quinta-feira, dezembro 24, 2015

Treta da semana (atrasada): alternativa superior.

Foram submetidos à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior 16 pedidos para acreditação de licenciaturas em medicinas alternativas. Isto é uma treta e estes cursos serão, como diz o David Marçal, «licenciaturas em banha da cobra.»(1) O David aponta também o perigo desta legislação dividir «as instituições de ensino entre as que se dispõem a ensinar falsa ciência e as que não»(2) cedam à pressão de angariar alunos sacrificando a sua integridade. Partilho desta posição e das preocupações do David. Mas, especialmente porque concordo com o que o David defende, tenho de obstar à forma como o justifica. Um problema, aliás, que já arrastamos há algum tempo.

O David descarta estas alternativas porque «não têm fundamento científico» e por «não conseguirem apresentar provas da sua eficácia e segurança.»(2) No debate com o acupunctor Duarte Ramada Curto, o David insiste também neste critério: as medicinas alternativas não são conhecimento científico porque não estão comprovadas (3). Esta justificação fragiliza a posição que defendemos e cria uma confusão acerca do que é a ciência. Em primeiro lugar, o argumento do David parece um argumento de autoridade porque apresenta como pressuposto que a validade das terapias depende de serem ou não científicas. Como a maioria das pessoas imagina que a ciência é coisa de nerds no laboratório e a ciência é exímia a minar autoridades, incluindo a sua própria, esta justificação não serve. É fácil contrapor que os cientistas também se enganam e que a ciência não é critério para tudo.

A insistência no «apresentar provas» ou nas «experiências científicas, descritas de modo transparente, para que vários grupos de investigação possam confirmar ou refutar os resultados» permite ao vendedor da banha de cobra resolver o problema apresentando também as suas “provas” e “experiências científicas”. É uma inevitabilidade estatística que, dado um número suficiente de experiências, alguma calhe suportar a tese desejada. Qualquer que seja a tese. Se for disparando até acertar no alvo não precisa pontaria. No debate, o David referiu as meta-análises à literatura, mas invocar isso perante a afirmação cabal da outra parte de que tem as provas e experiências científicas exigidas acaba por ser pouco persuasivo.

Acima de tudo, a distinção que o David propõe entre ciência e o resto dá uma impressão enganadora. Cada uma das alegadas alternativas, quer terapias como homeopatia ou acupunctura quer, num âmbito mais alargado, coisas como a teologia ou a astrologia, limita-se uma linha de inferências que parte de certas premissas e segue numa direcção bem definida. Os homeopatas assumem que a diluição melhora as propriedades do medicamento, os astrólogos assumem que os astros nos influenciam de certas formas, e assim por diante. Quando se rejeita isso por alegar não cumprirem critérios de cientificidade, dá-se a ideia de que a ciência é apenas mais uma linha destas que se distingue das restantes somente por ter outras premissas e seguir numa direcção diferente. E isto é falso.

A ciência é uma abordagem que fomos aperfeiçoando, e continuamos a aperfeiçoar, para seleccionar entre todas as premissas e direcções de inferência aquele sub-conjunto que encaixa melhor, explica melhor o que observamos e permite prever com mais fiabilidade o que ainda não observámos. Para isso, a ciência tem de abarcar todas as alternativas. A hipótese de que a diluição extrema melhora a qualidade terapêutica é cientificamente admissível, tal como a hipótese contrária, ou a hipótese de que a íris revela todas as doenças do corpo, que Vénus influencia o namoro, que há vida depois da morte ou que um ser inteligente criou todo o universo. A ciência tem de trabalhar com todas estas ideias, e muitas outras, porque o objectivo é encontrar a melhor rede consistente de explicações. Nisto, o que importa não é tanto as “provas” ou “experiências científicas” de cada uma, isoladamente, mas sim como encaixam no puzzle e como permitem construir uma representação detalhada e esclarecedora da realidade.

É incorrecto explicar que se rejeita tretas por não estarem provadas ou por falta de "experiências científicas". Há muitas conclusões cientificamente fundamentadas que dispensam tais coisas. Que o Pai Natal é fantasia, por exemplo, ou que Afonso Henriques não era extraterrestre. Mesmo as que se submete a experiências, são aceites ou rejeitadas pela consistência com outras explicações e pela preponderância das evidências. Não é o resultado de uma “experiência científica” que determina isto. Por exemplo, ainda que um teste de atribuição aleatória com dupla ocultação indicasse que a cura cármica da Maria Helena curava o cancro, justificava-se exigir mais trabalho de confirmação e compreensão dos mecanismos antes de receitar a terapia aos pacientes (4).

É um disparate reconhecer cursos superiores destas coisas. Serão mesmo licenciaturas em banha da cobra. Mas o problema não está na falta de provas ou de experiências científicas. Se fosse assim, só agora é que se começaria a falar sobre o bosão de Higgs nos cursos de física. O problema é que homeopatetices e aldrabapuncturas são ramos soltos que nem encaixam entre si nem são compatíveis com a árvore de conhecimento que estamos a cultivar. E neste corpo de conhecimento, consistente e muito mais vasto, há alternativas superiores a quaisquer “terapêuticas não convencionais”. É por isso, pelo que já sabemos de genética, microbiologia, química e medicina, que será um disparate formar terapeutas em especulações disjuntas acerca de energias bloqueadas, forças misteriosas e tretas afins em vez de lhes dar uma formação sólida e consistente com tudo o resto que já sabemos.

1- Expresso, Medicinas alternativas a caminho do ensino superior.
2- noticias magazine, Instituições de ensino inferior
3- Renascença, A medicina alternativa funciona ou é pseudociência?
4- Maria Helena, Cura Cármica

1 comentário:

  1. Caro Ludwig,

    Esta discussão é sobre a importância de falarmos de estatística bayesiana e de como resultados experimentais tem de ser abordados no
    contexto de tudo oque se sabe.

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