Esta semana, no “Edição da Noite”, o Alfredo Barroso e o António Capucho conversaram sobre os “tecnocratas” da Europa (1). São a figura mitológica do momento, estes supostos crânios da economia, isentos de ideologia política e unânimes a recomendar austeridade como cura para qualquer maleita (2). O António Capucho chegou até a defender que era bom esses tais “tecnocratas” tomarem o poder na Grécia e na Itália, acabando com aquelas mariquices da democracia como eleições e referendos, e disse serem «homens de pouca fé»(1) aqueles que não confiarem na austeridade tecnocrata para nos salvar. Isto é uma treta.
Em detalhe, a situação económica da União Europeia é um caos. Mas, em traços largos, nem é muito complicada. Como em qualquer Estado, há partes mais ricas, que produzem mais, vendem mais e têm de conceder crédito para escoar o que produzem. E há partes mais pobres, que compram mais do que podem pagar e contraem dívidas. Em qualquer Estado, estes desequilíbrios resolvem-se de várias maneiras. A mobilidade laboral leva pessoas das zonas pobres para as mais ricas, deslocando também o consumo, as transferências do erário e a política fiscal contrariam as transferências privadas, e o banco central pode sempre garantir liquidez e, pela inflação, ir diminuindo o peso das dívidas.
Infelizmente, a UE não é um Estado. Línguas e hábitos diferentes dificultam a mobilidade. Se umas dezenas de milhões de gregos começassem a procurar emprego na Alemanha, provavelmente muita gente repensava isto da austeridade. Mas é pouco provável que o façam e, mesmo que em teoria o pudessem fazer, se tentassem acabava-se logo a UE. As transferências de dinheiro público dentro da UE também são pequenas, muito abaixo do que acontece dentro de qualquer país e muito aquém do que seria preciso para equilibrar as contas. E o Banco Central Europeu foi concebido por banqueiros que convenceram os políticos – mais com lugares de administração do que com argumentos, presumo – de que o ideal é um banco central que não pode emprestar dinheiro aos Estados, só aos bancos privados, e que serve principalmente para manter a inflação baixa. Dê lá por onde der. Agora, o BCE fica a soprar o chá enquanto a casa arde.
A austeridade não vem dos tecnocratas. Economicamente, a melhor solução para o problema financeiro da UE seria a inflação. Aumentava as exportações para fora da UE, aumentava o PIB nominal de cada país – tornando as dívidas mais leves – e evitava a recessão. As medidas de austeridade são um disparate porque são medidas recessivas que vão contrair o PIB dos países devedores e levar inevitavelmente ao default (3). Em parte, o problema é político no bom sentido, no sentido da democracia e da vontade da maioria. Os eleitores nos países mais ricos, como a Alemanha, terão naturalmente relutância em aceitar uma perda de poder de compra para safar os outros. Mas este não será o problema principal, porque há vantagens claras para todos em manter a UE a funcionar. Afinal, o emprego dos eleitores alemães depende de haver quem continue a comprar os produtos e serviços que eles fornecem.
O problema principal é político no pior sentido. Não pela influência da maioria nos países mais ricos, mas pela influência da minoria dos mais ricos em todos os países. Mesmo em Portugal, na Grécia e na Itália, há gente com muito dinheiro, e bolsos cheios de políticos, a quem a inflação não convém mas a austeridade não preocupa. Desde que sobre polícia para arrear nos manifestantes, os milionários aguentam bem os cortes no subsídio de desemprego, pensões e serviço nacional de saúde. A austeridade até lhes permite comprar empresas públicas ao preço da uva mijona. É a esses que convém a ilusão da austeridade vir dos “tecnocratas”. Tem de ser mesmo assim, são questões técnicas complexas, os economistas é que sabem, e assim por diante.
Ainda a propósito deste assunto, uma menção honrosa para o “raciocinio” do José Manuel Fernandes: «Depois do preço elevadíssimos que os trabalhadores do sector privado estão a pagar em desemprego, em empregos sub-pagos, em intranquilidade, em diminuições salariais e por aí adiante, falar em equidade quando se propõe que paguem ainda mais taxas e impostos é próprio de quem, bem ou mal, quase só conhece o relativo conforto de se ser empregado do Estado.»(4) Não é verdade que, para o mesmo nível de formação, se ganhe mais no sector público do que no privado. Pelo contrário. E as maiores reduções salariais, recentes e propostas, são nos funcionários públicos. Mas a maravilha do raciocínio está em inferir que não se deve cobrar tanto ao sector privado porque «o número de desempregados [...] saltou de 425 mil para perto de 700 mil». Cobrar o subsídio de Natal e de férias aos trabalhadores do sector privado que ganhem mais dificilmente prejudicaria os desempregados. E sempre se podia subir menos o IVA ou não cortar tantas prestações sociais, isso sim coisas que prejudicam os que mais sofrem com a crise.
E a razão principal, em maiúsculas e tudo, é que «NÃO HÁ DINHEIRO.» Se o dinheiro crescesse nas árvores, o José até poderia ter razão. Mas o dinheiro faz-se nos bancos. Economicamente, a decisão é apenas quanta inflação vamos aceitar, porque para fazer dinheiro é só imprimir. Ou nem isso, hoje em dia. Infelizmente, a maioria de nós está mais habituada à economia da família do que à dos bancos centrais, e facilmente cai nesta treta. Como a desculpa dos “tecnocratas”, o “não há dinheiro” é outra forma fácil de fingir que ideologias são factos.
1- Edição da Noite, Alfredo Barroso e António Capucho
2- I, Isto só lá vai com heróis da tecnocracia: Super Mario e Capitão Papademos
3- Obviamente, não vão por mim. Vejam, por exemplo, aqui, ou aqui, e, especialmente, aqui.
4- José Manuel Fernandes, Peço desculpa aos funcionários públicos, mas…