Treta da semana: Duh...
Os criacionistas têm alguma dificuldade – ou relutância – em lidar com o óbvio. O Marcos Sabino escreveu que «O Ludwig parece entender “processos naturais” como tudo aquilo que acontece na natureza e, partir daí, acha legítimo dizer que todos os dias surgem novos seres vivos por processos naturais. Se essa for a definição de “processos naturais”, então é verdade que os seres vivos se criam através de processos naturais.» Não é o que me parece entender nem é a minha definição. É o uso comum dos termos. Os processos naturais são o que ocorre na natureza, em contraste com os alegados efeitos sobrenaturais de um ser hipotético que manipula a natureza de fora. «Mas não é a esse tipo de “processos naturais” que os criacionistas se referem»(1), continua o Marcos, sem explicar que processos naturais serão esses que não ocorrem na natureza.
O Mats tem uma dificuldade semelhante. «O pior naturalista não é aquele que o proclama sem rodeios, mas sim aquele que o esconde por trás do manto da tão-mal-definida “ciência”. O ateu evolucionista Ludwig Krippahl é um bom exemplo.»(2) Julgo que o meu naturalismo é bastante óbvio. É uma ferramenta indispensável porque assumir à partida que um fenómeno é sobrenatural impede-nos de perceber o que o causou. Não podemos desvendar o mecanismo dos milagres nem compreender os processos de intervenção divina. Por isso o ponto de partida tem de ser um conjunto de hipóteses acerca de causas naturais. Só estas podem ser testadas e destiladas em teorias coerentes que expliquem o que se passa.
Mas este naturalismo é metodológico. O Mats acusa-me de julgar saber «qual é o propósito final da ciência», mas o naturalismo não é o “propósito final”. É apenas o ponto de partida. A conclusão final depende dos resultados. Para verificar se uma moeda é equilibrada começamos por assumir que é porque essa hipótese permite calcular a probabilidade de cair em cada face, 1 em 2. Mas depois de a lançar várias vezes podemos concluir que, afinal, não estava equilibrada, se o resultado for incompatível com essa hipótese inicial. O naturalismo metodológico da ciência funciona assim. Começamos por assumir mecanismos naturais por trás do que observamos porque só desta forma podemos formular hipóteses testáveis. Mas se nenhum mecanismo natural for compatível com os dados teremos de concluir que o fenómeno é sobrenatural. Só que, até agora, temos encontrado sempre mecanismos naturais que explicam bem os dados que este universo nos fornece. Não parece ser preciso milagres.
Este problema do criacionismo é óbvio para quem não é criacionista. Assumir que tudo foi criado por um ser omnipotente impede qualquer investigação. É uma premissa estéril, não permite hipóteses testáveis e condena os criacionistas a ficar pasmados, assombrados, e ignorantes.
Outra confusão óbvia do Mats e do Marcos, nos seus blogs, e do Jónatas Machado nos comentários aqui (por alguma razão, o Jónatas ainda não conseguiu criar um blog), é no termo “informação”. No sentido coloquial, esta palavra implica consciência e inteligência porque informar é transmitir alguma ideia a alguém. Mas no sentido técnico o termo nem sempre implica inteligência. Pode ser uma propriedade de sequências abstractas de símbolos, da execução de programas no computador ou até de marcas na lama. A impressão da pata do cão copia informação da pata para a forma da lama. O que não implica códigos inteligentes. Em certa medida, um cão a passear sobre a lama aumenta a quantidade de informação desse sistema sem recurso a qualquer código inteligente.
O Marcos Sabino afirma também que «os animais se reproduzem sempre de acordo com o seu tipo, tal como refere o primeiro capítulo de Génesis. E isto é um facto científico. Observa-se os seres vivos a procriarem de acordo com as suas espécies». Se dois organismos se cruzam e dão um filho fértil então pertencem os três à mesma espécie. Não porque a espécie seja uma barreira à reprodução mas porque é assim que nós definimos “espécie”. E o caso do criacionista é ainda pior porque a égua e o burro podem-se cruzar e ter uma mula. Para salvar a regra bíblica, os criacionistas dizem que são do mesmo tipo e fecham por completo o círculo do seu argumento. Para qualquer outra pessoa é óbvio que, se podemos definir “tipo” como quisermos, então não quer dizer grande coisa que a reprodução seja segundo o tipo.
A classificação dos fósseis também baralha os criacionistas. O Marcos Sabino escreve que «O mais antigo fóssil de morcego que se conhece mostra que eles sempre foram morcegos». Duh. O fóssil mais antigo de morcego é classificado como morcego porque, se fosse classificado como outra coisa qualquer, já não seria o mais antigo fóssil de morcego. Isto só mostra que tudo o que classificamos como fóssil de morcego é considerado um fóssil de morcego.
Concluindo por hoje, o Marcos escreve que «os evolucionistas acreditam que [...] um ser vivo adquiriu informação genética que os seus progenitores não possuíam[...]. É aí que entra a fé evolucionista. Nunca ninguém viu tal acontecer.» O que ninguém viu acontecer foi o deus do Marcos a criar bicharada. Em contraste, filhos com genes diferentes dos pais há por aí aos montes.
1- Marcos Sabino, Resposta ao Ludwig – Com muita fé se constroem árvores da vida imaginárias.
2- Mats, Ciência e Certezas Naturalistas