quinta-feira, abril 24, 2014

Treta da semana (passada): Henrique, o climatólogo.

Escreveu o Henrique Raposo que «A ideia de que o homem é a causa do "aquecimento global" ou das "mudanças climáticas" (a narrativa muda consoante a temperatura) sempre me pareceu uma manifestação da velha arrogância iluminista que coloca o homem no centro de tudo» (1). Confundiu-se duas vezes. Primeiro, ao julgar que "aquecimento global" e "mudanças climáticas" referem a mesma coisa ou pretendem mudar alguma narrativa. São termos diferentes e ambos já muito usados para referir duas coisas diferentes. O termo “aquecimento global” refere o facto observável da temperatura global estar a subir, a uma velocidade ordens de grandeza superior ao que normalmente se observa no registo geológico. O outro termo, “mudança climática”, refere um efeito do aquecimento global que é a alteração dos padrões climáticos. Infelizmente, parece que ninguém instalou a Wikipedia na Internet do Henrique. Para poupar estas situações embaraçosas aproveitava para pedir ao responsável que tratasse disso assim que possível, não vá o Henrique ser obrigado a escrever novamente sobre algo que não percebe sem a possibilidade sequer de consultar o significado dos termos (2).

A outra confusão do Henrique é julgar que a suposta parecença com a «velha arrogância iluminista» tem alguma relevância. É verdade que há «fenómenos com mais poder do que a humanidade». A pandemia de gripe de 1918 matou entre 50 a 100 milhões de pessoas, muito mais do que a primeira guerra mundial (3). No entanto, seria disparate descartar como «arrogância iluminista» qualquer preocupação com uma guerra mundial só porque a gripe matou mais gente. Com as alterações ambientais há o risco ainda mais sério dos efeitos serem ampliados precisamente pelo poder da natureza. Nos muitos sítios onde desatam a cortar árvores se calhar também argumentam que é «arrogância iluminista» dizer para terem cuidado. Mas depois, quando uma chuvada faz escorregar a lama toda que ficou exposta e a aldeia acaba soterrada, vêm dizer que foi um “desastre natural”.

Se considerarmos a escala absoluta de temperatura, o efeito antropogénico é mínimo. Entre o zero absoluto e a temperatura média da Terra vão alguns 300ºC. Os gases que temos mandado para a atmosfera estão a subir esta temperatura apenas mais uns 0.1% do total. Claramente, o efeito do Sol, do vapor de água e de tudo o resto é muito maior do que o nosso contributo. Mas essa perspectiva, por muito humilde que seja, é irrelevante porque a escala que nos interessa não é a que começa nos -273.15ºC. A escala que nos interessa é a que nos afecta, e essa é muito mais estreita. É a zona por onde se espalham os mosquitos que transmitem a malária, é como se altera o padrão das chuvas e o impacto que isso tem na agricultura, é a severidade das tempestades e assim por diante. Tudo coisas irrelevantes à escala da Terra mas bem importantes para milhares de milhões de pessoas. Também podemos dizer que, com uma profundidade média de três quilómetros e meio, um aumento de poucos metros no nível dos oceanos é irrelevante. Para os oceanos é irrelevante, sim. Mas para toda a gente que vive nesses poucos metros o problema é sério. Mesmo que fosse «arrogância iluminista» pensar que podemos fazer grandes estragos à escala planetária não é arrogância nenhuma ter consciência de que a nossa forma de vida é extremamente sensível mesmo às alterações mais pequenas. O Henrique pensa que o problema é «uma ciência ambiental demasiado ideológica [...] reconstruir um mundozinho antropocêntrico que não tolera a existência de nada superior ao homem.» Mas o problema é outro. É a arrogância dos ignorantes que acham que nada do que nós fizermos pode ter consequências.

Finalmente, pedia que também instalassem o Google na Internet do Henrique. É que ele termina o post dizendo que não percebe «esta coisa esquisita que é não ver o Sol e os vulcões.» Parece julgar que, entre todos os peritos em climatologia, só ele se lembrou do Sol e dos vulcões. Há mais gente que tenha considerado os efeitos da variação na intensidade da radiação solar e das emissões vulcânicas. No entanto, nas últimas décadas, esses efeitos têm sido no sentido de reduzir a temperatura da Terra (4), mitigando parcialmente aquecimento causado pelos dez mil milhões de toneladas de compostos de carbono que espalhamos pelo ar em cada ano.

Corrigido a 28-4; por gralha tinha o zero absoluto mais frio do que é possível. Obrigado ao Zurk pela correcção.

1- Henrique Raposo, O ano sem verão.
2- Wikipedia, Global warming, e Climate change.
3- Wikipedia, 1918 flu pandemic, World War I casualties.
4- Sun & climate: moving in opposite directions; Sun-dimming volcanoes partly explain global warming hiatus-study .

domingo, abril 20, 2014

Treta da semana (passada): a prova.

No blog Senza Pagare há um post que explica: «Como provar que o Catolicismo é a forma verdadeira do Cristianismo» (1). É fantástico. De um arremesso resolve uma carrada de perguntas que há milénios suscitam discussão, por vezes com violência. Se há vida depois da morte, quem criou o universo, se existem deuses, quais e o que pensam da contracepção. Tudo isso respondido «uma forma simples e rápida». Primeiro, resolve-se o problema de provar que é o cristianismo a única religião verdadeira: «Maomé ou Buda ressuscitaram dos mortos? Não. Portanto isto termina muito rapidamente o debate sobre as religiões do mundo.» Tau! Toma que já levaste.

Depois é preciso resolver o problema das «36,000 denominações que entram em conflito sobre as crenças e moral cristã». Trinta e seis mil denominações cristãs que não são católicas. Como é que podemos rapidamente saber que a católica é a verdadeira? É também muito simples. «Comecem por Martinho Lutero. Lutero fez algum milagre? Fez alguma profecia que veio a acontecer? Não, nada disso.» E já está. Começa-se por Lutero, que vai logo fora porque não fez milagres, e as restantes 35,999 denominações vão fora também por arrasto. Sobra só a católica que, segundo o autor, podemos concluir ser verdadeira porque enquanto Lutero andava sentado nas mãos sem milagrar coisa nenhuma «aconteceu o milagre de Nossa Senhora de Guadalupe (um milagre público) a S. João Diogo e a milhões de Astecas», já para não falar no «missionário Católico S. Francisco de Xavier» que, por essa altura, «estava a pregar miraculosamente aos povos da Índia, Indonésia, etc. nas suas línguas maternas sem as estudar.» Temos também muitos milagres públicos reivindicados pelos católicos nos últimos 100 anos, como as aparições de Maria em Fátima, a água mágica de Lourdes e o Padre Pio que sangrou das mãos e dos pés, um milagre de utilidade dúbia mas aparentemente impressionante.

É um curriculum difícil de superar. Assim de momento ocorre-me apenas uma outra divindade que possa concorrer com Jesus e os seus dois parceiros co-substantivos em matéria de milagres recentes e ressureição. Falo, naturalmente, de John Frum (2). Tal como Jesus, John Frum também fez o milagre de viajar do mundo dos mortos, o mundo dos deuses e dos antepassados, para o nosso plano mortal. Tal como o católicos, também os seguidores de John Frum foram testemunhas de muitos milagres que não conseguiam explicar, e em pleno século XX. É difícil decidir qual dos dois será mais plausível, mas este post que traduziram para o Senza Pagare contrasta marcadamente com a abordagem normalmente enfadonha da teologia e da filosofia da religião. É uma espécie de autoclismo argumentativo. Com uma puxadela vai-se tudo embora. Todas as religiões não cristãs, dezenas de milhares de seitas cristãs não católicas e tudo o resto. Fica apenas o catolicismo, um pequeno resquício desta diversidade toda ainda agarrado à loiça. Demonstra também quão pequena é a diferença que separa o crente do ateu. Metaforicamente, o ateu apenas se distingue do crente por dar uma passagem final com a piaçaba.

PS: Calhou, por acaso ou por mão divina (e se não me falham as contas), ser esta a treta da semana com o número 365. Foram sete anos de rubrica semanal regular, à parte de alguns atrasos quando o trabalho aperta mais. Aqui fica o link para o primeiro post da série, a 22 de Abril de 2007: Treta da semana: o meu horóscopo. Bom resto de Páscoa e desejos de muitas amêndoas e ovos de chocolate para celebrarem o dia em que os judeus pintaram as ombreiras das portas com sangue de carneiro para Deus, no seu infinito amor, só matar os filhos dos egípcios, louvado seja.

1- Senza Pagare, Como provar que o Catolicismo é a forma verdadeira do Cristianismo (Dica: Milagres).
2- Wikipedia, John Frum, e Damn Interesting, John Frum and the Cargo Cults

sábado, abril 19, 2014

É ideologia, mas não como a outra.

Num comentário ao meu post anterior, o Carlos Soares escreveu que «O ateísmo é uma ideologia, como outra qualquer» (1). Em parte tem razão. Parte do que referem quando me chamam ateu é a minha atitude de não venerar nada, de não ter fé e de não reconhecer coisa alguma como divina. Isso, admito, é tão ideológico como ter fé ou venerar uma divindade, pelo menos no sentido de ideologia como “visão do mundo”. Em ambos os casos, tanto o crente como o ateu têm uma noção normativa de qual a melhor atitude a ter. No entanto, o Carlos está enganado ao julgar que o ateísmo é uma ideologia «como outra qualquer». Em particular, é muito diferente das ideologias religiosas.

A outra parte do que referem quando me chamam ateu é a minha opinião de que o universo não foi criado por algum ser inteligente com poderes sobrenaturais. Essa parte é completamente independente da minha ideologia de não religioso. É apenas uma conclusão à qual chego da mesma forma que concluo que não tenho o poder de mover objectos com a mente nem consigo fazer feitiçarias. Gostava que a realidade fosse outra. Gostava de ter poderes especiais ou de ser amigo pessoal do criador do universo. Mas os factos indicam que não é esse o caso e, quando se trata de factos, sinto que devo pôr de lado os meus desejos e encarar a realidade como ela se apresenta. Portanto, as minhas conclusões acerca dos factos não derivam da minha atitude de não venerar divindades. Derivam apenas da informação na qual posso, objectivamente, fundamentar conclusões.

O mesmo se passa no outro sentido. A minha ideologia de irreligioso também não depende dos factos serem assim ou assado. Se o universo tivesse sido criado por Deus, se Jesus viesse a minha casa explicar como o tinha feito – a bíblia é notoriamente omissa nesses detalhes – e até mesmo se nos tornássemos grandes amigos, eu continuaria ateu na minha ideologia. Admitiria ser verdade que existia esse tal criador e que tinha feito tudo e um par de botas mas continuaria a não ter qualquer disposição para missas, rezas, veneração ou fé. Até podia simpatizar com ele. Se ele merecesse, até poderia amar Deus. Mas nunca “amar a Deus” como o crente religioso, com aquela preposição que nem sequer compreendo. A minha falta de disposição para me ajoelhar, rezar, ter fé ou participar em rituais é algo subjectivo que não tem nada que ver com a minha opinião acerca dos factos.

É nesta independência entre os aspectos ideológicos e as opiniões factuais que o ateísmo difere fundamentalmente das ideologias religiosas. Porque cada religião não só promove uma ideologia de veneração e submissão mas também entrosa esses aspectos subjectivos com alegações objectivas acerca dos factos que, por sua vez, impõe aos seguidores pelo dogma e pela fé. Isto é perigoso. Ter uma ideologia – uma “visão do mundo” – que assumimos puramente subjectiva e que se restringe apenas à forma como nos sentimos perante a realidade, sejam quais forem os factos, não levanta qualquer problema no convívio com outras ideologias igualmente subjectivas. Eu não gosto de rezar nem de ir à missa mas não me faz diferença que outros gostem. É uma mera questão de gosto, como uns gostarem de ervilhas e outros não. O que me preocupa nas religiões é que, para o religioso, a ideologia não se restringe ao subjectivo. Uma “visão do mundo” que distorce os factos e obriga à adesão intransigente a certos dogmas mistura perigosamente juízos de valor com questões objectivas. Por exemplo, um elemento central do cristianismo é que Jesus se sacrificou pelos nossos pecados e que apenas pela fé no poder redentor desse sacrifício merecemos evitar uma eternidade de sofrimento. Na Europa de hoje já são poucas as pessoas que levam isto a sério pelo que, felizmente, esta crença se torna cada vez mais inconsequente. Mas são muitos os exemplos históricos das consequências desta ideia de que quem discorda de uma alegação factual merece ser castigado e, infelizmente, em países menos esclarecidos ainda hoje muita gente sofre por esta misturada entre objectivo e subjectivo.

É verdade que, além do meu ateísmo objectivo de concluir que o universo não foi criado por um ser inteligente eu tenho também o ateísmo subjectivo e ideológico de não adorar nada como sagrado, nem mesmo que exista. Nem Jesus, nem o Sol, nem sequer o Joe Pesci. Mas esses meus ateísmos são independentes, o que me permite debater factos sem arriscar crises de fé e aceitar ideologias diferentes como meras diferenças de gosto. As ideologias religiosas, ao contrário do que o Carlos sugere, não são a mesma coisa. A confusão de factos com juízos subjectivos impede o religioso de discutir a verdade confortavelmente pelo perigo constante de ver refutada alguma tese a que dá valor, obriga-o a imiscuir-se na vida privada de terceiros condenando como “pecado” atitudes diferentes da sua, mesmo que inócuas, e leva-o a considerar ataque ou ofensa qualquer tentativa de mostrar que os dogmas que defende são infundados. Estas ideologias, muito diferentes do ateísmo, são socialmente prejudiciais e potencialmente perigosas.

No fundo, a grande luta daquilo a que muitos, por ignorância histórica, chamam “novo ateísmo”, é a luta por esta separação. Não é uma luta para acabar com a crença religiosa ou com a adoração de divindades. É a luta pela transformação dos religiosos em pessoas capazes de distinguir entre a realidade, objectiva, que todos partilhamos e os valores, subjectivos, com que cada um orienta a sua vida privada. Basta isso para que cada um possa aproveitar para si o que achar que a religião tem de bom sem prejudicar os outros com dogmas e disparates.

1- Treta da semana (passada): Agora tudo é religião...

domingo, abril 13, 2014

Treta da semana (passada): Agora tudo é religião...

O Mats costuma traduzir artigos criacionistas no seu blog. No passado dia 30 foi um de um tal Randy Hedtke defendendo que «A teoria da evolução é uma religião»(1). Ironicamente, um lapso na tradução desmanchou logo a tese e revelou o engodo. A tradução do Mats é: «A questão em torno da origem da vida é, fundamentalmente e inevitavelmente, uma questão religiosa. A forma como a pessoa ou um grupo de pessoas responde à questão da forma como surgiu a vida invariavelmente se torna a base da sua filosofia religiosa.» A ênfase é minha. No original, esse “A forma como” é um “However”, o que não refere a forma como se responde mas sim a resposta que se dá. O Mats devia ter escrito algo como “Qualquer que seja a resposta que a pessoa ou um grupo de pessoas dê à questão...”.

É uma diferença subtil mas importante porque a tese assenta toda na ideia de que qualquer que seja a resposta à origem da vida e da nossa espécie, será sempre uma resposta religiosa porque o assunto é religioso. «[O] debate em torno da origem da vida centra-se na crença da procedência animal (ou evolução ateísta) e na criação particular. […] Para aqueles que acreditam que o ser humano procede dum animal não parece que haja um limite para o animal particular que é usado como ancestral. Os Wanika, na África Oriental, acreditam que eles vieram das hienas. Outra tribo africana nomeia os hipopótamos como ancestral dos seres humanos. Os nativos do Madagáscar alegam que o primeiro a sua linhagem foi um lémure [...] A crença evolucionista recua ainda mais no tempo, para além do lémure, e postula que os seres humanos procedem da sua ideia do ancestral final, a matéria orgânica do mar primordial.» É um truque muito usado. Se uma religião se pronuncia acerca da origem do universo, então a origem do universo passa a ser um assunto filosófico ou teológico e a ciência tem de se calar. Se a religião se pronuncia acerca da existência de um ser sobrenatural, seja deus, espírito ou alma, a mesma coisa. Neste caso é a origem da vida e da espécie humana que se torna assunto religioso: «However an individual or group answers the question as to how life arose, their answer becomes the basic tenet for their religious make-up.»

Uma peça fulcral deste engodo é focar o conteúdo disfarçando a diferença fundamental do método. O que distingue a ciência e a religião não são as perguntas nem as respostas em si. É, como escreveu inadvertidamente o Mats, «A forma como a pessoa ou um grupo de pessoas responde à questão» (ênfase minha). A diferença fundamental entre a biologia moderna e a mitologia dos Wanika ou dos criacionistas é a forma como se chega às respostas. Até podia haver uma religião que acertasse na crença de que os humanos descendem de um antepassado dos chimpanzés. Mas, se acertasse, seria por acaso. Porque aquilo que as religiões têm em comum é o seu dogmatismo autoritário. Alguém diz que é assim, o rebanho diz ámen e está o caso arrumado. Sem isso não se consegue criar uma religião. É impossível ter sacerdotes, pastores, bispos, xamãs, imãs e essas coisas sem a autoridade pouco fiável mas conveniente de um sim porque sim e pronto.

Na ciência é o contrário. Alguém diz que é assim, outro contradiz, outro aponta erros, uns fazem experiências, outros explicam que afinal não estava tão errado como parecia e, eventualmente, ao fim de muita discussão, testes, recolha de dados e rejeição de alternativas, lá se gera algum consenso provisório até alguém ter uma ideia melhor. Não dá para fazer religiões com isso. Se um cientista, por muito famoso que seja, quiser cobrar o dízimo, meter-se na vida sexual dos outros ou exigir que acreditem no que diz só pela sua autoridade vai ter pouco sucesso. Mas, em compensação, esta abordagem de formar opiniões com base nas evidências em vez de em função daquilo que sai do chapéu resulta num corpo de conhecimento muito mais detalhado, correcto, útil e em aperfeiçoamento constante. Mais diferente da religião é impossível.

1- Darwinismo, A teoria da evolução é uma religião
2- Randy Hedtke, We Are Teaching a Religion in Our Public Schools.

domingo, abril 06, 2014

Treta da semana (passada): Diz que é pela família...

No blog do Orlando Braga pude apreciar alguns argumentos contra a co-adopção por casais homossexuais apresentados na conferência do passado dia 20 na FDUL (1). Recomendo-os a quem estiver indeciso porque demonstram com clareza o mérito e a justiça da posição contrária à que defendem. Para quem não quiser perder tempo explico em seguida o óbvio.

Seguindo a ordem do Orlando, começo por Paulo Otero (2), professor catedrático de direito constitucional. Alegou ser uma questão importante a de se o legislador deve favorecer a reprodução medicamente assistida ou a adopção. Não vejo o que o legislador tenha que ver com isso. Umas pessoas preferirão uma, outras a outra, e o papel do legislador será apenas respeitar a escolha. Depois acusa a co-adopção de ser uma estratégia política de destruição do modelo da família, juntamente com a lei do divórcio, do casamento homossexual e das uniões de facto. É uma confusão recorrente e, suspeito, deliberada. Estas alterações apenas alargaram o que a lei reconhece como família. Quem tinha um conceito de família já abrangido pela legislação anterior não teve de mudar nada. A única coisa que isto limitou foi o poder de, em alguns casos, impedir terceiros de constituírem família como desejassem.

Otero alegou também que legalizar a co-adopção em casais homossexuais vai contra o disposto na artigo 69º da Constituição, «O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal». Porque, segundo Otero, um casal homossexual não constitui uma família normal. Omitiu, no entanto, as limitações que a Constituição impõe ao legislador. Por exemplo, ir à missa todos os dias não é normal. No entanto, não é permitido ao legislador criar uma lei que discrimine uma família que leve as crianças à missa todos os dias porque, por muito anormal que isso seja, a Constituição proíbe a discriminação com base na religião. Como também proíbe a discriminação pelo sexo e pela orientação sexual, se o legislador julgar que ser homossexual é tão anormal como ir à missa todos os dias compete-lhe apenas deixar essa opinião pessoal fora do processo legislativo.

Ironicamente, o próprio Paulo Otero invocou este princípio quando tentou convencer a audiência de que discriminatório seria alterar a lei. Para demonstrar o absurdo até fez um esquema desnecessário no quadro. Uma senhora divorcia-se, leva o filho e casa com um homem. O ex-marido, entretanto, casa também com outro homem. Se a senhora morrer, o filho for viver com o pai biológico e a lei for alterada, o cônjuge do pai poderá co-adoptar a criança. Num exemplo extremo de inconsistência, Otero afirmou que seria discriminação a lei tratar igualmente esse cônjuge qualquer que fosse o seu sexo, mas que não é discriminatória a lei que temos agora que restringe a co-adopção conforme o sexo do adoptante.

Em seguida, António Menezes Cordeiro, também professor catedrático de direito, focou o interesse da criança e alegou precisarmos de mais estudos para saber se a adopção por casais do mesmo sexo prejudica a criança, apesar de admitir já haver estudos que indicam o contrário. Mas também não temos estudos que avaliem os efeitos da criança ser adoptada por fanáticos do futebol, pessoas com multas por excesso de velocidade ou que sofram de hipertensão. Até temos estudos que demonstram ser prejudicial à saúde das crianças coabitar com fumadores. No entanto, é consensual que seria absurdo codificar tudo isto na lei e permitir a adopção apenas àqueles casais que sabemos não terem qualquer factor de risco. O mais sensato é o legislador remeter esses detalhes ao juiz que decidirá, caso a caso, se é melhor para a criança ser adoptada ou não. Depois descartou o argumento de que é melhor ter dois pais ou duas mães do que nenhum porque “não podemos justificar um mal com outro mal”. Isto não faz sentido porque a adopção é precisamente um mal que só se justifica para evitar um mal maior. Bom é cada criança viver feliz e amada pelos seus pais biológicos. Tudo o resto é mau. Finalmente, alegou opor-se à alteração da lei por estar preocupado com o ensinamento da sexualidade, questionando se a criança que cresça com um casal homossexual será ensinada a ser homo ou hetero. Este argumento deixa-me perplexo por ficar na dúvida se me estão a tentar enganar com a ideia de que estas coisas se aprendem ou se é uma preocupação sincera de alguém para quem a orientação sexual não foi imediatamente óbvia no início da adolescência.

Finalmente, um dos meus favoritos. Gonçalo Portocarrero de Almada, padre e, como os demais celibatários, perito em sexo e família. Invoca, como é costume, a Lei Natural. Só homem e mulher podem gerar um filho. Só pai e mãe formam uma família natural. A criança tem o direito à família natural. E tem razão. Tudo isto é verdade. É preciso os dois sexos para conceber, a família natural tem os dois sexos e a criança tem direito ao amor e cuidados dos seus progenitores. Mas o que viola o estado natural não é a co-adopção por casais homossexuais. É a adopção em si. Isso é que é do mais contrário à natureza que existe. Numa perspectiva natural, biológica e evolutiva, o pior que um organismo pode fazer é cuidar de crias que não lhe são geneticamente próximas. Não só falha na tarefa de deixar descendentes como favorece os da concorrência. Felizmente, nós não estamos presos ao que é “natural”. Temos óculos, pasta de dentes, antibióticos e o bom senso de adoptar crianças que fiquem sem pais. Resta agora percebermos que podemos ser melhores do que a natureza em vez de a aproveitarmos como desculpa para sermos mesquinhos.

1- Facebook, "Que Futuro Para a Familia? A Possibilidade de Co-Adopção Pelo Cônjuge ou Unido de Facto do Mesmo Sexo"
2- Perspectivas, O Professor Doutor Paulo Otero sobre a co-adopção de crianças por pares de invertidos
3- Perspectivas, Palestra do Professor Doutor Menezes Cordeiro sobre a co-adopção de crianças por pares de invertidos
4- Perspectivas, O Padre Gonçalo Portocarrero de Almada sobre a co-adopção

sábado, abril 05, 2014

Teorias.

Por infeliz acidente histórico, “teoria” é a palavra que designa o nível mais alto do conhecimento humano: a teoria científica. Infeliz porque, durante um longo percurso, o termo acumulou muitos sentidos diferentes e, agora, quem quiser propor um qualquer conjunto de crenças como alternativa à ciência pode sempre apontar que a ciência “é só teorias”. Como se a ciência fosse equivalente, ou até inferior, aos disparates sem fundamento de coisas como o criacionismo, a teologia, as modas da new age e afins. Para desabafar sobre o erro destas alegações vou distinguir três tipos de produto da ciência e procurar o seu paralelo nas supostas alternativas.

Primeiro, a hipótese. A hipótese é uma proposição, uma expressão que pode ser verdadeira ou falsa. Pode ser “No princípio criou Deus os céus e a terra” ou “a massa do electrão é 1836 vezes menor do que a do protão”. Não interessa o tema. Há hipóteses em todos os sistemas de crenças, sejam ciência ou não, porque a crença, no fundo, é simplesmente a atitude de aceitar uma hipótese como verdadeira. Mas logo aqui há uma grande diferença entre a ciência, onde incluo a parte mais rigorosa da filosofia, e coisas como teologias, superstições e ideologias várias, onde incluo as partes mais vagas da filosofia, aquelas que facilmente se confundem com literatura, poesia ou má ficção. A diferença está na forma de encarar as hipóteses.

Do lado da ciência, as hipóteses são um ponto de partida. São matéria prima para desbastar, escavar e polir até encontrar algum cristal de verdade que resista à abrasão pelos factos. Do outro lado até evitam chamar-lhes hipóteses. São hipóteses à mesma, porque podem ser verdadeiras ou falsas. Normalmente até são falsas. Mas, para disfarçar, chamam-lhes dogmas, doutrina, revelação, intuição e essas coisas. Desse lado da cerca as hipóteses não são um ponto de partida e muito menos algo que possa rejeitar ou corrigir. São a Verdade. Algo perante o qual o crente se ajoelha em veneração e para além do qual se recusa ir. Esta é uma grande diferença entre a ciência e o resto: o ponto final do percurso dessas alternativas corresponde ao ponto de partida no caminho que a ciência faz até ao conhecimento.

Outro tipo de produto da ciência é o modelo. Por exemplo, a tabela periódica, as equações das orbitais atómicas do hidrogénio ou a maqueta do ADN que Crick e Watson fizeram com arame e cartão. Um modelo não é uma afirmação nem uma hipótese. Por si só, uma tabela, equação ou maqueta não é verdadeira nem falsa nem é objecto de crença. A particularidade do modelo é representar parte da realidade com suficiente detalhe e objectividade para que dele se possa inferir um conjunto coerente de hipóteses concretas. Sendo uma descrição detalhada e objectiva, o processo pelo qual se infere hipóteses a partir do modelo não depende da crença ou fé de cada um. Há uma maneira bem definida de ler e interpretar a tabela periódica que não depende de acreditarmos naquilo que lá está escrito. É muito difícil encontrar modelos fora da ciência. A astrologia recorre a modelos, mas são os da astronomia. O criacionismo faz de conta que tem um modelo de como surgiu a vida na Terra, mas acaba por não ter qualquer descrição coerente com o mínimo detalhe. Tem apenas um conjunto solto de hipóteses acerca de Deus ter feito este milagre aqui e aquele ali. Em geral, é isto que se passa com as religiões e restantes superstições. Interpretam textos sagrados, discorrem sobre intuições e alegadas revelações e invocam a fé mas nunca produzem uma representação detalhada que enquadre sem ambiguidade as hipóteses em que acreditam. Não há nada na teologia ou em qualquer esoterismo com o detalhe e a objectividade de uma fórmula química, um mapa ou uma equação.

Finalmente, a ciência produz teorias. Ao contrário da forma como muitos usam o termo, uma teoria não é um bitaite. É algo muito mais profundo e até difícil de apreciar sem ganhar primeiro alguma familiaridade com este tipo de coisas. Uma teoria é um esquema gerador de modelos. É uma estrutura rigorosa de conceitos e relações que especifica que modelos são possíveis, e é de tal forma restritiva que, normalmente, basta saber alguns parâmetros para reduzir as possibilidades a apenas um modelo. Por exemplo, a teoria da relatividade permite-nos saber onde um asteróide vai passar décadas mais tarde apenas observando a sua velocidade e posição (1). As teorias científicas são também muito abrangentes. Com a teoria da relatividade podemos modelar o movimento de planetas e estrelas, a trajectória de electrões num tubo de raios catódicos e até medir a perda de água no solo da Índia pelo efeito na órbita de satélites (2).

É um erro propor teologias ou misticismos como vias de conhecimento paralelas à ciência porque são meros vestígios de abordagens rudimentares. Admito que a crença nessas hipóteses possa ter valor subjectivo para algumas pessoas mas, por muito valor que tenham enquanto crença, como conhecimento não valem nada. Sem suporte na realidade, nunca passaram daquela fase especulativa inicial. Para organizar hipóteses em modelos detalhados é preciso testar e escolher com cuidado as que melhor correspondem à realidade. Senão, sempre que se entra em detalhes os erros tornam-se evidentes. O resultado é que, fora da ciência, as afirmações acerca da realidade ou são vagas demais para dizerem o que quer que seja ou são claramente disparatadas. E para encaixar os modelos em teorias que unifiquem aspectos da realidade tão diferentes como, por exemplo, galáxias e electrões ou baleias e vírus, é preciso uma compreensão profunda que só surge depois de séculos a corrigir erros e a rejeitar ideias falsas. Só então é que o que sobra começa a encaixar. Este percurso foi exclusivo da ciência. Não há nada fora da ciência com um palmarés tão grande de erros corrigidos. Não há nada fora da ciência que tenha ido tão longe. Por isso, não há nada fora da ciência que chegue a ter teorias. Se bem que o melhor que a ciência pode oferecer é, realmente, “só teorias”, as alternativas ficam todas muito atrás, sem passarem sequer das hipóteses.

1- Wikipedia, 99942 Apophis
2- NASA, NASA Satellites Unlock Secret to Northern India's Vanishing Water

domingo, março 30, 2014

Treta da semana (passada): toma lá iogurtes.

Há umas semanas a Danone foi criticada por remunerar estagiários com iogurtes (1). Na RTP, a directora da escola explicou que é assim que as coisas são; as empresas dão o que querem (2). Em princípio, não há nada de fundamentalmente errado nisso. Se uma pessoa quer trabalhar a iogurtes tem o direito de o fazer. É como oferecer uma moeda a um transeunte para que ajude a estacionar o carro. Mas estas transacções começam a ser problema quando deixam de ser voluntárias. Se o condutor não precisa de ajuda para estacionar mas o transeunte ainda assim gesticula, grita “Destroce, destroce!” e cobra a moeda porque o condutor receia ficar com o carro riscado então já não é comércio livre. É extorsão.

É este o problema dos iogurtes. Um estágio curricular pode criar uma relação justa entre o aluno e a empresa se o contrato for realmente voluntário, porque isto obriga a repartir custos e benefícios de forma equitativa. Este princípio de participação voluntária é o que garante que as transacções num mercado livre são justas apesar dos valores envolvidos serem subjectivos e variarem de interveniente para interveniente. Mas se os estudantes não têm perspectivas de emprego e são forçados a aceitar qualquer oportunidade, as empresas podem explorar essa vulnerabilidade e tornar a relação injusta. Uma empresa que oferece iogurtes pelo trabalho do estagiário não é uma empresa disposta a contratá-lo no final do estágio. O mais certo é optar por ir trocando de estagiários e pagando sempre em iogurtes o que, de outra forma, teria de pagar com um salário decente. É como os arrumas mas com a injustiça adicional de, neste caso, serem os mais privilegiados a coagir quem tem menos.

Mais preocupante do que os estagiários e os iogurtes é a ideia de que é assim que as coisas devem ser. Numa conversa arrepiante entre a Isabel Stilwell e o Eduardo Sá, este último defende que o problema é estes alunos não terem humildade, que deviam até estar gratos pela oportunidade de trabalhar de graça e nem sequer têm noção do que é uma relação de trabalho (3). Aparentemente, a noção correcta da relação de trabalho é a da empresa pagar 24 iogurtes por semana. Esse episódio do programa “Dias do Avesso” até tem o título de “Pobre e mal agradecido”. Por alguma razão estranha, parece que quem é pobre tem mais obrigação de estar grato do que quem tiver a sorte de ser rico.

Estes disparates são um perigo porque a única justificação para o capitalismo, o empreendedorismo e toda a ideologia de direita é a justiça inerente a um mercado em que cada agente participe de forma livre, sem constrangimentos ou coação. Nessas circunstâncias pode haver ricos e remediados sem haver injustiça. Uns organizam cadeias de supermercados, outros herdam nome e dinheiro dos pais, outros escrevem poesia ou plantam flores, mas se todos são livres de dizer não a coisa vai funcionando. A proliferação destes “estágios” pagos a iogurtes é um sinal de que as interacções deixaram de ser voluntárias, que a coacção está a substituir a liberdade de escolha e que se criou um desequilíbrio que, sem controlo, só se irá agravar conforme quem mais pode explora quem pode menos. Os disparates destes comentadores contribuem para que a sociedade ignore os sintomas até ser tarde demais.

Perante estes indícios o mais prudente seria restabelecer o equilíbrio no poder de negociação. Melhorar a segurança social e criar emprego, nem que fosse por investimento público, para que só trabalhasse a iogurtes quem verdadeiramente quisesse e ninguém fosse forçado a fazê-lo por lhe faltar sequer a possibilidade de dizer não. Infelizmente, isso exigiria um esforço adicional da parte de quem tem mais e, especialmente repugnante, a admissão de que estamos todos juntos no mesmo barco. Assim, predomina esta atitude irresponsável e egoísta de assumir que só é pobre quem quer e exigir do desesperado que seja grato e humilde, que trabalhe para pagar as dívidas “do país” e que se torne mais competitivo nem que seja trabalhando a iogurtes.

É um problema tramado. A história dá-nos inúmeros exemplos do perigo de deixar estas tensões e injustiças acumularem-se demais mas, infelizmente, é fácil ir repetindo os erros do passado. É fácil iludir-se com a aparente solidez do status quo e esquecer que a diferença entre ricos e pobres é mera convenção; basta um número suficiente de pessoas com catanas e bastões para a luta de classes se tornar num massacre. É fácil que quem está melhor do que o seu vizinho julgue que a diferença se deve ao seu mérito em vez de admitir que é pura sorte. É fácil desprezar as reivindicações dos menos favorecidos como abuso ou birra. O resultado é termos pessoas como estes comentadores de rádio, com vidas confortáveis e idade para ter juízo, a dizer que o problema é falta de humildade e os jovens não quererem “esfolar os joelhos”. Não estranham que uma empresa multinacional pague com iogurtes a elaboração de procedimentos de segurança e manutenção de equipamento exigindo conhecimentos de Inglês e um curso superior quase terminado. Não compreendem o que isto implica para os salários dos restantes trabalhadores, a grande maioria dos quais tem muito menos qualificações do que os estagiários que são pagos a iogurtes. E nem sequer imaginam o que pode acontecer se essa gente toda se fartar de ser humilde, de esfolar os joelhos e de ouvir impávida os insultos dos senhores Sá e das senhoras Stilwell.

1- 5dias, Danone oferece emprego… ou quase… oferece iogurtes em troca de trabalho especializado
2- RTP Notícias, Danone oferece estágios não remunerados e iogurtes
3- Dias do Avesso, Pobre e mal agradecido

quinta-feira, março 20, 2014

Treta da semana (passada): “Abra os olhos”

A CARRIS e a Metropolitano de Lisboa lançaram uma campanha com o slogan “Abra os olhos e combata a fraude”. Algumas pessoas criticaram esta campanha julgando que era um apelo a que todos os passageiros se tornassem revisores não remunerados. Realmente, mesmo que me bastasse “abrir os olhos” para ver se alguém viaja sem bilhete válido, não é claro o que tipo de combate querem que eu faça. Mas, olhando com mais atenção para a campanha, parece-me que a crítica assenta num mal entendido.

Segundo a página da campanha, «A primeira fase de campanha iniciou-se a 25 de fevereiro com o lançamento de um teaser composto, apenas, pela imagem da campanha, sem qualquer claim associado, procurando gerar algum buzz e curiosidade para o tema, tendo a imagem sido aplicada em suportes próprios de comunicação de ambas as empresas. A segunda fase de campanha tem início com a concretização da imagem, associada ao claim e a um texto explicativo da campanha.»(1) Talvez por quererem criar um buzz com um teaser sem claim associado, muita gente percebeu mal a intenção. Vejamos então como o “texto explicativo” nos esclarece: «A falta de validações pode sair-lhe caro: menos carreiras; menos comboios; maior tempo de espera; degradação do serviço»(2) Obviamente, a fraude e a “falta de validações” não se refere a haver quem ande sem bilhete porque esse problema fica muito aquém do que seria necessário para haver menos carreiras, menos comboios ou uma degradação no serviço. A fraude para a qual nos querem abrir os olhos é certamente mais grave.

O Relatório e Contas de 2012 do Metropolitano de Lisboa dá umas pistas importantes. Por exemplo, na página 16, consta que «A oferta em 2012 diminuiu 19,4%, em termos de número de carruagens x km, permitindo o ajustamento à procura e o aumento da eficiência operacional». A diminuição deveu-se à circulação de comboios só com três carruagens em vez de seis em algumas linhas e horários, e a terem ocorrido «oito greves ao longo do ano» (3). Porquê oito greves? Uma razão pode ser outra fonte de “eficiência operacional”. A figura abaixo mostra a evolução do perfil dos contratos dos trabalhadores do Metro e o número de efectivos comparado com o total de quilómetros de linha. O que se pode ver é que não só o número de efectivos tem sido reduzido ao mesmo tempo que aumenta o tamanho da rede, como a empresa tem reduzido principalmente os trabalhadores com contratos estáveis, substituindo-os por contratos precários. Com menos pessoas a trabalhar mais e mais precariedade não admira que haja problemas com os trabalhadores. Nem a redução da oferta compensa isto, se se deve à circulação de comboios com menos carruagens.



Isto explica a degradação do serviço, a falta de comboios e os maiores tempos de espera mas ainda não cobre explicitamente o “claim” que esta fraude «pode sair-lhe caro». Se cortam nos comboios, nos empregados e no serviço, até nos devia sair mais barato. Mas é verdade que sai caro. E na página 42 temos uma indício do porquê: «No seu conjunto, as responsabilidades com IGRF aumentaram 378 milhões de euros, representando 20% do passivo total.» Estes IGRF são “instrumentos de gestão de risco financeiro”, também conhecidos como “swaps”. São contratos complexos entre estas empresas e os bancos que fazem juros e pagamentos variarem em função de certos factores. Graças a estes contratos, feitos sabe-se lá por quem, porquê e em que condições – mas certamente em gabinetes sóbrios como gosta o José Gomes Ferreira (4) – esta empresa que teve 148 milhões de receitas e 150 milhões de gastos operacionais acabou num buraco 378 milhões mais fundo do que já estava, e isto depois do Estado emprestar, a juros mais baixos, «648,6 milhões de euros [para] satisfazer os compromissos decorrentes do serviço da dívida».

É isto que nos sai caro. Os bancos privados emprestam dinheiro a entidades públicas cobrando juros elevados, alegadamente, pelo risco de incumprimento. No entanto, o governo nunca admite sequer a reestruturação dessas dívidas e paga tudo. É só lucro para os bancos. Pior ainda, esses empréstimos são negócios obscuros feitos sempre de forma a que os bancos acabem por receber – e nós acabemos por pagar – muito mais do que inicialmente seria de prever.

Queria por isso aplaudir esta campanha da CARRIS e do Metropolitano de Lisboa. Motivou-me a abrir os olhos e procurar perceber porque é que estes serviços nos saem tão caros, porque é que há menos comboios e porque é que o serviço se degrada. Infelizmente, continuo ainda sem saber como combater isto. Talvez se deixar de pagar bilhete e passar a viajar à borla sempre vá um pouco menos do meu dinheiro para os IGRF e negociatas afins...

1- Metropolitano de Lisboa, CARRIS e Metropolitano de Lisboa lançam campanha de combate à fraude nos transportes públicos
2- Dinheiro Vivo, Carris/Metro lança campanha para combater fraude nos transportes públicos
3- Metropolitano de Lisboa, Relatório e Contas
4- Post anterior: O manifesto

domingo, março 16, 2014

O manifesto.

Num raro exemplo de consenso alargado, 74 personalidades de vários quadrantes políticos defenderam que Portugal deve negociar uma reestruturação da dívida (1). Não é um plano detalhado, mas quando um grupo destes defende alguma coisa vale a pena dar ouvidos. É raro a Manuela Ferreira Leite concordar com o Francisco Louçã e ex-ministros socialistas defenderem o mesmo que conselheiros (agora também ex) de Cavaco Silva. Aponta o manifesto que o Estado português não consegue pagar todas as dívidas a tempo, que esta crise não é só nacional e que é preciso negociar a nível europeu como e quando a dívida será paga. Concordo e subscrevo. O resto do post é sobre alguns dos argumentos contrários que me deram vontade de responder.

O José Gomes Ferreira escandaliza-se por dizerem que é preciso reestruturar a dívida. Não por não ser preciso nem por não se reestruturar, porque até menciona que «Portugal já fez e continua a fazer uma reestruturação discreta da nossa dívida pública». Escandaliza-se por o dizerem: «uma reestruturação de dívida pública não se pede, nunca se anuncia publicamente. Se é preciso fazer-se, faz-se. Discretamente, nos sóbrios gabinetes da alta finança internacional.» Ou seja, numa redefinição inovadora da democracia representativa, defende que a decisão mais importante para a economia e bem estar dos portugueses durante as próximas décadas deve ser tomada às escondidas. Como se não tivéssemos já problemas que chegue com negociatas discretas em gabinetes sóbrios.

Um problema fundamental com o “argumento” – num sentido lato – do José Gomes Ferreira é assumir que os mercados não sabem o que se passa e que, para conquistar a sua confiança, não podemos dizer verdades óbvias. Assume também que a descida das taxas de juro da dívida pública se deve à fabulosa gestão do nosso país. Parece-me mais realista assumir que quem gere estes investimentos não é completamente ignorante e que a descida das taxas de juros de todos os países com problemas – incluindo a Grécia, que desceu de 10.95% para 7.7% no último ano (2) – se deve a um conjunto mais complexo de factores do que o alegado efeito do “gabinete sóbrio”. Por exemplo, o BCE aceita títulos de dívida pública como garantia para empréstimos mesmo que tenham ratings desfavoráveis (3). Como o BCE empresta dinheiro aos bancos privados com juros abaixo da inflação, até títulos que sejam lixo servem para os bancos fazerem dinheiro. Literalmente. Como salienta o manifesto, esta crise é um problema internacional e não é mera função do que fazemos ou dizemos por aqui.

O Pedro Romano é menos famoso do que o José Gomes Ferreira mas tem a virtude de escrever coisas mais relevantes do que um chorrilho de ataques pessoais e perguntas retóricas. Uma crítica que faz ao manifesto é ser «vago em relação ao que efectivamente propõe.»(4) É verdade. O manifesto diz que é preciso reestruturar mas não diz como é que se vai conseguir essa reestruturação nem como será negociada. No entanto, a via alternativa também é parca em detalhes. Dizer que é preciso um saldo primário de 2% ou 3% e um crescimento de 1.8% também não diz como é que vão conseguir as duas coisas ao mesmo tempo. Outro ponto que o Pedro refere é que «o país, como um todo, não ganha nada em reestruturar cerca de 60% da sua dívida, já que aquilo que ganha enquanto contribuinte acaba por perder como investidor» porque 60% da dívida pública é detida por investidores nacionais. Mas o país não é só um todo. É composto por pessoas para quem a reestruturação da dívida e a austeridade têm efeitos muito diferentes. Em Portugal, 1% dos depositantes detém quase metade do dinheiro dos depósitos bancários (5) e, se considerarmos o dinheiro em fundos de investimento, é provável que a desigualdade seja ainda maior. Alguns são fundos de pensões, que devem ser protegidos, mas muitos detentores da dívida pública são bancos privados a gerir fundos de investimento de pessoas que não correm perigo de passar fome. Ainda que “o país, como um todo” fique na mesma, há uma questão política, e não económica, de decidir se o problema da dívida vai ser resolvido apenas sacrificando os que têm menos ou se os ricos também vão suportar uma parte do sacrifício que, sendo ricos, será sempre uma parte muito modesta.

Finalmente, o Pedro escreve que «a propagação pública da ideia de que a reestruturação é inevitável não tem qualquer real utilidade para Portugal: não melhora a sua posição negocial, não sensibiliza a Europa e nem contribui, sequer, para uma preparação atempada desse processo.» Para algumas pessoas é provável que o melhor será ninguém fazer ondas e não considerar alternativas. Há uns meses, o César das Neves também criticou «quem apela ao perdão da dívida pública portuguesa, esquecendo-se que parte é detida por bancos portugueses que, em consequência, poderão falir ou ter de se capitalizar, em ambos os casos com consequências sobre os seus depositantes e valores acima dos 100 mil euros garantidos.»(5) Quem anda a negociar coisas pelos tais gabinetes sóbrios certamente se preocupa com isto. Mas para a maioria dos portugueses, aquela maioria que os políticos eleitos deviam representar, o perigo de cortes nos depósitos acima dos 100 mil euros não é uma preocupação significativa.

O perigo deste manifesto, e a razão do forte repúdio, é revelar que o fundamental não é o problema económico de como pagar a dívida mas sim a decisão política de quanto e quando devemos pagar. Para bem de todos e não apenas dos que têm mais de cem mil euros no banco.

Editado às 18:06 para corrigir o apelido do José Gomes Ferreira (estava Pereira, nem sei explicar porquê). Obrigado pela correcção.

1- O texto integral está aqui no Público. Via Ladrões de Bicicletas
2- BCE, Long-term interest rate statistics for EU Member States
3- Por exemplo, para Portugal, desde 2011: BCE, 7 July 2011 - ECB announces change in eligibility of debt instruments issued or guaranteed by the Portuguese government
4- Desvio Colossal, Três notas sobre o manifesto da reestruturação da dívida pública
5- Jornal de Negócios (09-2013), João César das Neves: “Se a dívida fosse repudiada a perda cairia em sua casa”

domingo, março 09, 2014

Treta da semana: o direito do cobrador.

Num texto no Público, o José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), queixa-se de que «Todos os dias, os motores de busca, com o Google em natural destaque, utilizam conteúdos protegidos, sejam eles autorais, informativos ou outros, sem nada pagarem em troca»(1). Esta frase merece uma análise cuidada para percebermos o problema. Primeiro, “sem pagarem nada em troca” tem um sentido mais estreito do que parece. Não considera os custos operacionais da empresa, de cerca de quatro mil milhões de dólares por mês, ou as centenas de milhões de dólares investidos todos os meses em investigação e desenvolvimento (2), nem considera os benefícios que este investimento traz para quem tem o seu conteúdo indexado no Google. Refere-se estritamente ao facto do motor de pesquisa oferecer a quem quem quer aceder a uma página toda a infraestrutura e serviços necessários para que a encontre sem pagar nada a quem publicou a página com o intuito de que os interessados a encontrassem.

O termo “utilizam conteúdos” também tem um significado peculiar. Quando procuro um número de telefone na lista telefónica faz mais sentido dizer que eu utilizo a lista para encontrar o número do que dizer que a lista utiliza os números de telefone. A lista, afinal, não telefona a ninguém. Quando procuro uma rua no mapa também sou eu quem utiliza o mapa para encontrar a rua onde quero ir e não o mapa quem utiliza as ruas. Mas no caso do Google, segundo parece defender o José, quando eu procuro “José Jorge Letria” não sou eu quem usa o motor de pesquisa para encontrar informação. Aparentemente, é o motor de pesquisa que está a usar o José. Exactamente como, não é claro. Deve ser uma coisa Zen.

O termo “conteúdos protegidos” tem um significado ainda mais estranho. Para proteger qualquer página da indexação por motores de pesquisa como o Google basta incluir no código fonte uma tag meta com os atributos name="robots" e content="noindex" (3). É trivial proteger as páginas neste sentido de impedir que sejam indexadas pelo Google. Se quem publica estes «conteúdos protegidos, sejam eles autorais, informativos ou outros» não os protege da indexação é porque não os quer proteger. O que se compreende perfeitamente porque, se os publicam, é porque querem que as pessoas os encontrem. Neste caso nem se consegue interpretar “conteúdo protegido” naquele sentido, já de si abusivo, com que o usam para designar o monopólio legal sobe a distribuição e acesso ao conteúdo.

Para o José, o problema é que motores de pesquisa como o Google fornecem um serviço gratuito que facilita o contacto entre quem quer aceder a um conteúdo e quem quer dar acesso a esse conteúdo, permitindo também a qualquer uma das partes excluir-se se quiser. Isto, para o José, só pode ser caracterizado de uma forma. «A palavra é dura, mas não há outra para definir este processo: pirataria.» Como o José explica, «a Comissão Europeia está a perder uma grande oportunidade de mostrar que defende os direitos de autor [...] em vez de defender quem deve ser defendido, “se limita a regular a solução predatória de escolhermos entre um opt-out, ou seja, não autorizarmos, ou ficar tudo como está”. Uma perspectiva nada animadora, diga-se.»

Para quem julga que os direitos de autor têm alguma coisa que ver com direitos ou autores isto pode parecer estranho. Afinal, se o fundamental fosse dar ao autor o poder de determinar quem tem acesso, e por que meios, à obra que ele criou, o sistema que temos agora seria perfeitamente adequado. No entanto, também a expressão “direitos de autor” tem um significado técnico muito peculiar. Designa especificamente o direito de cobrar. O fundamental para uma editora ou uma sociedade como a SPA não é o direito do autor publicar a sua obra, divulgá-la ou encontrar audiências, e muito menos o direito de quem é autor, ou de quem quer vir a ser autor, ter acesso às obras e à informação de que precisa para alimentar a sua criatividade. Não importa nada à SPA se cada autor tem ou não tem a possibilidade de retirar as suas páginas dos motores de pesquisa. O que importa à SPA é que a Google pague. Que pague à Springer, à Impresa, à Reuters e aos demais, e que pague o mais possível por intermédio da SPA. Quanto ao termo “pirataria”, ironicamente, designa qualquer alternativa que não inclua estes mecanismos de extorsão.

1- Público, Google: quem o favorece e porquê?. Obrigado pela referência no Google+.
2- Financial Statements, Google Inc
3- Using meta tags to block access to your site

Treta da semana (passada): a crença básica de Plantinga.

Há poucas semanas critiquei uns argumentos absurdos que o filósofo Alvin Plantinga apresentou contra o ateísmo. Várias pessoas responderam a essas críticas mas, curiosamente, sem mencionar nada que resolvesse os problemas na argumentação do Plantinga. Simplesmente alegaram que eu não sabia nada da epistemologia que Plantinga defendia o que, além de falso é irrelevante para criticar o que ele disse na entrevista (1). Mas um post sobre uma ideia central naquilo que o Plantinga defende pode ajudar a perceber porque é que tenho tão pouca admiração por este filósofo.

Plantinga argumenta que é racional acreditar em Deus mesmo sem ter evidências propondo que “uma crença C é justificada para o sujeito S se e só se C for gerada por faculdades adequadamente funcionais num ambiente apropriado e de acordo com um plano bem sucedido para a produção de verdade” (2). Simplificando e ignorando algumas complicações filosóficas, uma crença é justificada se surge por um processo fiável nas condições certas. Assim, se Deus existir e tiver criado nos humanos uma predisposição para ter fé na sua existência e essa predisposição for fiável então a crença na existência de Deus será justificada pela fé. Mesmo que isto fosse uma epistemologia satisfatória não suportaria a conclusão de que é racional acreditar em Deus pela fé porque essa crença só seria justificada se Deus existisse. Na melhor das hipóteses será um argumento a favor do agnosticismo. Mas o problema desta tese de Plantinga é mais fundamental. Para que uma crença seja justificada não basta que surja por um processo fiável. É preciso também que quem adopte essa crença saiba que ela surgiu por um processo fiável.

Este problema é evidente num artigo mais antigo do Plantinga, onde ele propõe esta sua epistemologia como uma modificação do fundacionismo (3). Resumidamente, o fundacionismo defende que qualquer crença ou é justificada com recurso a outras crenças justificadas ou é uma crença básica, auto-justificada por ser auto-evidente e impossível de alterar. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal será uma crença básica porque é auto-evidente e não posso sequer considerar alternativas. Se sinto não posso crer que não sinto.

Plantinga tenta relaxar esta exigência e defende que para uma crença ser básica – i.e. não depender de outras crenças para se justificar – basta que surja nas condições certas. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, nas condições certas, não só é auto-justificada a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal* mas também a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal. Se a minha visão funciona bem, defende Plantinga, então justifica-se crer que o que eu sinto corresponde à realidade. No entanto, a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal não pode ser básica porque só se justifica se eu acreditar também que a minha visão está a funcionar bem. Em pequeno, num estado febril e meio a dormir, tive uma visão vívida de um belo copo de cristal a flutuar à minha frente, reflectindo a luz em imensas cores. A crença de que eu tive essa visão pode ser básica mas não considerei justificável crer que se tratava de um copo de verdade porque, naquele momento, não acreditei que o meu sistema nervoso estivesse funcional. Plantinga quer varrer este problema para debaixo do tapete exigindo unicamente que o processo esteja a funcionar correctamente nas condições certas mas isso não basta porque o sujeito tem de o saber também. Suponhamos que eu vi aquele copo porque Deus fez um milagre e criou um copo mágico a flutuar à minha frente quando eu estava cheio de febre. Nessas condições eu estava a ver um copo real por meio do meu sistema nervoso, que Deus tinha concebido para identificar copos de cristal de forma fiável, em condições tais que tudo estaria a funcionar bem. Mas, mesmo assim, não seria justificado eu acreditar que o copo era verdadeiro se não sabia do milagre e julgava que estava a alucinar com a febre.

Resumindo, Plantinga tenta fazer aqui um atalho na epistemologia defendendo que alguém pode ter uma crença justificada apenas pelo processo como a crença surgiu sem precisar de justificar porque acredita que o processo é fiável. Isto não faz sentido. Se eu sinto que estou a ver uma árvore, em condições normais, tenho justificação para crer que é mesmo uma árvore mas porque tenho justificação para crer que a minha visão é fiável nessas condições. Por exemplo, pela consistência com que tenho conseguido identificar árvores no passado. Mas se vejo um fantasma, ou se sinto Deus, não posso justificar crer que estou a sentir algo real sem justificar primeiro a premissa de que o meu sistema nervoso é adequado para identificar correctamente estas entidades. E mesmo que se dê esta borla, Plantinga fica apenas com um argumento circular: se Deus existir, diz ele, justifica-se crer pela fé; mas se não existir então não se justifica. Isto só reforça a conclusão de que é irracional acreditar em Deus pela fé enquanto não houver confirmação independente da sua existência e da adequação da fé para apurar este tipo de factos.

*Ressalva: isto segundo o fundacionismo. Eu não concordo com a abordagem de tentar encontrar crenças básicas que não carecem de justificação porque até a sensação de ver o copo surge de correlações estatísticas num grande número de experiências que, ao longo da vida, foram moldando o sistema nervoso capaz de produzir essa sensação. Ou seja, a justificação, em última análise, não está em elementos atómicos mas na relação de grandes conjuntos de factores. Mas, como diria a grande filósofa Teresa Guilherme, isso agora não interessa nada.

1- Treta da semana (passada): os argumentos.
2- Plantinga, Tooley, 2008, Knowledge of God.
3- Plantinga, 1981, Is Belief in God Properly Basic?; Nous 15: 41-52.

sábado, março 08, 2014

Cepticismo.

A Comunidade Céptica Portuguesa (COMCEPT) tem divulgado o cepticismo não só na Internet mas também na comunicação social tradicional, onde faz muita falta (1). Dou-lhes os parabéns pela organização porque sei, por experiência, que organizar cépticos não é para qualquer um. No entanto – entre cépticos há sempre um “no entanto” – queria sugerir uma abordagem diferente à explicação do cepticismo. No site da COMCEPT está que «A atitude do céptico é a de questionar o mundo que o rodeia, procurando provas científicas e racionais antes de aceitar alegações extraordinárias como verdade e, esforçar-se por encontrar explicações alternativas simples e naturais para fenómenos que à partida, com uma análise superficial, parecem ser de origem sobrenatural. A ciência está na base do movimento céptico e o cepticismo é uma parte fulcral desta, caso contrário não haveria forma de eliminar ideias erradas.»(2)

Se bem que isto não esteja errado, expõe as coisas ao contrário, quer cronologicamente quer logicamente. É verdade que o céptico confia mais em resultados científicos, mas o cepticismo é muito mais antigo do que aquilo que agora chamamos ciência e a atitude céptica precede a investigação científica. Pior ainda, esta descrição pode ser interpretada como apresentando uma escolha arbitrária entre opções equivalentes: o céptico guia-se pela ciência como o vidente se guia pela intuição, o religioso pela fé e o astrólogo pelos astros, todos com igual legitimidade. Proponho uma abordagem alternativa que evita estes problemas focando o mais fundamental.

Eu sou céptico, em primeiro lugar, porque tenho curiosidade em conhecer a realidade. Não presumo que possa vir a saber tudo, ou sequer alguma coisa, nem assumo que tenha de haver uma realidade independente de mim. Talvez isto seja tudo uma ilusão. Mas pode ser que haja uma realidade e pode ser que eu consiga saber alguma coisa acerca dela. Essa possibilidade basta-me para que tenha vontade de tentar.

Em segundo lugar, sou céptico porque percebo que há uma diferença entre querer que algo seja verdade e saber se é mesmo verdade. É a diferença entre uma lista de compras e um inventário. Na lista das compras ponho o que quero e depois logo vejo o que consigo comprar. Mas quando faço o inventário do que tenho na dispensa não interessa se gosto mais de grão ou de feijão ou se queria muito ter ananás em calda. O que importa é saber o que lá tenho, realmente, seja ou não ao meu gosto. Para formar crenças verdadeiras tenho de inventariar a realidade e, para isso, tenho de fazer os possíveis para que o processo de adoptar crenças não seja determinado pelas minhas preferências, inclinações, desejos, medos ou anseios. Isto não quer dizer que não faça listas de compras. Há situações em que aquilo que eu quero é o mais importante. Mas para fazer inventários não é. E mesmo que nunca consiga eliminar por completo a influência daquilo que quero sobre aquilo que julgo saber, é um esforço que vale a pena para minimizar a confusão.

Sou céptico, em terceiro lugar, porque sei que posso errar. Não chega querer saber a verdade e perceber a diferença entre o que é e o que eu gostaria que fosse. É preciso também estar atento aos erros. Fazer o inventário sempre a lápis, por assim dizer, porque pode acontecer que tenha contado mal as latas ou confundido os rótulos. Isto exclui a certeza absoluta. A certeza não é uma coisa má, porque se justifica ter tanta confiança em algumas proposições que já não faça diferença encontrar mais evidências a seu favor. Mas a certeza tem de ser sempre relativa às evidências para que possa ser revista se algo a puser em causa. Por outras palavras, posso estar totalmente empenhado em descobrir a verdade mas não posso estar totalmente empenhado em que a verdade seja aquela que eu julgo ser.

Realmente, disto resulta que acabo por procurar «provas científicas e racionais antes de aceitar alegações extraordinárias» e preferir «explicações alternativas simples e naturais» em vez de invocar milagres, espíritos ou deuses. Mas são consequências meramente circunstanciais da forma como este universo funciona e como nós evoluímos. Num universo diferente podia ser preferível explicar os dados pela vontade dos deuses e substituir o método científico pela meditação, oração ou intuição. Se isso funcionasse melhor seria por aí que o cepticismo nos levaria. Porque o fundamental do cepticismo não é ser científico ou naturalista mas sim procurar conhecer a realidade, o que exige mitigar as influências subjectivas sobre as nossas crenças e maximizar a capacidade de corrigir erros da melhor forma que for possível nas condições em que se estiver. A ciência e o naturalismo apenas surgem do cepticismo neste universo porque, neste universo, são os que melhor servem este propósito.

Falta só um detalhe final. Querer conhecer a realidade, distinguir entre desejos e factos e admitir erros não são características exclusivas dos cépticos. Pelo contrário. Em maior ou menor grau, são características universais. Toda a gente faz isto, nas circunstâncias certas. Todos os crentes duvidam de algumas crenças, todos os místicos reconhecem que há superstições e todos os vendedores de banha da cobra dizem cuidado com as aldrabices (dos outros). O que distingue o céptico dos restantes é apenas o pormenor de não admitir excepções a estes princípios. Quando se trata de averiguar factos, devemos aplicar às nossas crenças os mesmos critérios que aplicamos às dos outros. Cepticismo, no fundo, é isso.

1- COMCEPT, COMCEPT NO “PORTUGAL NO CORAÇÃO”
2- COMCEPT, O QUE É O CEPTICISMO?

domingo, março 02, 2014

Treta da semana (passada): a Selenite e a limpeza.

Um problema que eu subestimava, talvez como muitos leigos nestas coisas, é o da limpeza regular das energias que se acumulam nos cristais terapêuticos. Felizmente, o Guia Kármico Mário Portela escreveu alguns textos elucidativos salientando a importância de uma boa higiene energética e vibracional: «Se realmente utiliza os cristais com fins energéticos e terapêuticos é necessário que se esteja atento à saúde energética dos mesmos. O uso de sintonia diária do cristal exige que este seja descarregado e limpo pelo menos uma vez por mês»(1). Segundo consta, se «quando entramos num local e não nos sentimos bem [isso] acontece porque a energia local não tem a mesma vibração que a nossa»(2). Nessas situações desagradáveis em que a nossa energia não vibra com a energia do ambiente, temos de recuperar o «nosso equilíbrio [...] com a utiliza­ção das formas naturais de energia, inclusive os cristaiso». Admito que, numa primeira leitura, achei isto estranho. Não só pela energia vibrar e pelo desconforto vir de vibrar de forma diferente mas, especialmente, por afinal ser um problema de equilíbrio, que parece não ter nada que ver com coisas a vibrar de forma diferente. Mas o Mário explica: «A Física Quântica, por meio das ligações quânticas, explica as sensações energéticas que sentimos e transmitimos a grandes distâncias. A intuição é a leitura dessas ligações quânticas que atravessam o tempo e o espaço…» Pois claro. Restauramos o nosso bem estar equilibrando por meio das ligações quânticas a vibração das nossas energias com as vibrações das energias do meio que nos rodeia. Dito assim nem parece nada treta.

Mas então e a limpeza? pergunta certamente o leitor, agora preocupado com o estado lastimável a que deixou chegar os seus cristais e com o efeito deletério que a imundície vibracional terá nas suas ligações quânticas. Pois se, como muitos, tem recorrido à técnica do paninho macio e limpa-vidros, tem mesmo com que se preocupar. Não é assim que se limpa cristais. O cristal pode ser limpo segurando-o «sobre o fumo do [incenso] tendo o cuidado de não ter pensamentos antagónicos enquanto o faz», mas têm de ser «incensos de sândalo originais Nag Champa Agarbatti»(2). Em alternativa, para quem não tiver à mão o seu incenso de sândalo original Nag Champa Agarbatti, pode também limpar os cristais com Selenite, que «possui características únicas no mundo energético e terapêutico da cristaloterapia».

A Selenite é um cristal de sulfato de cálcio hidratado e tem este nome porque os gregos acharam que os cristais transparentes faziam lembrar a Lua. Como explica o Mário, «É formada pela evaporação da água salgada em lagos ou mares interiores»(3). Daí que possa parecer estranha a afirmação do Mário de que a Selenite «é ainda presença constante nas pedras trazidas do nosso satélite natural: a Lua.» Num plano físico, vulgo “realidade”, não se encontra Selenite na Lua, como é aliás de esperar dada a pobreza deste satélite em matéria de lagos ou mares interiores. As rochas lunares são ígneas, coisa que os gregos antigos que deram o nome à Selenite não sabiam em virtude de não terem consultado a Wikipedia (4). No entanto, é preciso saber interpretar correctamente as explicações do Mário. Num plano metafísico, vulgo “treta”, a composição da Lua é principalmente Selenite e queijo (5).

Além de ter vários atributos úteis – «Alinha a coluna vertebral […] Estimula a fertilidade […] Acalma o sistema digestivo [… e ...] neutraliza os efeitos nocivos das radiações provenientes de aparelhos eléctricos e cursos de água subterrâneos» – a Selenite também limpa cristais porque «tem a energia interna e circular em forma de espiral e esta energia sai de forma linear». Assim, até podemos limpar «várias pedras ou um ambiente [colocando] em frente da selenita um cristal de quartzo, como catalizador». Melhor ainda que uma Swiffer cristalina, a Selenite pode ser limpa destas energias vibracionais e efeitos nocivos «por defumação, fuocos bio-energéticos ou visualização», este último método particularmente apropriado dada a natureza imaginária daquilo que se quer limpar.

Na página sobre a Selenite o Mário Portela tem um vídeo onde explica* estas coisas. Mas como aquela meia hora de vídeo com eco me causa uma dissonância energética insuportável, em vez do vídeo do Mário deixo aqui este da Lívia Maris Jepsen. Não tem nada que ver com o Mário mas, treta por treta, em cinco minutos dá um banho nos cristais, despacha tudo o que é energia negativa e põe logo os raios de luz a passar direitinhos e bonitinhos que é como deve ser.



* “Explica” no sentido metafísico e espiritual de substituir umas coisas que não fazem sentido por uma data de outras que fazem ainda menos sentido. Os textos e vídeos do Mário estão isentos de contaminação por aquela utilização mundana e naturalista do termo para indicar algo que esclarece o que quer que seja.

1- Portugal Místico, Guia Kármico Mário Portela, Limpeza de Cristais e Pedras
2- Guia Kármico Mário Portela, Energia em Pedra
3- Portugal Místico, Guia Kármico Mário Portela, A Selenite ou Pedra Lunar
4- Wikipedia, Moon rock
5- Mas não é Wensleydale, como se pode ver neste excelente documentário britânico sobre a exploração lunar.

domingo, fevereiro 23, 2014

Treta da semana (passada): os argumentos.

Numa entrevista no New York Times, o famoso filósofo e apologista católico Alvin Plantinga argumentou que o ateísmo é irracional e que a explicação para 62% dos filósofos serem ateus é ser psicologicamente difícil aceitarem que Deus existe (1). Mas não explicou porque é que esta alegada limitação psicológica haveria de afectar mais os filósofos do que, por exemplo, os analfabetos, e a pobreza os seus argumentos são uma desilusão, vindos de alguém tão citado pelos católicos.

Primeiro, argumenta que a ausência de evidências para a existência do deus dos católicos só justificaria o agnosticismo e nunca o ateísmo. Quando o entrevistador menciona o bule de Russel, um hipotético bule de loiça a orbitar o Sol entre a Terra e Marte que concluímos não existir mesmo sem podermos prová-lo (2), Plantinga alega que isso é diferente por termos evidências da inexistência do bule: «tanto quanto se saiba, a única forma de pôr um bule nessa órbita seria se algum país com capacidades para tal a lançasse para lá. Mas nenhum país com essas capacidades iria desperdiçar recursos em tal coisa. Além disso, se algum o fizesse apareceria nas notícias e saberíamos que o tinha feito». Este argumento não serve porque, ao contrário do que Plantinga alega, ele invoca precisamente a falta de evidências para rejeitar a existência desse bule. Assume que o bule só pode estar em órbita se algum país o lançar porque não tem evidências de haver outras formas de o colocar lá, como por magia, milagre ou intervenção de extraterrestres. Assume que nenhum país o faria porque não tem evidências de que o faça e que seria tema de notícia porque não tem evidências de haver alguma conspiração secreta para pôr bules em órbita. Inexistência de evidências para algo e evidências da inexistência de algo não são duas coisas independentes e completamente distintas como Plantinga quer fazer parecer.

Outro exemplo de Plantinga torna isto mais claro: «falta de evidências […] não justifica o ateísmo. Ninguém acha que há evidências para a proposição de que o número de estrelas é par; mas também ninguém pensa que daí se conclui que o número de estrelas é ímpar». Neste caso, o agnosticismo é realmente a posição mais justificável. Mas vamos supor que a proposição em causa era outra. Por exemplo, que o número de estrelas é múltiplo de dez. Nesse caso já teríamos de ter em conta que há nove vezes mais possibilidades de não ser múltiplo de dez do que de ser. Se a proposição for de que o número de estrelas é múltiplo de cem, de mil ou de dez mil, a justificação para a rejeitar como falsa é cada vez mais forte, e cada vez menos razoável será ficar indeciso. Se alguém alegar, por exemplo, que o número de estrelas do universo é um múltiplo de 166221987090122196, é perfeitamente razoável rejeitar a alegação simplesmente por não haver evidências suficientes para compensar a sua inverosimilhança a priori.

É este o problema das alegações acerca da existência de algo. Afirmar que algo existe é afirmar como verdadeiras todas as proposições que descrevem as suas alegadas propriedades. Por exemplo, afirmar que o deus católico existe é afirmar que criou o universo, é inteligente, é bondoso, é omnipotente, é pai, filho e espírito santo, morreu por nós, nasceu de Maria, transubstancia hóstias e uma data de outras proposições que têm de ser verdadeiras para ser verdade a proposição de que esse deus existe. Esta conjunção é tão inverosímil à partida que só com evidências muito fortes a seu favor se justificaria sequer o agnosticismo. O bule de Russel, ao qual basta apenas ser bule e estar entre a Terra e Marte, é muito mais verosímil do que qualquer deus de qualquer religião que eu conheça e ninguém duvida da sua inexistência.

Plantinga alega também que o facto de não ser preciso invocar qualquer deus para explicar seja o que for é uma fraca justificação para o ateísmo: «Também não precisamos da Lua para explicar os lunáticos mas não se pode concluir daí que se deva crer que a Lua não existe». Por outro lado, defende que a melhor razão para crer no deus dos católicos é a experiência religiosa. Ou seja, não se trata de acreditar que Deus existe por isto explicar algo mas porque o crente sente que esse deus existe. Há tempos escrevi sobre os problemas de assentar as crenças religiosas numa alegada sensação. Não há consenso, as sensações são pouco fiáveis e nunca uma sensação pode dar o detalhe necessário para fundamentar os dogmas das religiões (3). Mas este argumento de Plantinga mostra outro problema. Nós acreditamos que a Lua existe porque vemos facilmente uma bola grande brilhante no céu à noite. Essa visão é uma experiência imediata, mas a hipótese da existência da Lua não é a mera experiência de a ver; é a melhor explicação para a causa dessa experiência. E de muitas outras coisas, desde as filmagens das missões Apollo até às marés. Isto é verdade para qualquer hipótese acerca do que sentimos: justifica-se crer na hipótese se for a melhor explicação para essa sensação. Também assim, mesmo que alguém creia em Deus porque sente que Deus existe, essa crença é justificada apenas como hipótese explicativa para essa sensação. Por isso, uma boa justificação para o ateísmo, entre outras, é que as sensações dos crentes podem ser melhor explicadas por factores corriqueiros da psicologia e sociologia do que invocando a existência de deuses omnipotentes, criadores do universo e transubstanciadores de hóstias.

Depois de ler os argumentos de Plantinga, parece-me que o que carece explicação não é que 62% dos filósofos sejam ateus. É haver 38% que ainda não admitiram ter percebido que estas coisas dos deuses são todas uma treta.

Errata: O Plantinga não é católico (obrigado pela chamada de atenção). Por isso não deve estar a argumentar a favor do catolicismo. Ainda assim, é interessante apontar que tanto faz, porque os argumentos dele servem igualmente bem para quase todas as religiões.

1- NY Times, Is atheism irrational?. Recomendo também esta resposta do Massimo Pigliucci: Is Alvin Plantinga for real? Alas, it appears so (via Facebook)
2- Wikipedia, Russell's teapot
3-Sentir (aquele) deus.

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Democracia SARL: Parte 1, desigualdade.

Numa troca de posts entre o Henrique Monteiro e o Pedro Abrunhosa, o Pedro alegou que «as democracias ocidentais sucumbiram a outras forças maiores que transformaram os avanços civilizacionais do pós-guerra, para todos, em propriedade de muito poucos: o capital, o lucro, a ganância»(1), ao que o Henrique contrapôs que «nunca houve tanta democracia e participação popular no conjunto dos países do mundo», que «há menos pobreza do que em qualquer outra época» e que isto «deve-se - apesar dos arroubos de Abrunhosa - ao capital, aos mercados, à circulação, à mobilidade»(2). Mais tarde, voltou a frisar que «a pobreza tem diminuído» e acrescentou que «a própria desigualdade no mundo (sublinho no mundo) tem vindo a diminuir»(3). Apesar de não me agradar a retórica do Pedro Abrunhosa, é ao Henrique que gostaria de apontar alguns erros e omissões que, se corrigidos, revelam que as coisas não estão assim tão bem. Vou dividir isto em duas partes. Esta é sobre a ideia de que estamos melhor porque há menos pobreza e menos desigualdade.

Depois de ter aumentado constantemente desde, pelo menos, o século XIX até 2002, o coeficiente de Gini do mundo tem vindo a diminuir ligeiramente na última década (4). É com base nisto que o Henrique afirma que desigualdade tem diminuído. Um erro aqui é o de confundir o coeficiente de Gini com desigualdade. Este valor é um indicador útil por ser objectivo e não depender dos rendimentos totais, mas não corresponde exactamente ao conceito de igualdade. O próprio Henrique, inadvertidamente, demonstra isso quando dá um exemplo de como a pobreza pode diminuir mesmo quando a desigualdade aumenta. «Imaginemos que a pessoa A ganha mil e B ganha 10. Se a B passar a ganhar 20 (aumento de 100%) e a A 1500 (aumento de 50%), apesar de a B ter sido mais aumentada em percentagem, a desigualdade aumentou brutalmente, porque passou de uma diferença de 990 para 1480». É intuitivo que se damos 500 ao mais rico e 10 ao mais pobre estamos a agravar a desigualdade. No entanto, o coeficiente de Gini é ligeiramente menor no segundo caso* porque o mais pobre passou a ter uma percentagem maior da riqueza total. Um exemplo extremo será o de uma aldeia onde só uma pessoa tem dinheiro. Quer essa pessoa tenha 1€ quer tenha um milhão de euros, o coeficiente de Gini será o mesmo (aproximadamente 1). No entanto, intuitivamente a desigualdade é muito menor quando a única pessoa que tem dinheiro apenas tem um euro do que quando tem um milhão. Apesar do coeficiente de Gini ter diminuído ligeiramente na última década, e precisamente porque a riqueza total aumentou muito, não podemos dizer que a desigualdade tenha diminuído. Como mostra o exemplo do Henrique, até pode ter aumentado.

Quanto à tese de que as coisas estão melhores porque a pobreza absoluta está a diminuir, é preciso distinguir dois tipos de problemas. Vamos supor que temos sete mil milhões de pessoas e mil milhões passam fome porque só há comida para alimentar seis mil milhões de pessoas. É uma tragédia mas não há nada a fazer. Não conseguimos semear batatas em Marte e, se não há comida que chegue, vai haver fome. Mas vamos supor que há comida que chegue para todos, que a comida até sobra e se desperdiça (5), mas que, ainda assim, 800 milhões de pessoas passam fome (6). Boa, dirá o Henrique, são menos 200 milhões a passar fome. Mas a tese de que as coisas melhoram ignora que a situação deixa de ser uma tragédia inevitável para se tornar num problema político e social grave. A injustiça e a responsabilidade política não se encontram na diferença entre como as coisas estavam e como estão mas na diferença entre como as coisas estão e como poderiam estar, e nesse aspecto o problema tem se agravado muito. Quanto mais riqueza há no total menos desculpável é que se permita tanto sofrimento apenas por má redistribuição dos recursos.

Um exemplo disto é o resultado de se permitir a participação de fundos de investimento especulativo no mercado de contratos futuros de bens alimentares. Até 1999, este mercado estava fortemente regulado e só empresas com interesse real naqueles bens podiam participar. Mas, graças ao lobbying de grandes grupos financeiros, o mercado foi aberto a fundos de investimento que, por terem muito mais capital disponível, rapidamente inflacionaram os preços para lucrar com a especulação. Entre 2003 e 2011 o investimento anual em contratos derivativos na agricultura aumentou de 3 mil milhões de dólares para 126 mil milhões de dólares (7). Se bem que alguns chamem a isto “criação de riqueza”, o resultado foi que, mesmo descontando a inflação, o preço dos alimentos para o comprador final mais do que duplicou nesta década (8).

Um argumento forte contra a redistribuição é o de que a redução no incentivo para gerar riqueza faz diminuir o tamanho total do bolo. Se não há que chegue para todos, então tentar redistribuir pode agravar o problema. Mas se esse argumento é forte quando os recursos são insuficientes, torna-se tão mais fraco quanto maior for o bolo. Quando 0.7% da população mundial detém quase metade da riqueza total (9) enquanto 12% passa fome estamos claramente fora dessa situação em que o limite era o tamanho do bolo. Assim já compensa redistribuir mesmo à custa do crescimento total. Por exemplo, é evidente que compensa regular os contratos derivativos de bens alimentares para tirar dezenas ou centenas de milhões de pessoas da fome à custa do lucro de alguns bancos e de uma pequena redução no PIB global. Mesmo que se perca “riqueza”, o que não é certo, ganha-se muito mais em troca. Porque é que, com tanta democracia, este tipo de coisas não acontece? Porque, ao contrário do que o Henrique Monteiro defende, a democracia moderna guia-se mais pelo dinheiro do que pelos votos. Mas isso fica para a segunda parte.

*Segundo as minhas contas, 0.829 contra 0.830.

1- Expresso, Pedro Abrunhosa reage a texto de Henrique Monteiro
2- Expresso, Henrique Monteiro responde a Abrunhosa
3- Expresso, O paradoxo da diminuição da pobreza
4- Wikipedia, Gini Coefficient
5- Wikipedia, Food Waste
6- World Hunger, 2013 World Hunger and Poverty Facts and Statistics
7- New Internationalist, The food rush
8- The Independent, Goldman bankers get rich betting on food prices as millions starve
9- Guardian, The world's wealthy: where on earth are the richest 1%?

domingo, fevereiro 09, 2014

Treta da semana: a ameaça.

Segundo um artigo que o Mats traduziu, os ateus deviam batalhar mais pelo fim da ciência do que pelo fim das religiões porque «a ciência é que representa uma ameaça para a Humanidade, e é a ciência que actualmente está a causar imensas casualidades [casualties, presumo] por todo o mundo»(1). O argumento parte da premissa de que «o pior crime religioso de toda a Idade Média foi massacre do Dia de São Bartolomeu onde o Rei Carlos da França ordenou a matança de cerca de 10,000 Huguenotes.» Fica implícito que este massacre de 1572 tenha representado o pior que as religiões fizeram até hoje. Contrasta então isto com as «consequências de um único caso de “má-conduta na pesquisa”: […] ao seguirem directrizes estabelecidas, médicos do Reino Unido podem ter causado até 10,000 mortes por ano [… e …] até 800,000 mortes na Europa, só nos últimos 5 anos.»

Os factos do caso não são triviais. As directrizes referidas recomendavam a administração de bloqueadores beta-adrenérgicos (BBA) em algumas cirurgias. Estas drogas bloqueiam receptores da noradrenalina e servem para controlar problemas de arritmia cardíaca e hipertensão, por isso foram consideradas potencialmente úteis para proteger o coração do stress operatório. Com base nos resultados de sete ensaios clínicos e várias meta-análises, a Sociedade Europeia de Cardiologia recomendou os BBA para pacientes sujeitos a cirurgias de alto risco ou com problemas cardíacos, com uma recomendação fraca para cirurgias de risco médio (2). Entretanto, Don Poldermans, o coordenador do grupo de trabalho que elaborou a recomendação e responsável por um dos estudos nos quais a recomendação se baseou, foi condenado por falsificação de dados (3). Naturalmente, a recomendação foi questionada. Uma meta-análise considerando apenas os estudos que não foram postos em causa pela fraude de Poldermans sugere que a administração de BBA em cirurgias não cardíacas aumenta 27% a mortalidade global, devida a todas as causas (4). No entanto, este efeito já era evidente nos estudos citados pela recomendação (2) e os benefícios dos BBA pareciam ser principalmente na mortalidade por problemas cardiovasculares. Foi por isso que a recomendação focou principalmente os doentes com problemas cardíacos ou operações de alto risco. É evidente que este uso de BBA tem de ser reavaliado – entretanto, as recomendações foram revogadas (5) – mas aquela estimativa do número de mortes é muito especulativa.

Mas vamos supor que o Mats e as suas fontes têm razão e que a administração de BBA nestas cirurgias está mesmo a causar 10,000 mortes desnecessárias por ano no Reino Unido, e algumas 100,000 no resto da Europa. O número de 10,000 mortes no Reino Unido é estimado assumindo que os BBA aumentam a mortalidade pós-operatória em 27% e que são administrados em todas as 2.5 milhões de cirurgias anuais que, no Reino Unido, se enquadram nos parâmetros das recomendações. Como o número total de mortes no período pós-operatório é de 47 mil por ano, isto dá cerca de dez mil por causa dos BBA (4). Mas o Mats e companhia defendem que o problema é a ciência e não apenas o uso preventivo de BBA nestas cirurgias: «a ciência é que representa uma ameaça para a Humanidade». Isto é mais difícil de justificar porque mesmo que administrar BBA nestes dois milhões e meio de cirurgias mate dez mil pessoas por ano, é pouco plausível que esses dois milhões e meio de pessoas que precisaram de cirurgias de médio ou alto risco tivessem ficado melhor sem ciência. Mesmo imperfeita, a ciência parece ser bastante melhor para tratar doenças do que qualquer coisa que as religiões possam oferecer.

Também é relevante apontar que é pela ciência que se vai decidir se é melhor usar os BBA e em que circunstâncias. Não adianta procurar a resposta em livros sagrados nem perguntar a gurus, sacerdotes ou líderes espirituais. Tem de se fazer os ensaios clínicos.

Mas o mais curioso, e irónico, é este comentário final do Mats. «A ciência moderna pode ser perigosa para a Humanidade não porque haja algo de errado com os testes, as experiências e as revisões por pares, mas sim porque grande parte dessa mesma ciência é feita por pessoas que realmente acreditam que os cientistas são a classe elitista da sociedade, e a ciência está maioritariamente certa, e como tal os cientistas não têm que se justificar a ninguém, e nem sofrer as consequências das suas “más-condutas”»(1). Todo este caso foi despoletado porque houve suspeitas acerca da conduta do Don Poldermans, houve um inquérito detalhado aos ensaios clínicos que ele tinha coordenado e, além de ele ter sido demitido, todas as conclusões que dependiam daqueles resultados irão ser revistas. A razão pela qual se apanham estas aldrabices em ciência é precisamente porque todos exigem justificação para todas as alegações e quanto mais importantes forem maior será o escrutínio. Não é entre os cientistas que o Mats vai encontrar os que se julgam detentores da verdade revelada e que têm, sem mais justificação do que a sua fé, certezas tão definitivas que excluem sequer a possibilidade de alguma vez os refutarem.

A ciência permite-nos compreender a realidade, o que nos dá muito mais poder do que os mitos e fábulas que os nossos antepassados inventaram. É verdade que, com esse poder, o impacto das nossas decisões, boas ou más, é maior do que quando a solução para tudo era pedir favores a amigos imaginários. Mas a ameaça, como este exemplo do Mats ilustra, não é a ciência. Pelo contrário. A ciência é a melhor forma de encontrar as decisões certas e evitar as erradas. A maior ameaça vem daqueles que, tendo também acesso a este poder, escolhem irresponsavelmente manter-se ignorantes de tudo o que contradiga a sua fé.

1- Mats, É a ciência moderna mais perigosa que a religião?, do original de Theodore Beale, Science is more dangerous than religion
2- Poldermans et al, Guidelines for pre-operative cardiac risk assessment and perioperative cardiac management in non-cardiac surgery, Eur Heart J (2009) 30 (22):2769-2812.
3- Wikipedia, Don Poldermans
4- Bouri et al., Meta-analysis of secure randomised controlled trials of β-blockade to prevent perioperative death in non-cardiac surgery., Heart. 2013 Jul 31
5- European Society of Cardiology, ‘Guidelines : Pre-operative Cardiac Risk Assessment and Perioperative Cardiac Management in Non-Cardiac Surgery’, Eur Heart J (2013) 34 (44): 3460

sábado, fevereiro 08, 2014

Remuneração.

Quando comecei a discutir copyright nas internets, a justificação mais frequente para estas leis era a de que o direito exclusivo de cópia seria um direito de propriedade. Não sei se por cansaço ou esclarecimento, esta justificação foi-se tornando menos comum e foi sendo substituída pela tese de que o direito à remuneração é que justifica o monopólio sobre a cópia. Ou, nas palavras do Miguel Sousa Tavares, «Eu não ando anos e anos a fio a escrever livros para depois os ver distribuídos livremente em PDF»(1). O problema fundamental desta tese é que uma escolha individual não obriga terceiros a remunerar o autor e ainda menos justifica privá-los dos seus direitos. Mas antes de chegar ao fundamental queria apontar duas diferenças importantes entre o copyright e as leis que regulam a remuneração.

O Miguel Sousa Tavares apresentou uma queixa-crime contra a Margarida Martins por ter enviado um email com digitalizações de livros que o Miguel publicou. A primeira diferença entre isto e o direito legal à remuneração é ser uma queixa-crime. Se a Margarida tivesse encomendado um serviço ao Miguel e não lhe tivesse pago o processo seria civil e não criminal. Uma empresa até pode declarar falência e deixar centenas de trabalhadores com meses de ordenado em atraso sem haver qualquer crime. A outra diferença é a de que o copyright envolve a Margarida e outros dez milhões de portugueses sem que estes tenham celebrado qualquer contrato com o Miguel. Mesmo ignorando os aspectos éticos, é muito estranho haver uma obrigação legal de remunerar alguém sem qualquer acordo prévio. Há quem justifique isto alegando que gostar dos livros do Miguel, por si só, já cria a obrigação de o remunerar. Mas além de isso ser também inédito na lei, o copyright não faz distinção entre quem gosta e quem não gosta. Simplesmente proíbe a cópia e pronto.

Justificar o copyright dos livros do Miguel pelo direito à remuneração é dizer que cada um de nós tem uma responsabilidade tão grande de zelar pela remuneração do Miguel que até responderá criminalmente se, por exemplo, enviar um email com um PDF em anexo. Em contraste, as leis que regulam a remuneração e outras relações comerciais estão no âmbito do direito civil e apenas obrigam quem participar voluntariamente nessas relações. Esta diferença é tão grande que mesmo que houvesse algum dever de remunerar o Miguel Sousa Tavares pelo lindo trabalho que ele fez não se justificava dar-lhe o poder de proibir toda a gente de copiar. No máximo, merecia os mesmos direitos legais de um trabalhador com o ordenado em atraso.

O problema fundamental do copyright é que as restrições que impõe a toda a gente vão muito além das obrigações que essas pessoas possam ter para com o autor. Por isso, não se pode justificar por um direito à remuneração. Na verdade, o copyright nem sequer dá ao autor qualquer garantia de remuneração pelo seu trabalho ou pelo mérito da sua obra. Para ser remunerado, o autor tem de encontrar quem esteja disposto a pagar-lhe, como acontece com os inúmeros trabalhadores cujo trabalho não está abrangido por esta legislação. A diferença é que, com o copyright, em vez de ser remunerado pelo seu trabalho o autor é remunerado pelo poder legal de proibir terceiros de copiar a obra publicada. Superficialmente, isto pode parecer análogo à diferença ente o músico ser pago para tocar numa festa ou cobrar bilhetes para poderem assistir ao seu concerto, mas esta aparência esconde uma diferença fundamental. O copyright não é apenas outro modelo de negócio. É uma lei, e invulgarmente intrusiva.

Os vários modelos de negócio pelos quais uma pessoa pode obter remuneração pelo seu trabalho assentam em leis genéricas que se aplicam a todos. A obrigação de cumprir contratos, direitos de propriedade sobre equipamento e espaços e assim por diante. Sobre este suporte legal, todos são livres de decidir como procurar remuneração. Se um escritor dá um orçamento para escrever um livro e assina um contrato pode ser remunerado como qualquer outro prestador de serviço. Se um músico aluga uma sala e cobra bilhetes para assistirem ao concerto não precisa de invocar direitos especiais de músico; seria o mesmo se organizasse uma jantarada ou um curso de macramé. Mas se quer dar o concerto na rua e incomoda-o que pessoas assistam à janela sem pagar bilhete, azar dele. Seria impensável criar uma lei que proibisse as pessoas de ir à janela nas noites de concerto só para o músico vender mais bilhetes. Pois o copyright que temos hoje é essa lei impensável e é isso que carece de justificação.

O direito à remuneração resulta de um acordo voluntário entre a parte titular desse direito e a parte que se compromete a remunerar, haja ou não copyright. Esse direito já está garantido pela legislação que regula coisas como prestação de serviços, contratos e dívidas. O que o copyright traz de diferente é a criminalização da cópia. O que está aqui em causa não é o direito dos autores negociarem a sua remuneração mas sim a legitimidade de proibir toda a gente de copiar ficheiros ou enviar emails com PDF (ou de ir à janela durante o concerto). O copyright não regula o direito à remuneração. Serve apenas para coagir pagamentos da parte de quem não deve nada ao autor e isso não se pode justificar pelo direito à remuneração.

Concordo que o Miguel tem todo o direito de não andar «a escrever livros para depois os ver distribuídos livremente em PDF». Mas é o direito de ele escolher se escreve ou não escreve e se publica ou não publica. A decisão voluntária e unilateral do Miguel publicar os seus livros não lhe dá o direito de mandar nas casas, computadores ou emails dos outros nem de coagir ninguém a pagar-lhe.

1- DN, "O que ela fez é crime", diz Miguel Sousa Tavares