terça-feira, agosto 26, 2008

O cu e as calças.

«A fim de que os leitores deste blogue não aceitem acriticamente os argumentos do Ludwig Krippahl», o Jónatas Machado comentou algumas afirmações que disse que eu proferi (1). Agradeço o esforço e lamento não poder dar à monografia a atenção que merece por ser o triplo do que me permito escrever num post. Focarei apenas o ponto 4 que alega eu ter defendido «a incompetência do designer argumentando com o sistema digestivo das vacas e os seus excrementos.» É, às vezes, a sensação que me dá. Mas não era esse o destinatário do meu argumento, que nem era sobre o intestino da vaca em si. Era sobre a digestão da celulose (2).

Nos mamíferos falta o pedacito de ADN que sintetiza a enzima que digere a celulose. Há em fungos, bactérias e até protozoários mas não em mamíferos. Daí a complicada digestão da vaca, que precisa de bactérias que lhe digiram erva, e a infeliz digestão do coelho que, por guardar as bactérias junto ao ânus, tem que comer ao pequeno almoço o que comera ao jantar. Literalmente. Argumentei que isto não sugere uma criação inteligente. Mesmo como piada seria um humor infantil. Nessa linha, prossegue o Jónatas.

«Esquece porém que esse argumento, levado às últimas consequências, nos obrigaria a comparar o cérebro do Ludwig com o sistema digestivo das vacas e os pensamentos do Ludwig com os excrementos das vacas. E poderíamos ter dúvidas sobre qual funciona melhor, já que para o Ludwig todos seriam um resultado de processos cegos e destituídos de inteligência.»

Num debate devemos interpretar cada argumento da forma mais favorável a quem o profere. Ao contrário de um julgamento, o objectivo não é safar o cliente nem punir o prevaricador. É apurar a verdade, e isso exige boa vontade. Daí o meu dilema. É que não sei se será pior interpretar isto como um insulto fraco ou se assumir que o Jónatas defende que se pensar e digerir forem processos naturais então o pensamento é excremento. Por isso passo à frente.

«[...] os criacionistas têm uma visão mais benigna do cérebro do Ludwig e dos seus pensamentos. As premissas criacionistas partem do princípio de que o Ludwig é um ser racional porque foi criado à imagem e semelhança de um Deus racional.»

Finalmente uma parte que consegue estar errada. Pode não parecer um grande feito mas, no contexto, sobressai pela positiva. É o problema recorrente (3) das explicações à criacionista. O Mats dá outro exemplo num post intitulado «Deus É a Explicação Mais Lógica»(4), onde um vídeo afirma que como o universo teve um início a melhor explicação é que Deus existe. Mas isso nem sequer é explicação.

Uma explicação é uma proposição que, no contexto do que sabemos, permite concluir o que queremos explicar. Por exemplo, que o copo está partido no chão porque caiu. O que sabemos permite concluir que o copo se parte nessas condições, por isso é uma explicação. E é uma boa explicação porque nos dá informação nova e testável acerca do que aconteceu sem invocar coisas das quais nada podemos saber. Em contraste, “Deus existe” não é explicação porque disto nada se conclui acerca do universo. E “Deus criou o universo” parece uma explicação mas é como “Deus partiu o copo”. Demasiado rebuscada por postular o tal Deus do qual nada se sabe e insatisfatória porque nos deixa na mesma acerca do que aconteceu.

O mesmo se passa com a hipótese de eu ser inteligente porque Deus me criou à sua «imagem e semelhança». Não explica nada. Não tenho maneira de saber como Deus é nem inferir o que tenho de semelhante a Ele. Não devem ser os meus testículos, pêlos do nariz, pés, mãos, fígado ou intestino, que parecem atributos pouco divinos. Nem mesmo a minha inteligência, que é uma ferramenta que uso para antecipar acontecimentos, planear acções e resolver problemas. A um Deus omnisciente que existe fora do tempo isto faz tanta falta como ser sócio do Círculo de Leitores. E mesmo assumindo que Deus tem uma inteligência divina qualquer há o problema da minha não ter nada a ver com isso. Esta “explicação” inventa coisas que ninguém pode saber sem adiantar de nada.

Mas há uma coisa na qual o criacionismo desafia a teoria da evolução. É em explicar como quatro mil milhões de anos de modificação e selecção natural de características herdadas foram dar um disparate tão grande...

1- Comentário em Pegas.
2- Miscelânea Criacionista: Design Incompetente.
3- Inferências
4- Mats, 24-8-08, Deus É a Explicação Mais Lógica

14 comentários:

  1. "É em explicar como quatro mil milhões de anos de modificação e selecção natural de características herdadas foram dar um disparate tão grande..."

    LOL, não sabes que os caminhos de Deus são insondáveis?
    Cristy

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  2. Bom dia Ludwig,

    sigo o teu blog desde ha bastante tempo. Antes de mais, parabens pelo consistente e refrescante metodo pelo qual tratas temas variados, que me interessam (especialmente a treta dos direitos de autor/exploracao do consumidor).

    Nunca fiz nenhum comentario, mas dado que hoje acordei de rabo para o ar e li tantas parvoices no jornal hoje de manha, aqui fica o meu primeiro comentario.

    "Criacionistas" como os que citas neste artigo, sao um desperdicio da capacidade humana. Deixem-se de palhacadas. E interessante ver o esgrimir de argumentos por parte de pessoas que sem duvida sabem argumentar. Mas, sinceramente, perder tempo a tentar defender o pai natal ou o elefante cor de rosa hoje revolta-me. Por isso fica o meu apelo a estes dois criacionistas: usem o vosso intelecto para coisas uteis e deixem-se de palhacadas. O pai natal nao existe, deus nao existe e tudo o mais de inutil que possam pensar nao existe.

    Sinceramente,

    Daniel

    P.S. Ja la vai uns anos que nao escrevo ou falo portugues, por isso facam la um desconto nessa parte

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  3. Concordo Daniel. Já me farta esta noção de que a evolução é "apenas" uma teoria. Que falsidade. A evolução é um facto, cuja "teoria" da evolução tenta explicar, e esta teoria é comprovada, testada, reproduzida, e faz parte de tecnologias emergentes.

    Qualquer intenção de negar estes simples factos se devem apenas à pura falta de inteligência somada a um grau insensato de voluntarismo ou então a uma tentativa premeditada de destruir o legado científico e educativo que constitui a base da sociedade tecnológica que temos o privilégio de viver.

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  4. Sobre a excelência de todo um trabalho do Criador, uma ou outra aguarela.

    É a perfeição, estúpidos.

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  5. Daniel,

    Obrigado pelo comentário. É verdade que os argumentos dos criacionistas são disparatados, mas não podemos assumir que todos os criacionistas também são. É que o objectivo deles não é apurar a verdade mas evangelizar e obter poder político. Se for preciso dizer disparates ou aldrabices não se coíbem...

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  6. Ludi may friend,

    Sobre o post digo:

    «A fim de que os leitores deste blogue não aceitem acriticamente os argumentos do Ludwig Krippahl»

    Sim porque normalmente é isso que acontece, duhhhhhh

    «Esquece porém que esse argumento, levado às últimas consequências, nos obrigaria a comparar o cérebro do Ludwig com o sistema digestivo das vacas e os pensamentos do Ludwig com os excrementos das vacas. E poderíamos ter dúvidas sobre qual funciona melhor, já que para o Ludwig todos seriam um resultado de processos cegos e destituídos de inteligência.»

    Beje, vou pintar o quarto de beje...

    Beiiiijos

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  7. "É que o objectivo deles não é apurar a verdade mas evangelizar e obter poder político."

    É isto mesmo. E tb por isto que têm de ser desmascarados, ridicularizados e humilhados sem dó nem piedade.

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  8. Olha aqui ao lado:

    http://dererummundi.blogspot.com/

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  9. A ver se é desta:

    http://dererummundi.blogspot.com/2008/08/estrela-da-cincia.html

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  10. Vamos tentar isto outra vez assim é revelia que pode ser que o perspectiva se distraia e responda á pergunta...

    Caro Perspectiva,

    Qual seria a prova científica que faria o Perspectiva por em causa a veracidade da existência do seu deus? Considerando que aceitaria alguma.

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  11. Mas há uma coisa na qual o criacionismo desafia a teoria da evolução.

    Não há desafio nenhum, Ludwig. A resposta é simples. A selecção natural (e artificial) favorece todas as ideias, culturas, predisposições mentais e atitudes que melhorem a capacidade de sobrevivência de determinada sociedade perante o mundo que a rodeia. Não é preciso grande inteligência para ver que a obediência cega e o apegamento irracional à "trupe" são questões geralmente mais importantes (no sentido da prolferação da "espécie") do que a busca pela racionalidade e senso.

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  12. Ludovico,

    Você tem consciência que os crentes são como as lapas, quando mais puxa mais elas se agarram.

    Portanto isso é alguma profissão de fé, ou quê? Pun intended. ;)

    W

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  13. Joaninha,
    Obrigada pela gargalhada que me fizeste dar. Hoje estava mesmo a precisar
    Cristy

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  14. Wyrm,

    Infelizmente, muitos crentes não são como as lapas. As lapas ficam sossegadas e não incomodam ninguém.

    Por exemplo, neste momento o programa da disciplina de religião e moral leccionado no ensino secundário em Portugal inclui uma versão evangélica criacionista. Ao contrário das lapas, estes crentes estão a usar o dinheiro dos nossos impostos para ensinar às crianças que o que aprendem em biologia é mentira...

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