segunda-feira, março 07, 2016

Debate: A violência com nome de religião.

Na próxima quarta-feira, dia 9 de Março, vou participar no debate “A violência com nome de religião”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Será às 18h00 na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa). Participarão também Abel Pego, António Matos Ferreira, Esther Mucznik e David Munir. Mais detalhes na página do evento: Violência religiosa e violência com nome de religião.

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Treta da semana (atrasada): e o problema do alakazam.

Estas coisas são como as cerejas. Acerca do meu post sobre o problema do mal, apesar de admitir que os exemplos que dei ilustram «estados de coisas maus M, que consideramos moralmente errado, [e] devemos fazer tudo para [...] prevenir», o Domingos Faria afirmou, no entanto, que «se Deus existe, ele não pode eliminar tais estados M sem que também elimine estados de coisas bons que os superam, nomeadamente o livre-arbítrio». Indo mais longe, Faria alega até que «se é melhor um mundo com livre-arbítrio do que sem livre-arbítrio, Deus pode ter uma razão para permitir todos os estados de coisas que resultam do livre-arbítrio, quer tais estados sejam morais quer sejam imorais» (1). Isto cria mais problemas do que resolve.

Primeiro, permitir «todos os estados de coisas que resultam do livre-arbítrio» não nos diz se é o livre-arbítrio do violador se o da vítima, se do opressor ou do oprimido, se do caçador ou da presa. E não se vislumbra justificação moral para Deus resolver tais conflitos sempre em favor do mais forte. Em segundo lugar, os tais «estados M» não são letras abstractas. Há dias, uma mulher transtornada tentou suicidar-se no Tejo com duas filhas pequenas. As filhas acabaram por morrer. Neste “estado M” não há vestígios de qualquer valor moral superior que Deus tenha protegido ao permitir tal desfecho. Não foi o livre-arbítrio das vítimas mortais, uma bebé e outra com 4 anos. Também não deve ter sido o livre-arbítrio da mãe, considerando o estado em que estava e o desespero que a assolou em seguida. Compreendo que Faria tenha de chamar a isto um “estado M” para conseguir dizer que protege “coisas boas que o superam”. Dava cabo da tripa se enfrentasse o concreto em vez de gesticular em abstracto. Compreendo, mas não aceito.

A tese de que Deus fez neste o melhor de todos os mundos possíveis também é inconsistente com outras partes da mitologia Cristã. O Paraíso devia ser melhor do que a Terra. Deus teria até evitado muito mal e sofrimento se tivesse criado, logo no Paraíso, somente as pessoas destinadas a ir lá parar. O Inferno também está a mais. Não deverá haver “coisas boas” que superem o sofrimento eterno de forma a justificá-lo moralmente. Mas discutir isto é como discutir a diferença molecular entre a kryptonita verde e a kryptonita vermelha. Mais interessante será considerar os detalhes desta hipótese de vivermos no mundo ideal, criação de um deus perfeito.

Imaginemos um universo hipotético igual ao nosso em quase tudo excepto que, nesse outro, basta apontar o dedo e dizer “alakazam” para fazer alguém irromper em chamas e morrer num sofrimento horrível. Porque eliminar essa possibilidade resulta num universo melhor, Deus terá criado este nosso universo onde é inócuo apontar o dedo e dizer “alakazam”. Livrou-nos de um mal sem eliminar “coisas boas” como o livre-arbítrio. Até aqui parece fazer sentido. Mas, no nosso universo, podemos obter o mesmo efeito regando alguém com gasolina e atirando um fósforo. E é tão mais fácil quanto mais indefesa for a vítima. Um bebé, uma pessoa amarrada ou com as pernas partidas, por exemplo. Ou seja, Deus consegue impedir que se incinere pessoas com um dedo e “alakazam”. Isto não elimina “coisas boas de maior valor”. Mas se for com gasolina e um fósforo então já não dá. Sendo esta diferença irrelevante, quer para a moralidade quer para o livre-arbítrio, a proposta de Faria não faz sentido.

Acontece o mesmo pelo outro lado. Imaginemos um universo hipotético no qual ninguém sofria de insanidade, doença de Alzheimer, psicoses ou depressões. Estas maleitas causam males e sofrimento além de degradarem o livre-arbítrio. Segundo Faria, isso não pode ser melhor do que o nosso universo senão era assim que Deus o tinha feito. Temos de assumir que alguma “coisa boa” desconhecida compensa todos os problemas mentais e não pode existir sem estes. O mesmo para os nossos reflexos. Se fossem melhores haveria menos acidentes. Deve haver alguma “coisa boa” desconhecida nos acidentes. Que nem pode ser o livre-arbítrio porque são acidentes. Do cancro à unha encravada e do tsunami ao granizo, para cada mal tem de haver um bem desconhecido. Milhões e milhões e milhões de “coisas boas” que ninguém faz ideia se existem.

Seja o que for que se observe, é sempre possível conjecturar várias explicações. Por isso, problema de compreender a realidade é sempre o problema de escolher a melhor entre várias explicações alternativas. Neste caso, uma explicação é a de que este universo é governado por um deus infinitamente bom que criou tudo para ser o melhor possível. Esta explicação complica mais do que explica. Para cada mal que se observa, exige assumir um bem desconhecido que o compensa. Para cada melhoria que pareça possível, exige alegar um mal desconhecido que a anula. Fica tudo tão pejado de bens e de males ocultos que nem com a criança a afogar-se é possível saber se é melhor salvá-la ou deixá-la morrer.

Há muitas explicações alternativas. Muitas religiões, muitas cosmologias, muitos contos, lendas e teorias. Mas, neste momento, há uma explicação que se destaca. É a de que as regularidades do universo se devem a factores impessoais que não são bons nem maus. Esta explica-os em detalhe em teorias como a da evolução, relatividade ou mecânica quântica. Esta explicação dispensa os incontáveis bens e males ocultos que a outra exige e deixa a moral a nosso cargo. Esta explicação diz-nos que é possível melhorar as coisas e diz-nos exactamente o que precisamos fazer para isso. Esta explicação diz-nos o que vai acontecer antes que aconteça, e acerta no que prevê, em vez de só debitar desculpas para o que já aconteceu. Esta explicação não precisa de deuses invisíveis, nem de milagres, nem de fé ou mistérios que nunca se possa desvendar. Esta é a melhor explicação.

1- Treta da semana (atrasada): o problema da má lógica.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Ciência, transportes e tretas.

Nos poucos séculos desde que se reconheceu o seu potencial, a ciência tem acelerado imenso a nossa compreensão da realidade. Mas o fervilhar constante de descobertas científicas e avanços tecnológicos é uma situação inédita na história da humanidade. Durante centenas de milénios, o normal foi cada um morrer numa sociedade com o mesmo conhecimento e tecnologia que tinha quando nascera. Até recentemente, o progresso foi raro, pontual e imprevisível. Esta mudança rápida e a impiedade com que a ciência desmascara tretas causam conflitos com tradições influentes que nos chegam de outros tempos. Reconhecendo a insensatez de contradizer a ciência perante audiências mais esclarecidas, os defensores destas tradições tentam disfarçar o conflito de várias maneiras. Por exemplo, a astrologia faz muitas contas para parecer científica. O criacionismo inventa uma diferença entre “ciência operacional” e “ciência histórica” para alegar que o rigor objectivo da ciência só se aplica ao presente, enquanto que o passado pode ser explicado pela fé e por milagres. A teologia diz ser uma via paralela de conhecimento e ter regras próprias. Assim, quando propõe que uma certa mulher engravidou virgem por intervenção divina, a biologia, medicina ou fisiologia não têm nada que ver com o assunto. Só se a alegação vier de outra religião, acerca de outra mulher e de outro deus, é que já se pode usar a ciência para desmascarar tal crendice como superstição de pessoas ignorantes.

Além da diversidade dos truques e da arbitrariedade destes critérios, a ciência é demasiado complexa para se detalhar facilmente o que cabe lá dentro e o que fica de fora. Lakatos até propôs que não se delimitasse a ciência pelos detalhes de cada momento mas apenas pelo decurso do processo, que será científico se produz conhecimento e não-científico se só protege ideias ultrapassadas. Por isso, não é razoável procurar uma lista de verificação com detalhes onde possamos marcar as caixinhas e decidir se algo é ou não é ciência. O melhor antídoto para os truques das tretas é uma noção clara do que faz a ciência ser o que é.

O conceito de “meios de transporte” tem de abarcar coisas muito diferentes, de mulas a aviões e de petroleiros a patins. Por isso, é fútil tentar delimitar este conceito por detalhes como tamanho, combustível ou número de rodas. Mas é fácil percebê-lo considerando o propósito de ajudar a transportar coisas. Assim, se alguém alegar que uma estátua de mármore é um meio de transporte porque tem a forma de um avião ou que o carro do Papa não é um meio de transporte porque é teológico, basta recordar esse propósito para rejeitar de imediato ambas as hipóteses.

Com a ciência passa-se o mesmo. A ciência é o método que usamos para compreender coisas tão diversas como a estrutura social do antigo Egipto, os mecanismos de formação das estrelas, os critérios de selecção sexual nos chimpanzés ou a taxa de mutações das histonas de levedura. Tal como no conceito de meios de transporte, também no de ciência não adianta ir à pesca de detalhes. Apesar de cada um destes problemas ser abordado com métodos detalhados e bem estabelecidos, o que há de comum entre todos não são esses detalhes. É o propósito de maximizar a probabilidade de encontrar as explicações que melhor se aproximam da realidade. Daqui surge o tal esboço do “método científico”, um ciclo permanente de conjecturas, previsões, recolha de dados, testes, selecção de alternativas e assim por diante. Mas a forma correcta de pensar na ciência não é como uma receita com passos fixos. A ciência é um processo orientado pelo objectivo de compreender a realidade e tudo o resto é mera consequência disso.

É verdade que, em muitos casos, a ciência exige tecnologia de ponta, estatística sofisticada, imensa gente e muito dinheiro. Só assim se consegue a informação necessária para compreender a estrutura do átomo ou o que acontece dentro das estrelas. Mas o avião a jacto ser rápido e caro não impede a bicicleta de ser o meio de transporte mais adequado em certas situações. Mesmo sem aceleradores de partículas ou doutoramentos em estatística, a ciência também serve para avaliar as alegações dos padres, dos astrólogos e dos vendedores de banha da cobra. Há muitos casos em que não é preciso ferramentas sofisticadas para encontrar a melhor explicação. Por exemplo, há muita gente que acredita que extraterrestres raptam pessoas para lhes mexer no recto, outros que Deus ditou o Corão a Maomé e outros ainda que as almas dos rebeldes que Xenu matou andam coladas às nossas. Quem defende estas coisas explica que acredita porque é verdade. Mas, como as evidências indicam que a adopção de crenças falsas é muito mais provável do que qualquer uma destas alegações, uma avaliação imparcial e objectiva das alternativas revela uma explicação melhor. Esta gente anda enganada. É verdade que esta análise está para o que se faz no CERN como uma carroça está para um foguetão. Mas uma carroça também é um meio de transporte e é útil em muitos casos onde um foguetão não serve.

A ideia de que todos podem fazer ciência – a procura sistemática, imparcial e objectiva pela melhor explicação – é péssima para a propagação de tretas. Não é por acaso que, ao longo de quase toda a história, e ainda hoje em muitos sítios, era meio caminho andado para a prisão ou a fogueira. Agora que a ciência tem tal utilidade prática que é inviável reprimi-la ou ignorá-la, além da sua aplicação imunizar contra a maioria das tretas, até a noção do que é a ciência tem um efeito protector porque torna mais difícil disfarçar o conflito. Quem julgar que ciência é fazer contas ou trabalhar num laboratório pode facilmente ser convencido de que a astrologia é ciência ou que a ciência não pode criticar a teologia. Mas quem perceber que não é preciso jactos, asas e velocidade supersónica para ser um meio de transporte já não vai enfiar esse barrete.

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

Treta da semana (atrasada): o problema da má lógica.

Só nos EUA morrem setecentas crianças afogadas por ano. A criança cai na água, tenta manter-se à tona para respirar, não consegue, entra-lhe água para os pulmões e perde a consciência. Gradualmente, a falta de oxigénio acaba por danificar irreversivelmente o cérebro e a criança morre. É um de muitos exemplos de algo que é imoral permitir que ocorra. Qualquer pessoa que assista ao afogamento de uma criança tem um dever moral evidente de prestar auxílio e tentar evitar o pior. O que é tramado para quem defenda que existe um deus omnipotente, omnisciente e moralmente perfeito porque um deus moralmente perfeito não permitiria o que é imoral permitir. Como, por exemplo, o afogamento de uma criança. Só uma destas proposições pode ser verdadeira: ou existe esse deus perfeito ou ocorrem coisas que é imoral permitir que ocorram.

Para resolver o problema desta hipótese que defendem ser obviamente falsa, os apologistas do Cristianismo encadeiam vários truques numa fabulosa cadeia de aldrabices. O primeiro passo foi tomar conta da filosofia da religião. A religião é um fenómeno social importante que seria útil analisar daquela forma racional e imparcial que caracteriza a filosofia. Infelizmente, a “filosofia da religião” dedica-se quase toda a discutir desculpas para defender os dogmas mais bizarros do Cristianismo em vez de focar os aspectos reais da crença religiosa, os seus efeitos e mecanismos. É tão estranho e lamentável como se o grosso da filosofia da ciência se dedicasse apenas à defesa da astrologia.

O segundo passo é inverter o problema. É tão evidente que há coisas que é imoral permitir que só com muito malabarismo demagógico se pode tentar negá-lo (mas lá chegaremos). À partida, o problema estaria na hipótese de existir um super deus mega bonzinho. Mas chamar-lhe “o problema da hipótese que não é compatível com os dados” abriria demasiado o jogo. Por isso, a apologética cristã prefere chamar-lhe “o problema do mal” (1). Ou seja, a hipótese está bem; é preciso é encontrar uma justificação moral para deixar a criança afogar-se.

Para mostrar como resolvem esse “problema do mal”, recorro novamente ao Domingos Faria, que é uma excelente fonte de resumos destas coisas. As proposições “Deus existe” e “o mal existe” implicam uma contradição lógica quando entendemos por “Deus” esse ser perfeito e “mal” aquilo que é imoral permitir que ocorra. Esse deus não pode cometer a imoralidade de permitir que ocorra aquilo que é imoral permitir. Um truque para resolver este problema é fingir que “mal” tem um significado diferente e esperar que ninguém note. Como escreve Faria, «podemos facilmente conceber que há um estado de coisas bom B de tal forma relacionado com um estado de coisas mau M, e que supere esse mal, que é impossível que B exista e M não exista»(2). Ou, menos formal mas mais claro, há males que vêm para o bem. Mas não é do dentista ou das vacinas que estamos a falar. É da criança a afogar-se, ou os ataques terroristas, ou o genocídio dos Judeus ou qualquer uma de imensas coisas que não vêm para o bem e que, se alguém pudesse, teria um dever moral óbvio de as impedir. Faria reconhece isto na segunda parte do seu post, tentando resolver de outra forma o problema lógico da inconsistência entre a hipótese de Deus e a existência do mal: «dada a nossa situação epistémica e dado o que sabemos, nada impede a possibilidade de que: [...] Há uma razão moralmente justificada para Deus permitir o mal, uma razão que nós não conhecemos e ele permite que, por essa razão, ocorram instâncias de mal.»(3)

Essa «razão moralmente justificada […] que nós não conhecemos» não é mais do que o apelo costumeiro ao mistério sempre que se aponta inconsistências entre a hipótese e os dados. Além de não resolver o problema lógico da hipótese de Deus ser incompatível com a hipótese de haver mal que é imoral permitir – Faria simplesmente propõe que esse mal não existe – esta solução é intelectualmente desonesta. O que Faria defende implica que, se uma criança se estiver a afogar ao pé dele, ele não se considera em «situação epistémica» para saber que é imoral não fazer nada. Como é duvidoso que Faria ficasse mesmo tão indeciso que deixasse a criança afogar-se, tenho de concluir que ele defende uma posição que sabe estar errada. Se bem que nunca estejamos em «situação epistémica» para ter certezas absolutas – se calhar isto é tudo uma ilusão ou um sonho – há casos que podemos classificar com confiança como sendo males que é imoral permitir. E, se estes existem, então Deus não pode existir.

Como Faria demonstra, a inconsistência lógica é clara e robusta. Se existe mal que é imoral permitir então não existe um deus que tudo sabe, que tudo pode e que é moralmente perfeito. Por isso é que a confiança na existência desse deus exige a convicção de que nada pode ocorrer que não seja moralmente justificado. Esta é a única opção racional porque, se esse deus existe, então tem de haver sempre uma tal «razão moralmente justificada […] que nós não conhecemos» para tudo o que acontece. Mas assumir isto torna impossível sequer decidir se é mais correcto tirar a criança da piscina ou deixá-la morrer afogada. É um preço demasiado alto para pagar pela hipótese dúbia, e desnecessária, de que o universo é governado por um deus bondoso. É um preço tão alto que, na prática, só os mais fanáticos o pagam. Aqueles que deixam os filhos morrer porque preferem rezar em vez de chamar o médico ou que matam gente inocente porque lhes deram uma qualquer “razão moralmente justificada” para isso. Aos outros, a maioria, que felizmente não têm estômago para engolir estas consequências repugnantes, resta apenas a opção de disfarçar o problema com demagogias desonestas mascaradas de lógica.

1- Stanford Encyclopedia of Philosophy, The Problem of Evil.
2- Domingos Faria, Argumento lógico do mal – Parte 1
3- Domingos Faria, Argumento lógico do mal – Parte 2

sábado, fevereiro 13, 2016

Treta da semana (atrasada): não há dinheiro.

A principal objecção a um rendimento básico incondicional(1) é a de que não há dinheiro para isso. É fácil refutar a alegação. O PIB per capita em Portugal é superior a 20 mil euros por ano. Basta 15% disso para garantir um rendimento incondicional de 600€ por mês por agregado familiar. Já resolveria muitos problemas a muita gente. É claro que, na prática, é difícil obter esse dinheiro. Seria preciso 25 mil milhões de euros por ano, o que equivale à soma dos dois impostos principais (IVA e IRS) e a dois terços da receita fiscal total do Estado português. Mas o problema não é que o dinheiro não exista.

O IRS perfaz 13 mil milhões, mas é cobrado a uma base tributária de 80 mil milhões de euros, o total dos rendimentos das pessoas singulares. O IVA, totalizando quase 14 mil milhões de euros, é também cobrado principalmente a pessoas singulares porque as empresas passam o IVA aos seus clientes. Por isso, estes dois impostos incidem principalmente sobre quem vive do seu trabalho. Os seus rendimentos e consumos são os mais fáceis de taxar. Em contraste, o IRC, que é o imposto principal pago pelas pessoas colectivas, perfaz apenas 5 mil milhões de uma base tributária que corresponde, grosso modo, aos restantes 90 mil milhões de euros do PIB. As grandes empresas e os rendimentos de capital são muito difíceis de taxar, não só pela facilidade com que fogem para outros países mas também pela influência que têm no código tributário. Quando as leis fiscais são aprovadas por deputados que trabalham para escritórios de advogados contratados pelas maiores empresas, o resultado não pode ser muito bom. No entanto, se se resolvesse este problema prático e se taxasse quem vive do capital como se taxa quem vive do seu trabalho, haveria receita fiscal de sobra para um rendimento básico incondicional.

Mas o erro mais fundamental na ideia de que não há dinheiro é a premissa implícita de que o Estado tem de cobrar impostos para se financiar. Isto não é verdade. Quem cria o dinheiro, em última análise, é o Estado. É essa até a definição de dinheiro e aquilo que o distingue de quaisquer bens que se possa usar em trocas. Por isso, o Estado pode financiar-se criando o dinheiro de que precisar. O propósito dos impostos é apenas limitar a inflação, retirando de circulação um montante semelhante ao que o Estado introduz na economia pelas suas despesas para manter a relação entre o volume total de dinheiro e o total de bens e serviços.

É pela criação de dinheiro que se controla a inflação do Euro, se bem que de forma muito indirecta por opção política. O Banco Central Europeu estabelece uma taxa de juro aos empréstimos de curto prazo que concede aos bancos privados. Se a inflação estiver abaixo dos 2%, o BCE baixa esta taxa de juro, incentivando os bancos a pedir mais empréstimos ao BCE e a usar esse dinheiro para conceder crédito, aumentando o volume de dinheiro na economia. Se a inflação estiver acima dos 2%, o BCE sobe as taxas para obter o efeito contrário. Além de não permitir um grande controlo sobre a inflação, especialmente quando há problemas na banca privada, dar o dinheiro aos donos dos bancos privados acaba por beneficiar mais quem menos precisa.

Uma alternativa seria distribuir este dinheiro igualmente por todos os cidadãos. Não só seria mais justo do que conceder a alguns banqueiros o monopólio sobre a distribuição do dinheiro que o Estado cria, como também daria ao Estado um controlo mais fino e directo sobre a inflação. Além disso, permitiria manter uma inflação mais alta, facilitando a erosão do monte de dívidas antigas que todos os países arrastam. Por exemplo, se o BCE criasse 10% do PIB europeu em cada ano e o distribuísse pelos cidadãos, com um crescimento real da economia de 2% a inflação seria de cerca de 8% ao ano. Isto parece muito mas esta medida praticamente eliminaria os principais efeitos negativos da inflação.

Normalmente, a inflação faz-se sentir primeiro nos preços dos bens e só mais tarde nos ordenados. Este desfasamento retira poder de compra à maioria das pessoas. Mas se a inflação resulta da distribuição directa de dinheiro por toda a gente, o desfasamento será o inverso. Os preços vão aumentar por causa do aumento do poder de compra da maioria. A inflação alta também tende a ser difícil de prever, inibindo o investimento por tornar o retorno incerto. Mas este mecanismo permitiria manter a inflação constante e ainda mais previsível do que o mecanismo actual dos empréstimos aos bancos privados.

Isto não pode ser conseguido só por Portugal. Mas é possível fazê-lo na União Europeia com meras alterações de política. Basta taxar de forma mais justa a fatia maior do PIB, que corresponde aos rendimentos de capital, e complementar esta receita fiscal com a injecção directa de dinheiro na base da economia, que será paga por uma inflação maior mas mais controlada e menos prejudicial do que aquela que temos agora. A tese de que não há dinheiro é falsa não só porque o PIB de países desenvolvidos chega perfeitamente para garantir que ninguém fica na miséria mas também porque o dinheiro não é um recurso limitado. Criar dinheiro gera inflação mas os efeitos podem ser ponderados de forma a encontrar um equilíbrio óptimo. E nada obriga a que o dinheiro só entre na economia pelo bolso dos banqueiros.

1- Treta da semana (atrasada): salário mínimo.

domingo, janeiro 31, 2016

Terceiro grau.

Seria bom encontrarmos uma civilização extraterrestre? O João Carlos Silva responde com optimismo (1). Rejeita «a forma tradicional de imaginar a existência de vida e inteligência extraterrestre [como] deuses [ou] demónios», seres insondáveis e de poder inimaginável e, em vez disso, propõe extrapolar «daquilo que conhecemos da biologia, etologia e psicologia terrestres», em particular dos seres mais inteligentes. Assim, tendo a hipotética raça extraterrestre surgido por processos evolucionários semelhantes aos que nos formaram e sendo uma civilização avançada, o João Carlos defende que não deverá ter «motivos puramente interesseiros de ambição, expansão e conquista territorial» e preferirá «um contacto pacífico e uma relação de mútuo acordo cooperativo» connosco, seja por traços civilizacionais, valores morais ou mero interesse racional. Por isso, conclui o João Carlos, «procurar activamente entabular um contacto via rádio com os nossos eventuais vizinhos galácticos é muito bem capaz de compensar o risco e justificar a aposta.»

Eu concordo com parte do raciocínio e também penso que vale a pena tentar descobrir se temos vizinhos e contactá-los se for esse o caso. Mas a extrapolação do João Carlos descura um detalhe crucial e julgo que, por causa desse detalhe, a ideia dos extraterrestres como deuses ou demónios é mais realista do que esta hipótese de que serão seres parecidos connosco. Os processos evolucionários terão de ser sensivelmente os mesmos por todo o universo e concordo que não será plausível que os ET queiram vir de outro sistema solar roubar vacas, ou energia, ou conquistar este planeta. A tecnologia necessária para que isso seja viável permitirá certamente que aproveitem os recursos mais à mão para fazerem o que quiserem com muito menos esforço. Também a conquista de território e impulsos análogos serão pouco plausíveis como motivação. Até no nosso nível tecnológico conseguimos desligar muitos instintos das suas consequências e evitar uma catástrofe malthusiana. Parece-me que a reacção de uma civilização ET será muito mais ditada pela sua tecnologia e decisões racionais do que por instintos que lhe tenham ficado da sua evolução biológica. E aí é que está o problema.

Vamos supor que neste momento, a uns setenta anos luz daqui, astrónomos alienígenas descobrem indícios conclusivos de que neste sistema solar há uma civilização com tecnologia nuclear e electrónica. Suponhamos que esses ET vivem no seu planeta original mas já sabem construir naves robóticas capazes de viajar entre as estrelas perto da velocidade da luz. Daqui a uns oitenta anos poderia chegar cá uma sonda dessas. Mas uma nave com centenas de toneladas colidindo com a Terra quase à velocidade da luz esterilizaria o planeta. Os ET sabem disso, sabem que nós certamente o saberemos, e sabem também que, mais século menos século, teremos a mesma capacidade que eles têm para os detectar e para os obliterar. Por muito decentes e civilizados que sejam, o dilema é tramado. Ou dão cabo de nós antes que o façamos a eles ou apostam a sua existência na boa vontade de uma raça da qual só conhecem as bombas nucleares e o discurso de Hitler que apanharam nos radio-telescópios (2). Neste cenário, temo que o primeiro contacto com os ET seria também a última coisa que nos aconteceria, e tão rápida que nem daríamos por ela.

Mas vamos supor, em contraste, que estes alienígenas desenvolveram robôs auto-reprodutores. A multiplicação exponencial de máquinas de construção rapidamente lhes permitiria espalhar-se pelo seu sistema solar, desmantelando asteróides ou planetas inteiros e construindo o que quisessem no espaço. Uma civilização assim não poderia ser eliminada com algum bombardeamento relativista do seu planeta natal e não teria praticamente nada a temer de um vizinho como nós. Nesse caso, a reacção mais racional talvez fosse dirigirem para cá as antenas mais potentes e enviar-nos as instruções para construirmos esse tipo de robôs e espalharmos também a nossa civilização por este sistema solar. Sendo o resto igual, é preferível não ter um vizinho com medo de ser exterminado e que, por isso, se ponha a fazer asneiras.

Nenhum destes cenários é particularmente provável. Servem apenas para ilustrar como a reacção dos hipotéticos alienígenas dependerá fortemente da tecnologia que dominem. O ponto a que quero chegar é outro. Este universo tem cerca de treze mil milhões de anos. Se a tal civilização ET estiver apenas uma milésima disso à nossa frente, terá treze milhões de anos de avanço. Mesmo descurando a evolução biológica (há treze milhões de anos viviam os antepassados comuns de humanos, chimpanzés, gorilas e orangotangos), isto é duas mil vezes o tempo que passou desde a invenção da escrita à invenção da Internet e à exploração espacial. Tendo em conta a aceleração do progresso tecnológico, a melhor estimativa é que uma civilização treze milhões de anos há nossa frente – ou um milhão que seja – será tão avançada que poderá fazer tudo o que é possível fazer. Para todos os efeitos, da nossa perspectiva serão como deuses ou demónios.

Partilho da conclusão do João Carlos, de que vale a pena tentar descobrir se temos vizinhos neste canto da galáxia e contactá-los se existirem. Mas não é por estimar que serão porreiros, semelhantes a nós ou que desejarão colaborar connosco por interesse mútuo. É por estimar que, se nos quiserem mal, nada poderemos fazer e nem adiantará tentarmos passar despercebidos. E, se não nos quiserem exterminar, talvez consigamos despertar neles interesse suficiente para nos ligarem alguma coisa. Entretanto, à cautela, vou praticando: Klaatu barada nikto.

1- João Carlos Silva, Devemos tentar ou temer um contacto extraterrestre?
2- Admito que a transmissão da abertura dos Jogos Olímpicos de 1936 terá chegado muito fraquinha a 70 anos luz daqui. Mas, teoricamente, é possível. Will Hitler Be the First Person That Aliens See?

sábado, janeiro 30, 2016

Treta da semana (atrasada): tipos totalmente diferentes.

«Quando é que viveram os dinossauros?» é uma das perguntas num artigo do criacionista Ken Ham que o Mats traduziu para o seu blog (1). «Segundo os evolucionistas, os dinossauros “dominaram a Terra” durante 140 “milhões de anos”, morrendo há cerca de “65 milhões de anos”. No entanto, os cientistas nunca desenterram coisa alguma a dizer “Tem X milhões de anos”.» Isto é verdade. Não se encontra a idade escrita nos estratos rochosos ou nos fósseis. Mas, mesmo que se encontrasse, também não adiantaria de nada. Não é por estar escrito “tenho 60 milhões de anos” numa pedra que se justifica concluir que a pedra tem 60 milhões de anos. Era importante que os criacionistas percebessem isto, tanto os criacionistas assumidos que acreditam que a Bíblia é literalmente verdade quanto os criacionistas disfarçados que acreditam que a Bíblia é só metaforicamente verdade. Escrever coisas é fácil. O difícil, mas muito mais útil, é determinar se são verdade. Segundo Ham, «Se por acaso somarmos todas as datas, e aceitarmos que Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio à Terra há cerca de 2000 anos atrás, chegamos à conclusão de que a criação da Terra e dos animais [ocorreu] há apenas 6,000 anos!» Será verdade?

Em 1994, na Pedreira do Galinha, um grupo de amigos descobriu um dos mais longos trilhos de pegadas de dinossáurios que se conhece. As pegadas estão marcadas numa laje de calcário que foi exposta após décadas de extracção de brita da pedreira. Os dinossáurios caminharam por uma praia ou lagoa rasa, deixando pegadas na lama. A sedimentação tapou as pegadas, a lama tornou-se em pedra calcária, dezenas de metros de sedimentos se acumularam por cima e se transformaram também em pedra e, pelo movimento das placas tectónicas, foi tudo empurrado para o cimo daquilo que é agora a Serra de Aire. Só depois de anos de extracção das camadas superiores é que as pegadas voltaram a ficar expostas (2). Nenhuma das pedras tem lá escrito se este processo demorou 175 milhões de anos ou seis mil. É só uma compilação de histórias tradicionais de uma tribo hebraica antiga que sugere que este processo terá demorado apenas seis mil anos. Mas, além desta tese ser pouco plausível, não há evidências de que os antigos hebreus conhecessem a Pedreira do Galinha ou sequer estivessem minimamente informados acerca da história geológica da Terra.

O autor alega também que «Os evolucionistas [imaginam] que um tipo de animal evoluiu lentamente para outro tipo de animal totalmente diferente.» Pessoalmente, parece-me ser este o erro mais interessante dos criacionistas. Uma condição fundamental para compreender a teoria da evolução é perceber como a noção de tipos de seres vivos é ilusória. Consideremos o exemplo dado neste artigo, «acreditam que os anfíbios foram lentamente mudando até passarem a ser répteis (incluindo dinossauros) através deste processo gradual.» Em rigor, se por “anfíbios” referirmos a classe Amphibia, então não é verdade que os répteis tenham evoluído dos anfíbios. Esta classe é um ramo diferente, descendente dos tetrápodes originais de onde os répteis também surgiram. Mas é verdade que, entre peixes e répteis, houve espécies intermédias de anfíbios no sentido mais coloquial do termo. Quando olhamos para peixes e répteis modernos, é fácil notar que diferem na locomoção, estrutura do esqueleto, órgãos respiratórios, impermeabilização dos ovos e uma data de outros atributos cuja correlação nos permite separá-los em tipos. O tipo dos peixes tem estes atributos; o tipo dos répteis tem aqueles atributos. Mas quando olhamos para os fósseis, essa correlação desaparece. O Tiktaalik foi um peixe mas a estrutura óssea dos seus membros anteriores era como a dos répteis e não como a dos peixes que reconhecemos hoje. O Acanthostega foi um peixe com patas em vez de barbatanas; as patas não conseguiriam suportar o seu peso fora de água mas serviriam para se deslocar pelo fundo ou entre a vegetação aquática. O Greererpeton foi um tetrápode aquático, que tinha brânquias e se locomovia impulsionado pela cauda mas cujas patas já permitiam que se deslocasse fora de água (3). A correlação entre atributos que observamos nas espécies modernas é consequência de estarmos a olhar apenas para uma imagem do filme. Quando olhamos para o que aconteceu no passado, notamos que a evolução dessas características é independente e que, por isso, deixa de ser possível separar os animais em “tipos”. Há organismos, populações de organismos, linhagens e variações nas distribuições de características ao longo do tempo mas o “tipo” é uma ilusão criada pela ignorância do processo.

A transição entre anfíbios e répteis também não consiste na mudança entre um tipo e outro “totalmente diferente”. O Gephyrostegus era um anfíbio, porque só se podia reproduzir na água, enquanto o Protoclepsydrops era um réptil porque já era um amniota, pondo ovos impermeáveis. No entanto, nas restantes características, diferiam muito pouco entre si e qualquer leigo diria serem ambos lagartos. A diferença entre répteis e anfíbios é tão pequena que, em casos como o do Westlothiana, nem sequer sabemos em que grupo colocá-los porque desconhecemos como eram os seus ovos (4).

Os criacionistas têm razão em criticar a ideia de que «um tipo de animal evoluiu lentamente para outro tipo de animal totalmente diferente». É uma ideia falsa. Não pela evolução, porque a evolução gradual pela variação de características ao longo das gerações é um facto perfeitamente evidente no registo fóssil. Mas é falsa porque isso do «tipo de animal totalmente diferente» é uma ficção. Os répteis de hoje parecem ser totalmente diferentes dos anfíbios e isso leva-nos a imaginar dois “tipos” muito diferentes. Mas conforme recuamos nestas linhagens, a correlação de características que cria essa ilusão vai-se desfazendo e, na origem, os grupos só se distinguem por diferenças pequenas. No caso dos anfíbios e dos répteis a diferença é literalmente tão fina quanto a casca de um ovo.

1- Mats (ou Lucas), Os dinossauros e a Bíblia
2- E vale bem a pena ir lá ver. Monumento Natural das Pegadas
3- Wikipedia, Tiktaalik, Acathostega, Greererpeton
4- Wikipedia, Gephyrostegus; Dinopedia, Protoclepsydrops; Wikipedia, Westlothiana

terça-feira, janeiro 12, 2016

Treta da semana (atrasada): diz que é uma espécie de igualdade.

Na passagem de ano, cerca de mil meliantes em Colónia molestaram e assaltaram dezenas de pessoas, violando pelo menos duas. Esta criminalidade violenta, pública e colectiva é uma novidade alarmante na Europa que justificaria uma resposta rápida das autoridades e a atenção imediata da comunicação social. Mas se, por um lado, as vítimas terem sido todas mulheres torna o crime ainda mais indigno para alguns, por outro lado, os atacantes virem de África e do Médio Oriente, incluindo muitos refugiados, dificulta a crítica politicamente correcta. Daí a lenta cobertura mediática e as estranhas reacções de quem, dizendo lutar pela igualdade, na prática parece mais preocupado com o crime de ser homem e ter pele clara. A dissonância cognitiva resultante obrigou a soluções engenhosas, das quais saliento uma pelo primor e artifício.

Patrícia Motta Veiga denuncia que «Na Europa, violar uma mulher é quase legal»(1), começando por defender que «Seja qual for a nacionalidade dos homens que naquela noite de 31 de Dezembro abusaram de mulheres, têm que ser punidos, exemplarmente, e muito melhor do que por aqui costuma acontecer.» À parte da nacionalidade, que importa se o castigo for a deportação, concordo que a lei ignore raça, credo, cor de pele e esses outros factores. Mas também o sexo. Aos olhos da lei, o crime é o de pessoas abusarem de outras pessoas. Se queremos igualdade de direitos e deveres, então o resto não conta. Infelizmente, Veiga parece defender a igualdade perante a lei em tudo menos no sexo.

Apesar de admitir que «nos países do Norte de África o respeito pelas mulheres está a anos-luz do desejável», Veiga afirma, sem justificar, que «As pessoas comportam-se segundo os usos e costumes do local onde estão». Ou seja, não importa que estes agressores tenham crescido numa cultura que trata as mulheres como gado. Tornaram-se abusadores e violadores porque «nós, evoluídos europeus, não somos lá grande coisa a defender as nossas mulheres». Veiga demonstra então a culpa dos homens brancos com o rigor imparcial dos números. Por um lado, «Em 2009, segundo o relatório da ONU Mulheres, apenas 14% das queixas sobre violações resultou em condenação efectiva». E, por outro, «Num universo de mais de um milhão de pessoas (refugiados na Europa), mil delas, ou seja 0,00001% cometeu actos absolutamente hediondos e condenáveis. 0,00001%! Se em Portugal a média de violações por ano ronda o horroroso número de 500, isso faz com que 0,000005% dos portugueses sejam exactamente iguais ao grupo de homens de Colónia. Metade!»

Mil é 0,1% de um milhão e, mesmo só contando com os portugueses do sexo masculino, 500 é 0,01% de cinco milhões, o que dá um décimo e não metade. Mas zeros a mais é o menor dos erros que Veiga comete. Mais significativo é comparar o que aconteceu numa noite numa cidade com o total anual de um país inteiro. É exagero concluir desta comparação que os homens portugueses tratam as mulheres tão mal quanto os homens sírios, iraquianos ou do norte de África. Mas o pior é que Veiga descura a enorme diferença no tipo de crime. Se um grupo de homens violar uma mulher na rua em Portugal, ou na Alemanha, a probabilidade de condenação não é só 14%. Nesses casos, não há dúvidas acerca do crime (2). No entanto, este tipo de crime é raro por cá. Na grande maioria das queixas por violação, o alegado violador é alguém próximo da vítima. Nesses casos, se não houver indícios claros de violência, não há como provar que o acto não foi consentido. Até é fácil de perceber que, quanto melhor a educação e o civismo prevenirem a violência contra as mulheres, menor será a proporção de crimes de violação fáceis de provar em tribunal e menor será a taxa de condenação por ser maior a proporção de casos em que é apenas a palavra de um contra a palavra do outro

Mas mais preocupante do que as estatísticas de Veiga é o que ela exige: «Vamos transformar a ligeireza em condenações duras e eficazes! O nosso país, toda a Europa, deve ser inflexível com qualquer acto de violência contra as mulheres [e condenar] todos os homens que ofendem física e emocionalmente, de forma irreversível, as nossas mulheres». Se Veiga exigisse o mesmo para qualquer outro grupo, fosse africanos, estrangeiros ou muçulmanos, seria imediatamente acusada de racismo e intolerância e o que mais viesse à mão. E com razão. Qualquer pessoa é inocente até se provar o contrário, qualquer que seja a sua raça ou credo. Excepto, parece, se for homem.

Em teoria, o feminismo luta pela igualdade de direitos. Em teoria, homens refugiados estrangeiros africanos muçulmanos cometerem crimes não justificaria condenar qualquer desses grupos. Isso seria mais uma discriminação a combater. É por isso que, em teoria, eu sou feminista. Infelizmente, na prática, o feminismo tende a guiar-se mais pela premissa de que os homens são maus e as mulheres são vítimas do que por qualquer ideal de igualdade. Não é o desejo de igualdade que faz gritar “discriminação!” quando se conta poucas mulheres em cargos de poder e não se liga a igual discrepância em trabalhos perigosos ou acidentes de trabalho (3). Também não é pela igualdade que se criminaliza propostas de teor sexual justificando que as mulheres têm medo dos homens. Ou que se enfatiza a violência contra mulheres quando dois terços das vítimas de crimes violentos são homens e o verdadeiro problema é a violência em si, seja qual for o sexo da vítima.

Eu sou feminista em teoria porque concordo inteiramente com o ideal da igualdade de direitos. Mas quero uma igualdade de iguais e não esta pseudo-igualdade desigual, discriminatória, injusta e até desonesta de feministas como a Patrícia Motta Veiga.

1- Capazes, Na Europa, violar uma mulher é quase legal
2- Um caso muito citado, com mais de 25 anos, foi o de duas turistas violadas no Algarve. Apesar dos juízes imbecis alegarem como atenuante o crime ter ocorrido “em plena coutada do chamado macho ibérico”, ninguém teve dúvidas acerca do crime e o violador foi condenado a quatro anos de prisão. Na coutada do macho ibérico, 25 anos depois.
3- Como nas forças de segurança, construção civil e afins. Três quartos das vítimas de acidentes de trabalho são homens. O site Mulher não entra, ironicamente criado por «três homens assumidamente "feministas" - a quem se juntou uma mulher», é outro exemplo deste “cherry picking”. Ou o alarido que houve há tempos por uma barbearia não admitir mulheres quando há anos que muitos ginásios não permitem a entrada de homens.

quarta-feira, janeiro 06, 2016

Pelo naturalismo.

Após criticar alguns argumentos que defendem a existência de um deus criador sobrenatural (1), vou tentar explicar porque é que o naturalismo é mais plausível. Não vou focar um argumento em particular porque um argumento apenas descreve uma linha de inferências ligando premissas a conclusões. Se imaginarmos todas as hipóteses possíveis como pontos num enorme papel, cada argumento é um traço unindo uma conjectura a outra. Se bem que cada traço seja importante, isso não chega para apurar a verdade. Temos de avaliar o padrão dos traços, quer no desenho quer nas redes de inferências com com que tentamos compreender a realidade. O padrão tem de ser consistente, informativo e corresponder ao que realmente acontece. É assim que proponho comparar estas duas hipóteses: por um lado, a hipótese de que tudo foi criado por actos sobrenaturais de um deus inteligente que nos ama e, por outro lado, a hipótese de que o universo surgiu por processos naturais, sem propósito inteligente e sem se ralar connosco.

Começo pela terceira característica. Espalhadas pelo papel, há infinitas hipóteses que atribuem ao fundamento do universo algum amor por nós. Acerca de deuses sobrenaturais; de civilizações benevolentes de outro universo que, com tecnologia avançada, terão criado este; de leis naturais impessoais que forçam este universo a tratar-nos bem; e incontáveis alternativas presumindo que Algo ou Alguém gosta de nós. Outras hipóteses, também infinitas, são análogas mas com o sentimento inverso. Deuses cruéis, civilizações malévolas, uma natureza que nos quer tramar e essas coisas. Outras conjecturam indiferença, e são estas que mais se adequam ao que observamos. Do arco-íris ao tsunami, do pôr do sol à tuberculose, qualquer que seja processo ou entidade que os tenha criado, não o parece ter feito com maldade nem com amor. Excepto o que é causado por humanos ou alguns outros animais, tudo o que acontece no universo está-se nas tintas para nós. Se queremos desenhar a realidade, é aqui que temos de pôr os traços.

Outro ponto de divergência é o propósito inteligente. Pode-se conjecturar uma criação inteligente natural. Por exemplo, que o nosso universo foi criado por uma civilização muitíssimo avançada que evoluiu por processos naturais num outro universo. E pode-se conjecturar também forças sobrenaturais desprovidas de inteligência ou propósito. Mais uma vez, temos infinitas combinações possíveis. Mas, como o sobrenaturalismo teísta defende que o universo foi criado com propósito e inteligência enquanto o naturalismo tende a defender o contrário, devemos ver como estes tipos de hipóteses se comparam.

Para identificar propósito inteligente é preciso compreender as capacidades do agente e aquilo que o motiva. Não basta olhar para o resultado. É assim que distinguimos a produção de lanças e de teias de aranha, por exemplo. Sabemos que o humano recorre a uma capacidade flexível de aprendizagem e resolução de problemas e que faz a lança porque percebe o jeito que isso lhe dá, enquanto a aranha faz a teia de forma automática, inata, e seguindo uma sequência fixa de movimentos reflexos. Como não podemos observar o hipotético criador inteligente deste universo, as hipóteses acerca do propósito inteligente do universo são impossíveis de detalhar ou distinguir entre si. Em contraste, se o universo surgiu por processos naturais análogos aos que observamos, deverá ser possível seleccionar hipóteses com base nessa observação. E parece ser esse o caso. A física moderna não descobriu exactamente como o universo surgiu mas já consegue excluir muitas possibilidades. É isto que permite à física desenhar a realidade com uma lapiseira fina em vez do rolo de pintar paredes que a teologia tem de usar.

Finalmente, o natural e o sobrenatural. Em teoria, qualquer processo natural pode ser completamente compreendido. Como funciona, o que causa o quê e em que condições o faz. O sobrenatural é um mistério. O livro diz que Deus criou o céu e a terra mas, como apontou o grande filósofo Ricky Gervais, é omisso nos detalhes (2). Conjecturar algo sobrenatural é um beco sem saída e, por isso, o sobrenaturalismo não permite mais do que esboços infantis. A cara é um círculo, os olhos são pontos e a boca uma linha. O naturalismo, descascando os comos e os porquês, vai ao detalhe que houver. À célula, ao átomo, aos quarks e mais além. E se bem que a vantagem metodológica de não assumir deuses, fadas ou milagres não prove que estes não existam, num universo criado por forças sobrenaturais seria inexplicavelmente estranho que o naturalismo, como método, se revelasse tão superior à alternativa.

O que me faz rejeitar a tese de um deus criador bondoso em favor da criação por processos naturais não é um mero argumento dedutivo onde postulo umas premissas e chego à conclusão desejada. O factor decisivo é a diferença entre os padrões das inferências. Entre os desenhos. No boneco naturalista, a maioria dos traços está onde tem de estar para respeitar o que observamos. Exactamente ali, sem poder ser de outra maneira porque está ancorado em observações e ligado a outro, e outro, e mais outro. É assim que se obtém uma explicação consistente, integradora e detalhada de quase tudo, desde o que faz as estrelas brilhar ao funcionamento do cérebro. As crenças no sobrenatural são esboços grosseiros, disjuntos, garatujados onde calha e incapazes de explicar o que quer que seja. É isto que me força a concluir que não há deuses nem milagres e que o universo surgiu por processos naturais. E não é argumentando com uns poucos traços que a apologética cristã resolve este problema. Nem mesmo disfarçando-se de filosofia e salpicando-se de notação científica para parecer mais séria. Qualquer alternativa ao naturalismo tem de nos dar um corpo de conhecimento pelo menos tão detalhado, tão fundamentado na experiência, tão abrangente e firme quanto este que o naturalismo nos deu. Não há nada sequer remotamente parecido com isso na teologia ou na filosofia da religião nem parece provável que alguma vez venha a haver.

1- Contra o naturalismo e Contra o naturalismo, parte 2.
2- Ricky Gervais - The Bible

sexta-feira, janeiro 01, 2016

Treta da semana (atrasada): o crime de importunar.

Uma alteração ao código penal criou o crime de «importunar outra pessoa [...] formulando propostas de teor sexual». É punível com prisão até um ano, como a ameaça de morte (1). Isto é um disparate sexista e perigoso. Infelizmente, defender que é errado punir um acto com prisão leva muita gente a julgar que se defende o acto em si, o que me obriga a uma ressalva que não devia ser necessária. Eu sou contra que digam obscenidades a mulheres na rua. Se um dos meus filhos o fizer, ponho-o de castigo. Mas também sou contra muita coisa que não justifica um ano de prisão. Por exemplo, é indecente que uma mulher engravide do amante, esconda a traição do marido e faça este criar um filho que não é seu. Proponho até que isto é pior do que ouvir um “lambia-te toda” de um estranho na rua. Ainda assim, sou contra que se prenda alguém por isto ou que se criminalize o adultério. Porque nunca está em causa apenas o direito de uma parte mas sim, e sempre, um conflito de direitos entre ambas. E o direito de uma pessoa não ser condenada à prisão é superior ao direito de não ser corno. Tal como é superior ao direito de não ser importunado com a formulação de propostas, qualquer que seja o seu teor.

O absurdo desta lei é evidente se imaginarmos que exactamente o mesmo texto tinha sido proposto por um grupo conservador para punir a prostituição. Seria repudiado por quem agora o apoia por imaginá-lo num contexto diferente. É só esse contexto, e não a importunação em si, que dá à lei uma ilusão de legitimidade. Isto nota-se nas razões que invocam, que nunca focam a importunação mas sempre coisas mais graves. Paula Cosme Pinto escreve que não se deve confundir assédio sexual com piropos porque o assédio sexual «é um “conjunto de atos ou comportamentos, por parte de alguém em posição privilegiada, que ameaçam sexualmente outra pessoa”»(2). Mas também não se deve confundir uma ameaça sexual partindo de posição privilegiada com a mera importunação. A deputada Carla Rodrigues justifica assim a medida: «Falei de casos como o de uma jovem de 15 anos que vai na rua e vem um velho e diz "fazia-te isto fazia-te aquilo" […] Tenho uma filha de três anos e falei disto com o meu marido, sobre como nos sentiríamos com isto a suceder-lhe, como se podia protegê-la. E cheguei a esta formulação.»(3) Quando dirigida a uma criança e partindo de um adulto, é natural que a proposta de teor sexual seja ameaçadora pela posição privilegiada que o adulto tem sobre a criança. Mas o trolha que diz "fazia-te isto fazia-te aquilo" a uma mulher adulta que passa na rua não a ameaça a partir de uma posição privilegiada nem a mulher é uma criança de 15 anos.

A justificação do jurista André Dias Pereira é outro exemplo desta gincana. Diz que está em causa um bem jurídico «que andará na orla de proteção do “direito a estar só, mesmo que em espaços públicos”, proteção contra a violência de género»(4). Mas o direito a estar só em espaços públicos é obviamente menor do que o direito de não ir para a cadeia, a orla desse direito é algo ainda mais fraco e vago, e se o teor sexual da importunação a torna pior ou menos má é totalmente subjectivo. Eu preferia ser importunado por uma mulher propondo fazer-me “isto ou aquilo” do que por testemunhas de Jeová a impingir religião, vendedores ou aquelas pessoas que metem conversa na paragem do autocarro. Não se justifica prender alguém por isto nem haveria prisões que chegasse para castigar toda a gente que me importuna. Por isso é que Pereira precisa de invocar também a violência de género, saltando de um passo a enorme distância entre importunação e a violência. A violência de género é, em primeiro lugar, violência. É de género se estiver correlacionada com o género mas seria violência mesmo que não estivesse. Não pode ser violência de género aquilo que, não sendo violência, só passe a sê-lo por ser “de género”, e importunar com propostas fica muito aquém de ser violência.

Além da injustiça de se prender por importunação e de dar a quem tem dinheiro para advogados mais uma maneira de lixar a vida aos pobres, seja o trolha, a prostituta ou a peixeira que mande a cliente levar em algum sítio*, esta lei é um trágico retrocesso na igualdade de direitos entre homens e mulheres porque confirma e reforça opiniões machistas. É consensual que o homem visado por um “chupava-te todo” na rua não precisa que prendam a infractora. Mas uma mulher, alega-se, precisa de protecção legal porque é menos capaz de lidar com estas situações. Várias pessoas até me disseram ser um problema que só as mulheres podem compreender. Pois é precisamente esta percepção da mulher como um ser frágil que fundamenta o machismo e prejudica as mulheres que escolhem não o ser. A própria aceitação desta lei requer uma condescendência machista para com quem a exige. Isabel Moreira, admitindo que a lei é vaga, recomenda que «Como não podem saber o que vai ou não ser considerado crime, calem-se»(3). Se viesse algo assim de um líder religioso, um político ou um empresário, caía-lhe tudo em cima porque não é aceitável. Mas, como é para mulheres, deixa-se passar.

A opinião, seja machista, racista ou xenófoba, é um direito, por muito imbecil que seja a opinião e por muito rude ou incómoda que seja a sua expressão. O problema da discriminação não é a opinião. É o poder. Pensarem mal de mim ou dizerem mal de mim é indiferente. O que me afecta é o poder de me fazerem mal e, como as leis têm o poder do Estado, é destas que vem o maior perigo. Reprimir palavras e pensamentos com a lei, mesmo em nome de uma noção politicamente correcta de decência, só agrava a discriminação dando-lhe mais poder. Esta lei assenta em premissas discriminatórias, terá efeitos discriminatórios, porque não vai punir as boçalidades dos ricos com a mesma severidade com que castigará as dos pobres, e, no fundo, consiste em punir a “ordinarice”. É uma lei formulada alegando um dano arbitrário e totalmente subjectivo para uma das partes e ignorando direitos objectivos da outra. Só assim pode parecer justo trancar alguém na prisão por ter o azar de ser, ao mesmo tempo, pobre, mal educado e pouco inteligente, e com pena agravada se for homem.

PS: Pelo que tenho visto, e escrito, nestes últimos dias sobre isto pelo Facebook, suspeito que este será o primeiro de vários posts sobre o assunto. Quando se mexe no politicamente correcto saltam tretas às carradas.

*É verdade que o espírito desta lei não é o de condenar mulheres ou condenar quem quer que seja por essas coisas. Mas, estando na letra da lei, o espírito é facilmente determinado por quem tiver dinheiro para os advogados melhores.

1- Artigo 170º do código penal. A ameaça é o 153º.
2- Expresso, Vamos mesmo continuar a confundir assédio sexual com piropos?
3- Diário de Notícias, Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos
4- André Dias Pereira, O bem jurídico protegido no crime de importunação sexual (quota parte)

quinta-feira, dezembro 31, 2015

Contra o naturalismo, parte 2.

O Domingos Faria argumenta, resumidamente, que se evoluímos por processos naturais então é improvável que tenhamos a capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras. Mas, se Deus nos criou e quis que tivéssemos essa capacidade, então já é certo que assim seja. Por isso, defende o Domingos, devemos concluir que Deus existe (1). Além dos problemas que referi no outro post (2), esta abordagem comete um erro estatístico frequente entre os defensores do sobrenatural. Robin Collins, por exemplo, como explica o Pedro Galvão (3), argumenta que um universo com as condições necessárias para que surja a vida é muito mais provável se Deus existir do que se Deus não existir e que, como temos de preferir a hipótese com maior verosimilhança, então Deus existe. O erro aqui é que maximizar a verosimilhança serve apenas para seleccionar hipóteses dentro de um mesmo modelo mas não, em geral, para seleccionar os modelos em si, o que exige considerar também os seus graus de liberdade. Infelizmente, explicar este erro exige remexer em alguns detalhes pouco apetitosos de análise estatística, pelo que aviso o leitor que queira prosseguir que o faz por sua conta e risco.

Vamos supor que atirámos uma moeda ao ar vinte vezes e marcámos com um 1 cada vez que calhou cara e com um 0 cada vez que calhou coroa. O resultado foi:
0 1 1 1 0 1 0 0 0 1 1 1 1 0 1 1 1 1 1 1
Um modelo possível para este processo é que a moeda tem uma probabilidade p de calhar cara, e de 1-p de calhar coroa. Deste modelo, podemos seleccionar hipóteses atribuindo valores ao parâmetro p e, para cada valor de p, podemos calcular a probabilidade de obter a sequência observada. A probabilidade dos dados assumindo a hipótese é a verosimilhança da hipótese e, pelo princípio da máxima verosimilhança, escolhe-se o valor de p que maximiza essa probabilidade. Neste caso, será p=0,7, que é a proporção obtida de caras. No entanto, mesmo maximizando a verosimilhança, a hipótese de que p=0,7 dá uma probabilidade de apenas 1 em 202255 de se obter exactamente aquela sequência de caras e coroas. Apesar de ser a maior, é ainda assim muito pequena.

Conseguimos uma verosimilhança máxima maior do que esta se assumirmos que, a cada lançamento, um duende invisível altera por magia a probabilidade da moeda cair cara, fazendo-a ser 1 ou 0 conforme quiser que calhe cara ou coroa. Desta forma, o modelo terá um parâmetro ajustável para cada lançamento, p1, p2, …, p20, e a hipótese de máxima verosimilhança será a que tem pn = 1 para cada lançamento que calhou cara e pn = 0 para cada lançamento que calhou coroa. Isto dá uma verosimilhança máxima de 100%, uma certeza absoluta e duzentas mil vezes maior do que a da hipótese de máxima verosimilhança dada pelo modelo anterior. No entanto, e espero que não surpreenda o leitor, o modelo do duende não é estatisticamente preferível ao modelo “naturalista”.

Seleccionar entre modelos não é como seleccionar hipóteses dentro de um modelo. Modelos diferentes têm espaços paramétricos diferentes e isto tem de ser descontado. O modelo do duende, por exemplo, permite hipóteses com verosimilhança maior simplesmente porque tem mais parâmetros para ajustar aos dados. Por isso, as hipóteses de máxima verosimilhança não servem, por si, para seleccionar entre dois modelos diferentes. Temos de comparar todas as hipóteses integrando a probabilidade dos dados por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros (4). E, se fizermos isto, a evidência dada pelos lançamentos observados até favorece o primeiro modelo, mesmo apesar da verosimilhança da melhor hipótese do segundo ser duzentas mil vezes maior do que a da melhor hipótese do primeiro*.

A aplicação correcta destes métodos de análise estatística não suporta os argumentos probabilísticos em favor da existência de Deus. O modelo do deus omnipotente tem um espaço de parâmetros com infinitos graus de liberdade. Isto permite ajustar-se com grande verosimilhança a tudo e mais um par de botas mas, ao integrar as probabilidades por esse espaço imenso de parâmetros, o valor cai para zero. Como Hume já tinha dito, também a estatística moderna reitera que um modelo com milagres é um modelo para deitar fora.

Além disso, estes argumentos acerca da probabilidade de Deus tiram da estatística conclusões que esta nem pode dar. No exemplo deste post, mesmo que o resultado favorecesse o segundo modelo, só se poderia concluir que era preciso um parâmetro por lançamento. Nada se poderia concluir acerca de ser um duende, uma fada, um extraterrestre, o vento, ultra-sons ou infinitas outras coisas. Esta é outra diferença entre os modelos naturalistas e os que assumem entidades sobrenaturais. Os modelos naturalistas vão até onde se justifica ir com os dados disponíveis. A moeda tem uma certa probabilidade de calhar cara. Porquê? Não sabemos. Isso teria de se ver com outras experiências que não apenas contando caras e coroas. A física assume certas constantes universais. Porquê esses valores e não outros? É uma pergunta interessante mas é trabalho em curso. Em contraste, os modelos sobrenaturais presumem sempre muito mais do que aquilo que é justificável. O Domingos, por exemplo, não só conclui que a nossa capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras vem especificamente do deus cristão, mas propõe até detalhes como «se Deus existe e se a história cristã é verdadeira, então também é provável que Deus tenha criado pessoas humanas e não-humanas com livre-arbítrio [e] algumas pessoas, como Satanás, rebelaram-se livremente contra Deus e a partir de então causaram grande parte dos males que existem no mundo» (1). O termo técnico para isto é overfitting.

PS: Agora vou cortar pimentos, vestir a mais pequena e passar o resto da noite a comer. Continuamos em 2016. Bom ano novo para todos.

O factor de Bayes é de 1,27, em favor do primeiro, mas integrei o primeiro numericamente na folha de cálculo porque não estive para ver se havia solução analítica para esse integral. Por isso este resultado depende de não me ter enganado nas contas. No entanto, o que interessa aqui é a ideia geral e não o valor exacto.

1- Domingos Faria, Argumento contra o Naturalismo Metafísico
2- Contra o naturalismo.
3- Pedro Galvão, A Probabilidade de Deus: O Argumento da Afinação Minuciosa
4- Neste post uso o método do factor de Bayes, assumindo uma distribuição a priori uniforme para os parâmetros. Mas há várias maneiras de seleccionar modelos tendo em conta este problema do sobreajustamento aos dados devido a excesso de graus de liberdade. Se tiverem interesse nisto, há na Wikipedia uma lista: Model Selection.

quarta-feira, dezembro 30, 2015

Treta da semana (atrasada): salário mínimo.

Durante quase toda a história da nossa espécie, a população acompanhou os recursos. Quanto mais alimentos havia, mais pessoas nasciam e a vida continuava igualmente difícil para todos. Por isso, quase todos tinham de trabalhar, salvo uns poucos nobres e padres que viviam à custa dos outros. Depois da revolução agrícola e industrial, e de progressos na medicina, o crescimento populacional foi abrandando e a comida deixou de faltar. Em alguns sítios, pelo menos. Mas continuava a ser preciso o trabalho de muita gente para garantir energia, habitação, transporte e outras coisas importantes. A crescente complexidade destas cadeias de produção tornou o dinheiro indispensável para informar, de forma distribuída, acerca do trabalho que era preciso fazer em cada sítio e momento. Alguns países experimentaram centralizar todas essas decisões e só deu porcaria. Nestas circunstâncias, o salário mínimo fazia sentido. Porque, sendo necessário que (praticamente) todos trabalhassem para garantir o conforto colectivo, e sendo preciso dinheiro para coordenar todo esse trabalho, era inevitável que (praticamente) todos ganhassem o que precisavam para viver pela venda do seu trabalho. Como seria injusto alguém fazer a sua parte e, ainda assim, não ganhar o suficiente para viver com dignidade, instituiu-se o salário mínimo. Todos teriam de trabalhar mas todos ganhariam pelo menos esse salário.

Hoje a situação é diferente. Em vez de se usar o dinheiro para distribuir a alocação do trabalho necessário, cada vez mais é a necessidade de trabalhar que é aproveitada por quem pode comprar trabalho para o vender com lucro, muitas vezes prejudicando a sociedade. Por exemplo, há dias fui assistir ao concerto do Panda e dos Caricas. A minha filha gostou mas, com quatro anos, quase tudo lhe agrada. Se não houvesse Panda, Caricas e a publicidade associada, facilmente arranjava uma coisa mais barata para a entreter. E os artistas que montam o espectáculo também poderiam criar algo de maior valor cultural se não lhes instrumentalizassem o talento como meio de gerar lucros. Infelizmente, os artistas precisam de trabalhar para viver e, por isso, os principais beneficiários daquele trabalho acabam por ser uns poucos accionistas com dinheiro suficiente para fazer dessa necessidade um negócio.

Esta tendência é crescente. Cada vez é preciso menos pessoas para assegurar tarefas importantes que outrora ocupavam muita gente, como a agricultura e a indústria. Cada vez há mais pessoas a trabalhar apenas para fazer passar dinheiro de clientes para patrões, em tarefas socialmente irrelevantes ou mesmo prejudiciais. E cada vez há mais pessoas que nem conseguem vender o seu trabalho porque não há quem o queira comprar. Nestas condições, o salário mínimo como o garante de uma vida digna não faz sentido. Pior ainda, distorce o mercado de trabalho beneficiando os que têm pouco à custa dos que não têm nada. Numa economia onde a oferta de trabalho ultrapassa a procura, aumentar o preço mínimo do trabalho aumenta inevitavelmente o desemprego.

O que é preciso é admitir que os tempos mudaram e que a ideia tradicional de que se tem de trabalhar para viver já não faz sentido. Não pode ser assim porque nem sequer há trabalho remunerável para todos e, mesmo do que há, uma boa parte não tem utilidade para a sociedade, servindo apenas os interesses de uns em detrimento de outros. Por isso, a solução mais razoável é garantir um rendimento universal estável, igual para todos e que não dependa de conseguirem vender o seu trabalho no mercado. É preciso um rendimento básico incondicional (1).

Esta abordagem alternativa resolveria muitos problemas, como o estigma social e desincentivo ao trabalho associado a medidas avulsas para subsidiar os pobres apenas enquanto se mantiverem pobres, ou a incerteza que impede muita gente de ser criativa e empreendedora, algo praticamente vedado a quem não tenha uma fonte garantida de rendimento (ou familiares ricos). Contribuía também para tornar o mercado de trabalho mais eficiente. Trabalhar a tempo inteiro por €500 é diferente de trabalhar um dia por semana por €100. Vender um dia por semana até pode ser bom para quebrar a monotonia e sempre se ganha €100. Vender a semana inteira por €500, ainda por cima se o trabalho não tiver interesse, é algo que só se faz por necessidade. Um rendimento básico universal permitiria também que mais pessoas se dedicassem a trabalho socialmente benéfico mesmo que não remunerado. Começando logo por educar os filhos como deve ser. Ao obrigar toda a gente a trabalhar a tempo inteiro e condenar à miséria quem não o faz estamos a hipotecar as gerações futuras em troca de nada ou menos ainda.

Há apenas dois obstáculos a transpor para implementar o RBI. O menor dos dois é o financiamento. Deixo esse para outro post. O maior é a mentalidade. A situação corrente beneficia quem tem dinheiro para fazer negócio com a compra e venda do trabalho dos outros e muita gente julga ser justo que todos, excepto os ricos, tenham de vender o seu trabalho para sobreviver. Mas não há nada de justo nisto. Assim que um número suficiente de pessoas perceber que o direito a uma vida digna não deve depender da venda dessa vida a terceiros, o problema menor, de financiar um rendimento básico incondicional, será rapidamente resolvido. E penso que estamos muito mais próximos de o conseguir do que estávamos há seis anos, quando escrevi sobre isto pela primeira vez (2).

1- Que já começa a ser experimentado em vários países. Podem ver mais sobre isto em www.rendimentobasico.pt ou no Facebook (este, infelizmente, exige cadastro com o Zuckerberg para aceder à sua web privada).
2- Mercado de trabalho.

sábado, dezembro 26, 2015

Contra o naturalismo.

O Domingos Faria adaptou um argumento de Plantinga contra o ateísmo e o naturalismo. Se aceitamos que não há nada de sobrenatural, afirma o Domingos, temos de aceitar que evoluímos por selecção natural. Mas a selecção natural não favorece a formação de crenças metafísicas verdadeiras. Aliás, «as crenças metafísicas da maioria dos nossos antepassados [referiam] seres ou eventos sobrenaturais que dado o ateísmo são crenças falsas»(1). Portanto, nós não devemos ter um mecanismo fiável para formar crenças metafísicas verdadeiras. Como o ateísmo e o naturalismo são crenças metafísicas e quem as aceitar tem de concluir que não tem um mecanismo cognitivo fiável para formar crenças metafísicas verdadeiras, então «o ateísmo é autoderrotante e, por isso, irracional».

Este argumento tem muitas falhas. Aplica-se igualmente ao Cristianismo, porque «as crenças metafísicas da maioria dos nossos antepassados» também terão de ser consideradas falsas se assumirmos o Cristianismo, dando origem ao mesmo problema com a agravante de levar muita gente inocente ao inferno. Também é incorrecto presumir que o naturalismo exige a evolução de Darwin. Há alternativas igualmente naturalistas, como a de Lamarck, às quais o argumento do Domingos não se aplica. O Domingos também assume que pode generalizar para todas as “crenças metafísicas”. Não me parece que possa. Escreve que «Por crenças metafísicas entendo as crenças sobre a natureza última da realidade, como sustentar que existem entidades universais ou, pelo contrário, que existem apenas particulares; como defender o niilismo mereológico ou, pelo contrário, o universalismo mereológico; como acreditar no naturalismo metafísico ou no seu oposto, entre outros.»(2) Crenças sobre a realidade última das coisas são abordadas pelo ramo da metafísica a que se chamava filosofia natural e que agora chama ciência. Estas têm consequências práticas. E mesmo que a capacidade de formar crenças verdadeiras acerca do niilismo mereológico seja irrelevante para o comportamento, a capacidade de avaliar alegações como “o grande Tongatonga no céu manda que me dês o veado que caçaste” tem consequências relevantes para a selecção natural.

Mas estes problemas são pouco interessantes, pois derivam apenas da ênfase que o Domingos dá ao exercício retórico da argumentação em detrimento da capacidade de explicar. Os dois que foco a seguir são mais interessantes. O primeiro é um erro sobre a evolução de mecanismos cognitivos. O Domingos escreve que «se a evolução seleciona comportamentos adaptativos e se as crenças metafísicas em geral não tendem a causar qualquer comportamento [...] então a verdade ou falsidade das crenças metafísicas parece ser irrelevante ou invisível à seleção natural.»(2) Isto é falso porque “crenças metafísicas” inclui crenças com consequências comportamentais. Mas vou aceitar, por hipótese, que possa ser verdade para uma certa definição de “crença metafísica”. Mesmo que formar crenças metafísicas verdadeiras não tivesse sido directamente seleccionado durante a evolução, isto não exclui a possibilidade de ter havido pressão selectiva para formar os mecanismos que nos dão essa capacidade. Consideremos, por exemplo, a capacidade de construir aviões a jacto. É evidente que o sucesso reprodutivo dos nossos antepassados não esteve relacionado com a construção de aviões a jacto. Mas conseguimos construir aviões a jacto porque temos capacidades cognitivas mais gerais que, essas sim, estiveram sob pressão selectiva positiva. A capacidade de resolver problemas, criar representações simbólicas ou aprender por imitação, por exemplo. Esta última é especialmente relevante para o problema que o Domingos apresenta.

Um papagaio imita sons mapeando o que ouve para uma sequência de vocalizações. É um mecanismo neuronal complexo mas muito rígido. O que ouve é o que diz. Quando um antepassado nosso aprendia a caçar com o seu pai, também tinha de imitar. Mas o mecanismo de imitação dos humanos é muito diferente. O pai evitou pisar aqueles galhos secos, encostou-se àquela árvore uns minutos, deu uma volta maior para ficar de frente para o vento antes de se aproximar da presa e coçou o nariz quando passou perto daquela pedra branca. O filho, imitando, aprendeu a evitar os galhos secos e aproximar-se da presa contra o vento. Mas não aprendeu a coçar o nariz ao pé das pedras brancas nem a descansar só encostado àquela árvore. Porque, ao contrário do papagaio, o humano cria modelos mentais explicativos que permitem compreender e seleccionar os elementos a aprender. Foi assim que o filho conseguiu distinguir entre o que era relevante para a caça e o que não interessava. Este mecanismo, obviamente sob pressão evolutiva, favorece a formação de crenças verdadeiras porque são estas que tendem a dar as melhores explicações e os filtros mais úteis. Está longe de ser infalível, dependendo muito das circunstâncias e da informação disponível, mas é razoável assumir que, nas condições certas, temos uma capacidade cognitiva fiável para formar crenças verdadeiras até acerca de algumas questões que o Domingos considere metafísicas.

Finalmente, o Domingos ignora o trabalho que se faz em ciência para ultrapassar as limitações das nossas capacidades naturais. A evolução não nos dotou de mecanismos fiáveis para detectar bandas de absorção nos espectros de estrelas ou modelar reacções enzimáticas. Nós é que construímos, passo a passo e peça a peça, instrumentos de medição, métodos, sistemas de representação quantitativa e imensas outras coisas para colmatar as lacunas que a biologia deixou. Da invenção da linguagem à mecânica quântica, os mecanismos ao nosso dispor têm evoluído imenso, por um processo análogo, mas diferente, daquele da evolução biológica. É a combinação dessa maquinaria tecnológica e conceptual com os mecanismos cognitivos que a natureza criou que nos permite avaliar o mérito relativo das várias explicações e concluir, de forma fiável, que os sobrenaturalismos são um disparate e que o naturalismo é a melhor opção.

1- Domingos Faria, A irracionalidade do ateísmo.
2- Domingos Faria, Argumento contra o Naturalismo Metafísico

quinta-feira, dezembro 24, 2015

Treta da semana (atrasada): alternativa superior.

Foram submetidos à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior 16 pedidos para acreditação de licenciaturas em medicinas alternativas. Isto é uma treta e estes cursos serão, como diz o David Marçal, «licenciaturas em banha da cobra.»(1) O David aponta também o perigo desta legislação dividir «as instituições de ensino entre as que se dispõem a ensinar falsa ciência e as que não»(2) cedam à pressão de angariar alunos sacrificando a sua integridade. Partilho desta posição e das preocupações do David. Mas, especialmente porque concordo com o que o David defende, tenho de obstar à forma como o justifica. Um problema, aliás, que já arrastamos há algum tempo.

O David descarta estas alternativas porque «não têm fundamento científico» e por «não conseguirem apresentar provas da sua eficácia e segurança.»(2) No debate com o acupunctor Duarte Ramada Curto, o David insiste também neste critério: as medicinas alternativas não são conhecimento científico porque não estão comprovadas (3). Esta justificação fragiliza a posição que defendemos e cria uma confusão acerca do que é a ciência. Em primeiro lugar, o argumento do David parece um argumento de autoridade porque apresenta como pressuposto que a validade das terapias depende de serem ou não científicas. Como a maioria das pessoas imagina que a ciência é coisa de nerds no laboratório e a ciência é exímia a minar autoridades, incluindo a sua própria, esta justificação não serve. É fácil contrapor que os cientistas também se enganam e que a ciência não é critério para tudo.

A insistência no «apresentar provas» ou nas «experiências científicas, descritas de modo transparente, para que vários grupos de investigação possam confirmar ou refutar os resultados» permite ao vendedor da banha de cobra resolver o problema apresentando também as suas “provas” e “experiências científicas”. É uma inevitabilidade estatística que, dado um número suficiente de experiências, alguma calhe suportar a tese desejada. Qualquer que seja a tese. Se for disparando até acertar no alvo não precisa pontaria. No debate, o David referiu as meta-análises à literatura, mas invocar isso perante a afirmação cabal da outra parte de que tem as provas e experiências científicas exigidas acaba por ser pouco persuasivo.

Acima de tudo, a distinção que o David propõe entre ciência e o resto dá uma impressão enganadora. Cada uma das alegadas alternativas, quer terapias como homeopatia ou acupunctura quer, num âmbito mais alargado, coisas como a teologia ou a astrologia, limita-se uma linha de inferências que parte de certas premissas e segue numa direcção bem definida. Os homeopatas assumem que a diluição melhora as propriedades do medicamento, os astrólogos assumem que os astros nos influenciam de certas formas, e assim por diante. Quando se rejeita isso por alegar não cumprirem critérios de cientificidade, dá-se a ideia de que a ciência é apenas mais uma linha destas que se distingue das restantes somente por ter outras premissas e seguir numa direcção diferente. E isto é falso.

A ciência é uma abordagem que fomos aperfeiçoando, e continuamos a aperfeiçoar, para seleccionar entre todas as premissas e direcções de inferência aquele sub-conjunto que encaixa melhor, explica melhor o que observamos e permite prever com mais fiabilidade o que ainda não observámos. Para isso, a ciência tem de abarcar todas as alternativas. A hipótese de que a diluição extrema melhora a qualidade terapêutica é cientificamente admissível, tal como a hipótese contrária, ou a hipótese de que a íris revela todas as doenças do corpo, que Vénus influencia o namoro, que há vida depois da morte ou que um ser inteligente criou todo o universo. A ciência tem de trabalhar com todas estas ideias, e muitas outras, porque o objectivo é encontrar a melhor rede consistente de explicações. Nisto, o que importa não é tanto as “provas” ou “experiências científicas” de cada uma, isoladamente, mas sim como encaixam no puzzle e como permitem construir uma representação detalhada e esclarecedora da realidade.

É incorrecto explicar que se rejeita tretas por não estarem provadas ou por falta de "experiências científicas". Há muitas conclusões cientificamente fundamentadas que dispensam tais coisas. Que o Pai Natal é fantasia, por exemplo, ou que Afonso Henriques não era extraterrestre. Mesmo as que se submete a experiências, são aceites ou rejeitadas pela consistência com outras explicações e pela preponderância das evidências. Não é o resultado de uma “experiência científica” que determina isto. Por exemplo, ainda que um teste de atribuição aleatória com dupla ocultação indicasse que a cura cármica da Maria Helena curava o cancro, justificava-se exigir mais trabalho de confirmação e compreensão dos mecanismos antes de receitar a terapia aos pacientes (4).

É um disparate reconhecer cursos superiores destas coisas. Serão mesmo licenciaturas em banha da cobra. Mas o problema não está na falta de provas ou de experiências científicas. Se fosse assim, só agora é que se começaria a falar sobre o bosão de Higgs nos cursos de física. O problema é que homeopatetices e aldrabapuncturas são ramos soltos que nem encaixam entre si nem são compatíveis com a árvore de conhecimento que estamos a cultivar. E neste corpo de conhecimento, consistente e muito mais vasto, há alternativas superiores a quaisquer “terapêuticas não convencionais”. É por isso, pelo que já sabemos de genética, microbiologia, química e medicina, que será um disparate formar terapeutas em especulações disjuntas acerca de energias bloqueadas, forças misteriosas e tretas afins em vez de lhes dar uma formação sólida e consistente com tudo o resto que já sabemos.

1- Expresso, Medicinas alternativas a caminho do ensino superior.
2- noticias magazine, Instituições de ensino inferior
3- Renascença, A medicina alternativa funciona ou é pseudociência?
4- Maria Helena, Cura Cármica

segunda-feira, dezembro 21, 2015

O terror da cópia.

Um leitor que assina Asterixco criticou o meu post sobre o bloqueio de sites porque defende a legitimidade e o respeito pelos monopólios dos autores (1). Os seus comentários ilustram bem como o apoio a este sistema assenta numa compreensão defeituosa do problema. Logo a começar pelo pseudónimo. Presumo que o leitor não tenha pago licença à Éditions Albert-René para divulgar uma criação derivada de obras detidas pela editora. E concordo que seria absurdo ter de o fazer. Mas, para concordarmos nisto, temos de abandonar a ideia de um “direito de autor” abstracto que justifique quaisquer restrições. Em vez disso, temos de reconhecer que o direito de gerir um negócio não permite violar direitos de terceiros. É por isso que o direito da editora a fazer negócio não pode impedir o leitor de assinar comentários com o pseudónimo que entender. Uma vez arrumado esse espantalho do “direito de autor” omnipotente, é fácil perceber também que o direito ao negócio não justifica restringir o acesso a sites na Web, proibir a troca de ficheiros ou impedir que as pessoas usem o seu equipamento, em suas casas, como bem entenderem.

Mas Asterixco levantou um ponto concreto que merece ser descascado em mais detalhe. «A pirataria [...] causa desemprego e precariedade […] por exemplo na área do áudio visual, já que em muitos casos a venda de cópias ou os direitos pela reprodução das mesmas é o único meio de subsistência.» Refere também um “estudo” da MPAA segundo o qual «só no Brasil se perderam 90 mil postos de trabalho devido à pirataria, para alem de 976 milhões de reais perdidos em impostos». Antes de mais, é preciso notar que estas contas são uma aldrabice. Essencialmente, estas estimativas equivalem a um restaurante contabilizar como prejuízo o valor comercial de todas as refeições que as pessoas do bairro comam em casa, usando depois esse número para estimar quantos postos de trabalho haveria se todas essas refeições fossem comidas no restaurante aos preços que o restaurante quisesse cobrar. Dá valores impressionantes mas que não querem dizer nada.

É preciso também apontar a circularidade do raciocínio aqui implícito. Copiar, por si, é um acto legítimo. É a copiar que aprendemos a falar, a vestir, a escrever, a cozinhar e até a criar. E prejudicar um negócio por não comprar é igualmente legítimo. É até parte fundamental do mercado livre e do capitalismo, porque favorecer quem oferece os melhores produtos ou serviços implica deixar falir o resto. Mas, neste caso, a perda de negócio é apresentada como uma injustiça, em vez de um direito do consumidor gastar o dinheiro noutras coisas, porque é causada pela “pirataria”, que se presume ser uma cópia ilegítima. No entanto, quando se tenta averiguar porque é que a cópia do CD é ilegítima quando a cópia de expressões algébricas, números, linguagem, receitas e imensas outras coisas é legítima, a justificação acaba por dar a volta e chegar ao ponto inicial. Estraga o negócio. Ou seja, é ilegítimo copiar só porque quem copia não compra e é ilegítimo não comprar só porque quem não compra copia. Afinal, a causa não causada não é Deus. É o copyright.

Mas vamos pôr de lado a aldrabice contabilística e a petição de princípio para focar o que realmente se passa. Se é fácil copiar então há menos disposição por parte do comprador para pagar pela cópia. Este problema ocorre sempre que a tecnologia facilita algo que anteriormente era difícil e que, por isso, perde valor como negócio. Aconteceu com quem vendia gelo ou água da fonte. Aconteceu com quem vendia legumes na rua, com sapateiros, e alfaiates, e amoladores. Aconteceu com quem vendia o seu trabalho na agricultura, quando lavrar, semear e colher era difícil. Só em Portugal, perdeu-se milhões de empregos na agricultura por causa da mecanização. Fazendo as contas como Asterixco propõe, a pior “pirataria” será lavrar a terra com o tractor.

O problema daqueles para quem «a venda de cópias ou os direitos pela reprodução das mesmas é o único meio de subsistência» é o mesmo problema que tantos enfrentaram quando a tecnologia tornou o seu produto extremamente barato. Um problema que nunca se resolveu com legislação ou proibições, apesar de se ter tentado*. Uma solução é fazerem como faz quem vende iogurtes. O iogurte também é fácil de copiar. Basta misturar em leite morno e esperar. Por isso, quem quer fazer negócio da venda do iogurte, vende-o suficientemente barato para não compensar o trabalho de copiar. É esta a razão do sucesso de serviços de streaming e subscrição ou de modelos de negócio como o YouTube. São convenientes e suficientemente baratos para valer a pena. Em alternativa, podem esquecer a abordagem de ganhar pela cópia – copiar é algo que todos podem fazer, pelo que é mau negócio – e passar a cobrar pelo que fazem e que mais ninguém faz. Pelo serviço de criar algo novo. Se são bons artistas e capazes de criar obras únicas que as pessoas desejem, cobrem por isso que a criatividade não se consegue copiar.

Seja como for, o negócio de vender cópias é apenas isso. Um negócio. Não é arte, não merece protecção e não confere direitos especiais. Asterixco diz que o mercado não funciona se «a oferta é copiada e entregue à borla à procura». É verdade. É por isso que a tabuada do ratinho já não dá grande lucro. Mas isso é um problema de mercado e não um problema legal. Proibir a partilha de ficheiros com os computadores para proteger a venda de cópias de músicas é tão absurdo como proibir as contas com o telemóvel para proteger a venda de tabuadas.

* Um exemplo disto foi o Red Flag Act de 1865, que obrigava os automóveis a circular sempre precedidos de um homem, a pé, empunhando uma bandeira vermelha. Julgavam os empresários dos caminhos de ferro que esta lei iria garantir-lhes os lucros no negócio dos transportes.

1- Treta da Semana: conduta errónea.

domingo, dezembro 20, 2015

Treta da semana (atrasada): mérito e rigor

Algumas justificações para manter os exames da quarta classe são tão vagas que nem são inteligíveis. Acusar que é facilitismo acabar com estes exames não diz nada se não se aponta o que é que se quer dificultar e qual a vantagem em dificultá-lo. Especialmente tratando-se da passagem entre a quarta classe e o preparatório, que não se esperaria difícil. Alegar que os exames contribuem para a qualidade do ensino também só faria sentido se explicassem como. Se o efeito for pressionar os professores a preparar melhor os alunos para os exames o resultado provável será análogo ao que a Volkswagen fez com os testes de emissões.

A tese de que os exames são um «instrumento aferidor e regulador»(1) é mais concreta mas pouco plausível. Segundo a Sociedade Portuguesa de Matemática, «É indispensável que continuem a existir instrumentos que permitam a aferição externa dos conhecimentos e capacidades»(2) e «se por [esses instrumentos] ocorrer alguma distorção no trabalho letivo é essa distorção que deve ser corrigida». Mas a única forma de corrigir a distorção causada pelos exames contarem para a nota é os exames não contarem para a nota. Substituí-los, por exemplo, por provas de aferição. Além disso, a capacidade de memorizar as repostas certas para os exames de Matemática ou Português não é importante para prever o sucesso da criança no ciclo preparatório. O mais importante é que aprenda na primária a comportar-se adequadamente nas aulas e a estudar, e é isso que deve contar para decidir se transita para o ciclo preparatório.

De entre as objecções à eliminação dos exames da quarta classe, há duas que me parecem especialmente más pela facilidade com que podem enganar. Uma é a de que os exames da quarta classe são uma forma justa de reconhecer o mérito, ou demérito, das crianças. Paulo Rangel até escreveu que «É hipócrita a ideia de que os exames são socialmente injustos» e que «Nem a vida nem a competição internacional – vinda dos países de leste ou do extremo oriente – se compadecem com esta “infantilização” do discurso» (3). Isto faz algum sentido com adultos. No entanto, crianças de nove anos não saem da quarta classe directamente para o mercado de trabalho; tratá-las como crianças não as infantiliza mais do que realmente já são; e o resultado que têm nos exames é produto quase exclusivo de factores que as crianças não controlam e pelos quais não são responsáveis. Por isso, é disparatado e injusto avaliar a aptidão da criança de nove anos para começar o ciclo preparatório com o mesmo tipo de testes com que se avalia quem quer entrar para a universidade ou concluir uma licenciatura.

Mas o pior chavão é o do rigor. O termo implica exactidão, que é a propriedade de uma medida ficar consistentemente próxima do valor que mede, coisa que os exames não fazem. São medidas precisas que fascinam os burocratas da certificação porque reduzem algo complexo, como o conhecimento, a um valor com ar sério. Este aluno teve 83% e o outro só 78%. Impressionante. Mas a precisão é enganadora. Bastava o exame ter sido feito noutro dia, avaliado por outra pessoa ou o enunciado ter sido outro para o resultado ser muito diferente.

Este é um problema que enfrento no final de cada semestre. Por exigência burocrática, tenho de avaliar cada aluno com um número inteiro de 0 a 20. Para isso, faço tabelas precisas com os critérios de avaliação de cada pergunta dos testes e cada item dos trabalhos. Tudo até às décimas. Mas apenas porque tenho de poder explicar a cada aluno de onde vem a nota e para garantir critérios uniformes. Isto não tem nada que ver com rigor porque medir o conhecimento do aluno com um só número exige uma data de simplificações arbitrárias para combinar os vários aspectos desse conhecimento. Por isso, aquele 16 poderia, com igual legitimidade, ter sido um 18 ou um 14 se eu tivesse ponderado os vários factores de forma diferente. Acresce a isto a incerteza da medição, que depende de muitos factores circunstanciais alheios ao conhecimento – uma dor de barriga no dia do exame pode valer mais do que qualquer pergunta no enunciado – e o resultado final é um número preciso mas sem rigor. E se é assim no ensino superior, em que se avalia adultos em disciplinas bem circunscritas, muito pior será na quarta classe com o objectivo principal de avaliar se a criança está pronta para o ciclo seguinte.

Para haver rigor na avaliação era preciso adequar a precisão do resultado à precisão do método e incluir margens de erro. Eu conseguiria fazer uma classificação rigorosa se separasse os alunos apenas em três categorias, como insuficiente, adequado e excelente, e pudesse indicar para cada um se tinha ou não confiança nessa classificação. Dessa forma, a minha avaliação corresponderia consistentemente ao nível de conhecimento do aluno, a menos dessa margem de confiança explícita. Quando me obrigam a dar um número de 0 a 20 e a descurar as margens de erro sacrificam o rigor em favor de uma precisão enganadora. É como medir uma coisa com a mão e dizer que tem 4,38 palmos de comprimento. Isso não é rigor. É aldrabice. E avaliar um aluno da quarta classe com notas à centésima é ainda pior.

É verdade que, se fizermos a média de um número grande de alunos, as margens de erro estreitam parcialmente pela eliminação dos erros aleatórios. Isto permite provas de aferição agregadas para monitorizar o progresso médio dos alunos, se bem que sempre enviesadas pelas decisões arbitrárias dos avaliadores. Seja como for, não é rigoroso avaliar indivíduos com a precisão que se tem nestes exames. Essas avaliações individuais absurdamente precisas são só rigor a fingir e só servem para uns burocratas fazerem gráficos bonitos e enganarem os leigos.

1 - DN, Bandeira dos exames é a primeira a cair
2- DN, Sociedade Portuguesa de Matemática contra fim dos exames de 4.º ano
3- Público, Rumo ao facilitismo: rapidamente e em força!

terça-feira, dezembro 15, 2015

Dia mundial da filosofia.

A propósito do dia mundial da filosofia, fui convidado a dar uma palestra no Colégio Campo de Flores no passado dia 20 de Novembro (1). Aqui está o vídeo:


Link do vídeo

Aproveito para agradecer à Rita Duarte, pelo convite, e ao Colégio Campo de Flores por me ter recebido lá pela segunda vez. Também peço desculpa pelo “satisfactório” no quinto slide. Depois de ter passado o semestre a fazer slides em Inglês, não devia ter prescindido do corrector ortográfico.

1- Colégio Campo de Flores, Dia Mundial da Filosofia

sexta-feira, dezembro 11, 2015

Treta da semana (atrasada)*: conduta errónea.

Em Julho, com a assinatura de um memorando, provedores de acesso à Internet e entidades gestoras de monopólios sobre bens culturais criaram um procedimento para «agilizar o barramento do acesso a sites com conteúdos piratas»(1). Agilizou ignorando empecilhos como o artigo 32º da Constituição, segundo o qual «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» e «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação». Para evitar este processo moroso, o Movimento Cívico Anti-Pirataria (MAPiNET) substitui juízes, advogados, prossecução, defesa e julgamento e decide sozinho quais os sites criminosos. A sentença também é única, como convém a sistemas “ágeis” de justiça, e é imediatamente executada pelos ISP que impedem o acesso a esses sites. Para sempre e sem direito a contraditório.

Chamam a isto “bloquear os sites” mas é uma expressão enganadora. Na verdade, os sites não são bloqueados. O que cada ISP faz é sabotar o serviço de resolução de nomes de domínio, um serviço pago pelos seus clientes como parte do pacote de acesso à Internet. A pedido do MAPiNET, os ISP impedem que esse serviço forneça os endereços de sites como o “tugaanimado.net”, por exemplo, onde criminosos expõem ligações para desenhos animados em Português. Ao sabotar um serviço pelo qual são pagos, os ISP levam alguns clientes a optar por um serviço de resolução de nomes (DNS) gratuito e que não esteja sabotado. Como o da Google, por exemplo. Para isto basta alguns conhecimentos rudimentares (2) ou ter um primo informático. E toda gente tem um primo informático.

Confrontado com a embaraçosa facilidade com que se neutraliza a marosca, Carlos Eugénio, secretário geral do MAPiNET, acusa de «conduta errónea» quem usar um DNS alternativo. Mais errónea ainda, parece, do que sabotar o serviço pelo qual as pessoas pagam. Alega também que «contornar o bloqueio de sites com conteúdos piratas é como ultrapassar os 120 Km/H quando se vê o sinal de limite de velocidade na estrada»(3), mas há diferenças importantes. Em 2014, os acidentes de viação causaram trinta e nove mil feridos e quatrocentos e oitenta e dois mortos (4), com o excesso de velocidade sendo a causa principal dos acidentes mais graves. Não encontrei estatísticas sobre o número de mortos e feridos causados por visitas ao site “tugaanimado.net” mas suspeito que seja significativamente inferior. Além disso, o limite de velocidade foi fixado na lei por decisão dos nossos representantes eleitos, em conformidade com a Constituição, e o cumprimento destas regras é fiscalizado pela polícia. A recusa do meu ISP em me fornecer o endereço do “tugaanimado.net” só porque alguém no MAPiNET mandou não pretende resolver um problema tão grave nem goza da mesma legitimidade. É que, mesmo com o excesso de velocidade a matar centenas de pessoas e a deixar inválidas para a vida mais uns milhares todos os anos, não se inclui nos automóveis dispositivos que bloqueiem o acelerador ou desliguem a viatura se a velocidade máxima legal for ultrapassada. Assumimos que quem compra um carro que chega aos 240km/h é que se responsabiliza pelo que faz e exigimos que sejam os tribunais a decidir o que é ou não é crime. Para defender interesses de um punhado de comerciantes, Eugénio propõe medidas que nem para evitar centenas de mortes por ano se admite tomar. Isto é tão disparatado que até dá vontade de ir ao tugaanimado descarregar uma temporada inteira das Winx, em Português, só para o chatear.

O secretário geral do MAPiNET afirma também que «ao ‘esbarrarem’ com um aviso de que o site está bloqueado, só contorna as regras quem quer de facto violar a lei no que diz respeito aos direitos de autor». E com isto junta os dois problemas mais salientes de aplicar ao domínio digital um sistema de coutadas e monopólios criado para objectos físicos. Em primeiro lugar, o crime tem de se estender muito além do que foi originalmente pensado. Dantes, «violar a lei no que diz respeito aos direitos de autor» seria vender cassetes pirata na feira ou montar um emissor clandestino de TV. Hoje, é violação dos direitos de autor partilhar sequências de bits, emprestar ebooks com DRM, divulgar hiperligações ou até visitar sites contra a vontade do MAPiNET. Como no domínio digital não é possível restringir a cópia sem censura, porque copiar é simplesmente transmitir informação de um lado para o outro, qualquer acto trivial e corriqueiro pode ser uma violação. O que leva ao segundo problema, que motivou este memorando. A justiça, como a concebemos, não consegue lidar com “crimes” que praticamente toda a gente cometa quase todos os dias, muitos até sem saber. Em rigor, reencaminhar um email para várias pessoas sem autorização do autor viola os direitos exclusivos de distribuição da obra escrita e pode dar até três anos de cadeia. Como não pode haver um julgamento para cada site visitado, ficheiro partilhado ou email reencaminhado, é preciso “agilizar” a justiça dando aos comerciantes o poder de declarar criminoso quem lhes incomodar o negócio.

O secretário geral do MAPiNET «lamenta que as pessoas pensem que "a pirataria é um ato de menor importância”» Eu também. Porque aquilo a que chamam “pirataria” extravasa o âmbito do comércio de cópias, para o qual estes monopólios foram concebidos, e invade áreas tão importantes como a privacidade, a liberdade de trocar informação e os princípios de um Estado de direito, no qual culpa e castigo são determinados por juízes e não por vendedores a julgar em causa própria. A “pirataria” não é um acto de menor importância. É o exercício de direitos muito mais fundamentais e importantes do que o negócio dos mapinetas.

*Muito atrasada... nos últimos meses tenho tido pouco tempo para cuidar aqui do quintal. Mas, se quiserem saber com que tenho andado entretido, podem ver aqui como usar Python para automatizar processamento de dados ou aqui um pouco sobre aprendizagem automática (que, infelizmente para os meus alunos, só é automática depois de se aprender).

1- Sapo TEK, A pirataria online tem os dias contados em Portugal? Acordo facilita bloqueio de sites pelos operadores
2- Google developers, Configure your network settings to use Google Public DNS
3- SapoTEK, MAPiNET deixa duras críticas a todos os que contornam o bloqueio de sites piratas
4- Pordata, Acidentes de viação com vítimas, feridos e mortos – Continente