.

A austeridade não vem dos tecnocratas. Economicamente, a melhor solução para o problema financeiro da UE seria a inflação. Aumentava as exportações para fora da UE, aumentava o PIB nominal de cada país – tornando as dívidas mais leves – e evitava a recessão. As medidas de austeridade são um disparate porque são medidas recessivas que vão contrair o PIB dos países devedores e levar inevitavelmente ao default (3). Em parte, o problema é político no bom sentido, no sentido da democracia e da vontade da maioria. Os eleitores nos países mais ricos, como a Alemanha, terão naturalmente relutância em aceitar uma perda de poder de compra para safar os outros. Mas este não será o problema principal, porque há vantagens claras para todos em manter a UE a funcionar. Afinal, o emprego dos eleitores alemães depende de haver quem continue a comprar os produtos e serviços que eles fornecem.

O problema principal é político no pior sentido. Não pela influência da maioria nos países mais ricos, mas pela influência da minoria dos mais ricos em todos os países. Mesmo em Portugal, na Grécia e na Itália, há gente com muito dinheiro, e bolsos cheios de políticos, a quem a inflação não convém mas a austeridade não preocupa. Desde que sobre polícia para arrear nos manifestantes, os milionários aguentam bem os cortes no subsídio de desemprego, pensões e serviço nacional de saúde. A austeridade até lhes permite comprar empresas públicas ao preço da uva mijona. É a esses que convém a ilusão da austeridade vir dos “tecnocratas”. Tem de ser mesmo assim, são questões técnicas complexas, os economistas é que sabem, e assim por diante.

Ainda a propósito deste assunto, uma menção honrosa para o “raciocinio” do José Manuel Fernandes: «Depois do preço elevadíssimos que os trabalhadores do sector privado estão a pagar em desemprego, em empregos sub-pagos, em intranquilidade, em diminuições salariais e por aí adiante, falar em equidade quando se propõe que paguem ainda mais taxas e impostos é próprio de quem, bem ou mal, quase só conhece o relativo conforto de se ser empregado do Estado.»(4) Não é verdade que, para o mesmo nível de formação, se ganhe mais no sector público do que no privado. Pelo contrário. E as maiores reduções salariais, recentes e propostas, são nos funcionários públicos. Mas a maravilha do raciocínio está em inferir que não se deve cobrar tanto ao sector privado porque «o número de desempregados [...] saltou de 425 mil para perto de 700 mil». Cobrar o subsídio de Natal e de férias aos trabalhadores do sector privado que ganhem mais dificilmente prejudicaria os desempregados. E sempre se podia subir menos o IVA ou não cortar tantas prestações sociais, isso sim coisas que prejudicam os que mais sofrem com a crise.

E a razão principal, em maiúsculas e tudo, é que «NÃO HÁ DINHEIRO.» Se o dinheiro crescesse nas árvores, o José até poderia ter razão. Mas o dinheiro faz-se nos bancos. Economicamente, a decisão é apenas quanta inflação vamos aceitar, porque para fazer dinheiro é só imprimir. Ou nem isso, hoje em dia. Infelizmente, a maioria de nós está mais habituada à economia da família do que à dos bancos centrais, e facilmente cai nesta treta. Como a desculpa dos “tecnocratas”, o “não há dinheiro” é outra forma fácil de fingir que ideologias são factos.

1- Edição da Noite, Alfredo Barroso e António Capucho
2- I, Isto só lá vai com heróis da tecnocracia: Super Mario e Capitão Papademos
3- Obviamente, não vão por mim. Vejam, por exemplo, aqui, ou aqui, e, especialmente, aqui.
4- José Manuel Fernandes, Peço desculpa aos funcionários públicos, mas…

sábado, novembro 12, 2011

Para adoptar.

gata

A minha mulher e um dos nossos filhos encontraram esta gata ontem à noite, a miar debaixo de um carro. Tem um palmo de tamanho, é meiga e parece saudável. Está provisoriamente aqui em casa, mas com uma criança de quatro meses e uma cadela em time-sharing não nos dá jeito ficar também com a gata. Alguém aqui está interessado?

quarta-feira, novembro 09, 2011

Direitos e “direitos”.

A propósito do meu último post sobre copyright, o sofrologista católico comentou «Quando dizes que é imoral o direito de propriedade sobre bens que não implicam pelo seu uso a exclusão do uso de outrém estás [...] apenas a enunciar o teu critério de delimitação dos direitos de propriedade.» Penso que o problema principal aqui é uma ambiguidade no termo “direitos”. Esta ambiguidade afecta também outras discussões, como acerca dos direitos dos animais e de Deus como fundamento para a moral.

No sentido mais lato, que referirei com aspas, “direitos” são tudo o que for moralmente permitido fazer. Se eu estiver numa ilha deserta tenho o “direito” de me espreguiçar deitado na areia, por exemplo. Mas, num sentido mais estrito, sem aspas, um direito é uma obrigação moral da parte de terceiros, que têm o dever de zelar por algum interesse daquele que tem o direito. Por exemplo, o direito à educação, à justiça e ao voto. Isto não tenho numa ilha deserta porque não há lá ninguém com o dever de zelar por estes meus interesses.

No entanto, se eu estiver na ilha deserta, os animais de lá terão alguns direitos. Por exemplo, o direito de que eu não os torture. Não porque os animais da ilha percebam de ética – e é essa a confusão de muitos que questionam a noção de direitos dos animais – mas porque eu percebo o problema ético da tortura, o que me torna moralmente responsável por não torturar os bichos. Esta obrigação moral limita os meus “direitos” e concede direitos aos animais, porque torna ilegítimo que me entretenha a torturá-los. Esta distinção é importante porque há “direitos” que temos pelo simples facto de se tratar de actos moralmente irrelevantes, como espreguiçar, direitos (no sentido estrito) que temos por haver quem tenha obrigações morais para connosco, e há aquilo que temos de excluir dos nossos “direitos” (sentido lato) por termos obrigações morais para com outros.

A moral religiosa também sofre desta confusão. A diferença entre um direito e um pecado é atribuída à vontade de um deus, aparentemente pressupondo que, se alguém tem de traçar a linha entre o que é permitido e o que é proibido, mais vale que seja o Chefe a fazê-lo. Por exemplo, a masturbação é condenada por muitas religiões, alegando que o deus assim estipulou. Mas a restrição dos “direitos”, no sentido lato, só se justifica por uma obrigação moral de zelar por interesses de outrem. Como se costuma dizer, o direito de um acaba onde começa o direito do outro. Assim, a vontade de um deus só torna a masturbação é imoral se tivermos para com esse deus o dever moral de não nos masturbarmos. E, a menos que a omnipresença seja um atributo físico em vez de metafísico, isto não faz sentido. Nem um deus tem legitimidade para impor restrições dessas a tais actos privados.

É também esta confusão entre “direitos” e direitos que o sofrologista faz quando diz que eu estou «apenas a enunciar o [...] critério de delimitação dos direitos de propriedade», ao defender que não se pode ser proprietário de categorias abstractas. Não se trata apenas de delimitar os direitos do proprietário, porque os direitos de propriedade não são meros “direitos”. São direitos no sentido estrito. São o reverso de uma obrigação moral que todos os outros têm, de respeitar a propriedade dessa pessoa. Por isso, o problema não é apenas o limite dos “direitos” de um mas sim o de justificar essas obrigações por parte de todos os outros.

Com objectos materiais, é um facto que alguns usos por parte de uma pessoa excluem forçosamente um usufruto igual por parte de outros. Objectos materiais podem ser propriedade com ou sem direitos morais; a bem ou a mal. Por isso, os direitos morais de propriedade sobre bens materiais servem para resolver os conflitos associados às limitações que a natureza impõe. A decisão não é se todos temos o direito moral de usar a mesma escova de dentes ao mesmo tempo. Isso simplesmente não dá. O que a moral nos dá é o conjunto de regras que determinam quem usa qual.

Com bens imateriais isto não acontece. É possível usarmos o mesmo verbo, todos, e ao mesmo tempo. Ou a mesma música, ideia, equação ou sequência de bytes. Quando me oponho à concessão de direitos de propriedade sobre estas coisas não estou a querer limitar os “direitos” do proprietário. É o contrário. Estou a opôr-me às restrições que é preciso impor a todos os outros só para conceder a uma pessoa exclusividade sobre aquilo que pode ser livremente usado por todos.

Este problema é ainda mais grave quando, em nome dos direitos de propriedade sobre bens imateriais, se viola direitos de propriedade sobre bens materiais. Aqueles para os quais é mesmo preciso haver direitos de propriedade. Por exemplo, para que uma editora tenha exclusividade sobre a cópia de ficheiros mp3, por um injustificável direito de propriedade sobre essa sequência de números, é preciso que usurpe o meu direito de propriedade sobre o meu computador pessoal.

Como muita gente, o sofrologista acha que excluir categorias abstractas daquilo de que se possa ser proprietário é limitar os “direitos” dessa pessoa. Do cantor, do editor, do autor. Isto é falso. O que se passa é que conceder direitos de propriedade a essas pessoas implica impor a todos os outros obrigações que, pela natureza desses bens, não são moralmente justificáveis.

1- Comentário em O argumento moral.

domingo, novembro 06, 2011

Treta da semana: a Cultura Racional.

«A Cultura Racional é a cultura do desenvolvimento do raciocínio. A cultura natural da Natureza . É o conhecimento da origem do ser humano. De onde ele veio, como veio, porque veio e o retorno a sua origem, mostrando como o homem voltará ao seu estado natural de ser Racional puro, limpo e perfeito. Tudo isto através das mensagens do RACIONAL SUPERIOR, um ser extraterreno, publicadas nos Livros "UNIVERSO EM DESENCANTO".»(1) No site, a imagem com os pingos de água e a explicação em maiúsculas dão também uma boa ideia do que trata a Cultura Racional.

Há vários aspectos interessantes nisto, além do efeito soporífero das palestras do fundador do movimento, Manuel Jacinto Coelho, ideais para quem sofra de insónias.



Manuel Jacinto Coelho nasceu em 1903 e faleceu em 1991(2). No entanto, segundo testemunham os seus seguidores, quem alcança a Imunização Racional «continua a viver normalmente neste mundo físico, porém deixa de estar subordinado a ele e às vicissitudes da vida orgânica.»(3) Ou seja, pela Cultura Racional, seguindo os ensinamentos daquele que nos foi enviado pelo Racional Superior, podemos ter a esperança de vencer a morte tal como ele a venceu. Não a morte física, deste plano material, mas a morte num sentido metafísico e transcendente.

A Cultura Racional tem também um vasto corpo de conhecimento. A série Universo em Desencanto tem 1000 volumes, «3 livros do Obra Inicial […] 21 livros da Obra Básica […] 21 livros da Réplica […] 21 livros da Tréplica [e] 934 livros do Histórico ou Fascículos»(4). E todo este conhecimento foi revelado ao Manuel pelo Racional Superior, que habita no Mundo Racional, por meio da Energia Racional. Não se trata de teorias falíveis criadas por seres humanos limitados ao mundo empírico.

Finalmente, a ciência natural não pode provar que isto seja falso. Não há, nem pode haver, qualquer descoberta científica que refute as alegações do Manuel Jacinto Coelho ou o testemunho dos seus seguidores.

No entanto, apesar do testemunho de esperança de que podemos vencer a morte, do vasto corpo de conhecimento que alega ter, da sua fonte alegadamente infalível e transcendente, da impossibilidade de se refutar a doutrina da Cultura Racional e de estar até na Wikipedia, parece-me que a maioria das pessoas que ler este post vai concluir que isto é uma treta. E com razão. Nem é preciso acreditar, ler os 1000 livros que o Manuel escreveu, estudar aprofundadamente esta doutrina ou procurar provas materiais que a refutem.

O cepticismo justifica-se porque inventar tretas acerca do transcendente, do significado profundo, do destino último de tudo e do que acontece depois da morte não só é trivial como sempre foi um passatempo popular. Da história antiga à Internet, nunca faltaram tretas. Por isso, o mais sensato não é dar crédito a uma tese só porque parece atraente, ou sequer dar-lhe o benefício do agnosticismo só porque não se pode provar o contrário. Cada alegação é apenas mais uma num mar imenso de disparates, pelo que só se justifica considerar como minimamente plausíveis aquelas, poucas, que se destacam das restantes por algum fundamento objectivo. Não quando um diz que sim, outro acredita ou vem num livro, mas apenas se as forçam até o cepticismo a admitir que essa hipótese possa ser menos treta do que as outras. É esse crivo que leva a maioria a rejeitar doutrinas como a da Cultura Racional. É um bom primeiro passo. Falta agora dar o passo seguinte e perceber que o crivo não serve apenas para as crenças dos outros.

1- www.mundoracional.com.br. Obrigado pelo email com esta revelação.
2- Wikipedia, Manuel Jacinto Coelho
3- Wikipedia, Imunização Racional
4- Wikipedia, Universo em Desencanto

sexta-feira, novembro 04, 2011

O argumento moral.

A julgar pela opinião das poucas pessoas que ainda têm paciência para discutir copyright comigo, parece-me que a maioria se opõe à punição legal da partilha, para uso pessoal, de obras publicadas. Infelizmente, a lei que temos vem da pressão da minoria de negociantes e não da expressão da maioria dos eleitores. Quanto a isso, pouco mais posso fazer do que melgar*.

Mas, a par deste consenso acerca da lei, e baseando-me na mesma amostra reduzida, parece-me haver uma divergência importante acerca da moralidade do acesso gratuito. O Wyrm considera «que se um individuo procura o fruto do trabalho de terceiros e usufrui desse fruto, então fica moralmente "obrigado" a compensar o criador do tal fruto.»(1) As aspas confundem um pouco, mas vou arriscar e dizer que discordo.

Quem cria, produz, gere, vende ou aluga algo fá-lo por vários motivos. O poeta porque finge completamente sentir a dor que deveras sente, o músico porque quer dizer que ama, o actor para saber se há de ser ou não ser, e assim por diante. Mas um motivo comum é ganhar dinheiro. É um objectivo legítimo, e reconheço a todos o direito de tentar. Mas a primeira razão para discordar de que haja uma obrigação moral (com ou sem aspas) de dar dinheiro ao autor é que a sua tentativa de ganhar dinheiro não cria, por si só, qualquer obrigação moral em terceiros. O Wyrm acrescentou que o princípio que ele defende «é pacífico se estivermos a falar de bens [materiais]», só suscitando dúvidas pela natureza dos bens digitais. No entanto, nem aos bens materiais se aplica.

Vamos supor que eu monto um restaurante na praia e, para atrair mais gente àquela praia – potenciais clientes – contrato um nadador salvador, pago a limpeza regular da praia e monto chuveiros e casas de banho gratuitos. O tal princípio da obrigação moral implica que seria imoral trazer sandes de casa, passar o dia na praia limpa, sob a vigilância do nadador salvador, tomar duche de borla e ir embora sem me comprar nada. Mas eu proponho que não há imoralidade nenhuma nisso porque o meu investimento seria um exercício voluntário do meu direito de fazer negócio. Ninguém me deveria nada por eu tentar atrair clientes para obter mais lucro. Duvido que alguém se considere moralmente obrigado (ou “obrigado”, sequer) a comprar um champô só porque aproveitou as amostras gratuitas que estavam a oferecer no supermercado. Entre muitos outros exemplos. Aquilo que alguém faz para ganhar dinheiro não nos obriga a dar-lhe do nosso, mesmo que tiremos benefícios disso.

A outra razão é que descarregar e partilhar ficheiros mina apenas a parte do monopólio sobre a cópia para uso pessoal e não afecta o monopólio sobre a comercialização. Uma melhor analogia seria a de eu fazer um acordo com o município, ficando com o monopólio sobre a venda de bebida e comida na praia e, em contrapartida, comprometia-me a pagar o nadador salvador, os chuveiros e a limpeza da praia. Continuaria a ser uma decisão voluntária minha, que não obrigava ninguém a comprar-me o que fosse. Mas, além disso, as pessoas todas da praia já estariam a pagar o meu monopólio. Pagavam nos preços da comida na praia, muito mais altos do que seriam se eu tivesse concorrência na praia. Pagavam por perder o direito de vender comida naquela praia, um direito que seria só meu. E pagavam o sistema judicial que protegia o meu monopólio punindo quem tentasse vender ali sem a minha autorização.

É isto que se passa com os direitos patrimoniais do autor, e direitos conexos. Logo à partida, não é por alguém querer fazer dinheiro a vender as suas obras que eu fico moralmente obrigado a pagar-lhe seja o que for. Se o negócio lhe correr bem, parabéns, mas mesmo que eu beneficie pelo acesso a essas obras não fico a dever nada por isso. Além disso, mesmo sem obrigação moral já lhes estou a pagar o monopólio comercial que lhes concedem, pela distorção nos preços, pela proibição desse negócio a todos os outros e pelos custos do sistema judicial que protege esse monopólio.

Reconheço que um artista precisa de ganhar dinheiro para ser um profissional. E aceito que é boa ideia dar dinheiro a quem tem talento para podermos usufruir daquilo que essas pessoas criam. No entanto, essas decisões devem ser voluntárias de ambas as partes, e conforme os interesses de cada um. Não são obrigações morais. Quem partilha ficheiros de obras publicadas pode estar a violar uma lei injusta mas não está a faltar a qualquer obrigação moral de financiar os negócios dos outros. Porque, sem um compromisso prévio, nem o artista é moralmente obrigado a nos entreter com a sua arte nem nós somos moralmente obrigados a pagar-lhe por isso.

* E assinar o pedido de oficialização do Partido Pirata Português. A ver se trato disso também, para não ser só melgar...

1- Comentário em Venham mais vinte...

quinta-feira, novembro 03, 2011

Compatíveis... pois...

John Haught, teólogo católico, é um dos defensores da tese de que a fé (católica) é compatível com a ciência. Jerry Coyne, biólogo ateu, é um dos defensores da tese contrária, de que ciência e religião não são compatíveis. No dia 12 de Outubro falaram ambos num simpósio sobre este tema, a compatibilidade entre ciência e religião.

John Haught fez o que os teólogos costumam fazer. Alegou haver várias interpretações metafóricas de crenças religiosas que não são incompatíveis com aquilo que a ciência propõe serem os factos. Que existe algo divino e transcendente, que há um sentido último, sempre misterioso, que o podemos sentir pela fé mas nunca compreender pela ciência e coisas assim. Mas evitou sempre a questão essencial. É irrelevante que seja possível fazer afirmações gratuitas que, não dizendo nada em concreto, também não contradizem a ciência. Ou o que quer que seja. O problema é que a ciência não é compatível com a decisão de ter fé em tais coisas.

O Jerry Coyne perdeu algum tempo a falar dos malefícios do cristianismo, o que não é muito relevante para a questão de ser ou não compatível com a ciência, mas focou o principal. A ciência é um processo que usa a dúvida para evitar encravar nos erros. Principalmente no auto-engano. Se questionarmos qualquer alegação, procurarmos hipóteses alternativas e só cedermos a nossa confiança, com relutância e provisoriamente, àquelas hipóteses que a isso nos obrigarem pelo peso das evidências, sempre vamos corrigindo os erros. Não podemos evitar errar, mas pelo menos temos a possibilidade de notar quando erramos e a disposição para o admitir e escolher alternativas. E isto é incompatível com a fé. A fé é a confiança dedicada e persistente na crença de que as coisas são como se julga. A ciência é a dúvida rigorosa e sistemática que vai moldando as crenças àquilo que as coisas são.

O vídeo das duas intervenções está disponível no site do simpósio (1). Mas foi por pouco. Numa atitude pouco compatível com o debate aberto que é essencial em ciência, e mais próxima da prepotência que as religiões manifestam sempre que podem, John Haught inicialmente impediu a divulgação do vídeo (2), alegando que «a discussão em Kentucky raramente se elevou ao nível de um encontro académico»(3). Apesar de ser apenas um incidente pontual, esta atitude de Haught é mais um exemplo da incompatibilidade entre querer saber e ter fé que já se sabe. É verdade que há cientistas religiosos. É verdade que se pode apresentar algumas crenças religiosa de forma tão vaga e abstracta que nada as possa contradizer. Mas a disposição para ajustar as ideias às evidências é incompatível com a dedicação incondicional a uma crença.

1- 2011 Bale-Boone Symposium Videos, Science and Religion: Are They Compatible?
2- Why Evolution is True, Theologian John Haught refuses to release video of our debate. Obrigado ao leitor AF pela dica.
3- Why Evolution is True, Under pressure from blogosphere, Haught explains and relents

terça-feira, novembro 01, 2011

Ciência, metafísica e filosofia.

Uma coisa que me dizem muitas vezes é que não posso exigir “provas científicas” para alegações que, apesar de serem acerca de factos, se rotulam de metafísicas ou filosóficas. A ideia parece ser de que há jogos diferentes e, por simples troca de etiquetas, o que é claramente falso num passa a verdade indubitável no outro. Cientificamente, a hóstia fica na mesma. Metafisicamente, dá-se um milagre. Treta.

A filosofia procura a compreensão pelo raciocínio metódico e pelo diálogo racional e crítico. A ciência também, e aquilo que hoje chamamos ciência chamou-se, durante séculos, filosofia natural. Agora prevalece a ideia de que a ciência lida com o que é empírico e a filosofia lida apenas com o resto, como a ética e a metafísica. Mas esta ideia é errada. É certo que filosofia abarca muita coisa, dos silogismos de Aristóteles aos dramas de Sartre, da ironia de Kierkegaard à lógica matemática de Russell. Mas muito na filosofia – como a filosofia da mente, da linguagem e da ciência, só para dar alguns exemplos – depende de dados experimentais, exactamente como a ciência. Não há uma fronteira clara a partir da qual uma investigação filosófica passa a ser científica. Esta distinção deve mais a decisões subjectivas de nomenclatura do que a diferenças objectivas entre as abordagens.

A alegada diferença entre ciência e metafísica é outra ficção. Conveniente, mas fictícia à mesma. Consideremos, por exemplo, os postulados de Koch. Se um micróbio está presente nos organismos doentes e ausente nos saudáveis, se depois de purificado e inoculado num hospedeiro saudável este passa a manifestar a doença, e se depois pode ser isolado desse hospedeiro doente, então considera-se cientificamente estabelecido que esse micróbio causa essa doença. À primeira vista, é uma questão empírica e científica sem nada de metafísico.

Mas a relação de causalidade é metafísica. Empiricamente, a única coisa que se pode estabelecer é uma correlação. Sabemos que o micróbio está lá, depois o animal adoece, depois isolamos o micróbio, e assim por diante. Se a ciência, como apregoam, se limitasse ao empírico, nunca poderíamos dizer que o micróbio causa a doença. Apenas se poderia afirmar que, nos casos conhecidos, a doença se correlaciona com a presença do micróbio. Esta seria uma afirmação muito mais limitada. Por exemplo, nesse caso a ciência nunca poderia dizer o que me teria acontecido se não tivesse tomado a BCG e me tivessem inoculado com o bacilo da tuberculose aos 5 anos. Empiricamente, é impossível determinar o que teria acontecido quando não aconteceu. Não faz parte do conjunto de casos conhecidos onde se possa medir correlações. Mas a ciência responde que esse bacilo causa tuberculose e que, por isso, se eu não tivesse tomado a vacina e me tivessem inoculado com o bacilo eu certamente teria apanhado tuberculose. A causalidade, a explicação, o relato de como as coisas acontecem, tudo isso é científico e é metafísico. Se a ciência fosse estritamente empírica estaria limitada a listas de observações do género “este aparelho indicou aquele valor”. E talvez nem isso.

O que não quer dizer que estes aspectos metafísicos do relato científico não sejam testáveis. Não são directamente testáveis, porque a explicação e a causalidade, por si, não são nada que se possa observar. Mas são indirectamente testáveis porque explicações e relações entre causa e efeito implicam restrições àquilo que se espera observar. E a metafísica inclui o estudo de conceitos como o tempo e o espaço, que a ciência tem elucidado, e foi de um cepticismo metafísico que surgiu a epistemologia, o estudo de como podemos saber o que julgamos saber, e a filosofia da ciência, que é também uma ciência da ciência, visto que ninguém consegue fazer filosofia da ciência que valha qualquer coisa sem testar hipóteses contra o que observa os cientistas a fazer.

Invocar a desculpa fácil de que certa alegação não carece do fundamento que deveria ter por ser metafísica ou filosófica assume serem desconexos estes aspectos da nossa compreensão que estão interligados. Explicações, causalidade, relatos acerca do que a realidade é para além do que observamos, ou são um misto de filosófico, metafísico e científico ou não servem para nada. E, ao contrário do que muitos parecem crer, os rótulos de “metafísico” ou “filosófico” não têm o poder mágico de tornar disparates em verdades.