Teorias.
Por infeliz acidente histórico, “teoria” é a palavra que designa o nível mais alto do conhecimento humano: a teoria científica. Infeliz porque, durante um longo percurso, o termo acumulou muitos sentidos diferentes e, agora, quem quiser propor um qualquer conjunto de crenças como alternativa à ciência pode sempre apontar que a ciência “é só teorias”. Como se a ciência fosse equivalente, ou até inferior, aos disparates sem fundamento de coisas como o criacionismo, a teologia, as modas da new age e afins. Para desabafar sobre o erro destas alegações vou distinguir três tipos de produto da ciência e procurar o seu paralelo nas supostas alternativas.
Primeiro, a hipótese. A hipótese é uma proposição, uma expressão que pode ser verdadeira ou falsa. Pode ser “No princípio criou Deus os céus e a terra” ou “a massa do electrão é 1836 vezes menor do que a do protão”. Não interessa o tema. Há hipóteses em todos os sistemas de crenças, sejam ciência ou não, porque a crença, no fundo, é simplesmente a atitude de aceitar uma hipótese como verdadeira. Mas logo aqui há uma grande diferença entre a ciência, onde incluo a parte mais rigorosa da filosofia, e coisas como teologias, superstições e ideologias várias, onde incluo as partes mais vagas da filosofia, aquelas que facilmente se confundem com literatura, poesia ou má ficção. A diferença está na forma de encarar as hipóteses.
Do lado da ciência, as hipóteses são um ponto de partida. São matéria prima para desbastar, escavar e polir até encontrar algum cristal de verdade que resista à abrasão pelos factos. Do outro lado até evitam chamar-lhes hipóteses. São hipóteses à mesma, porque podem ser verdadeiras ou falsas. Normalmente até são falsas. Mas, para disfarçar, chamam-lhes dogmas, doutrina, revelação, intuição e essas coisas. Desse lado da cerca as hipóteses não são um ponto de partida e muito menos algo que possa rejeitar ou corrigir. São a Verdade. Algo perante o qual o crente se ajoelha em veneração e para além do qual se recusa ir. Esta é uma grande diferença entre a ciência e o resto: o ponto final do percurso dessas alternativas corresponde ao ponto de partida no caminho que a ciência faz até ao conhecimento.
Outro tipo de produto da ciência é o modelo. Por exemplo, a tabela periódica, as equações das orbitais atómicas do hidrogénio ou a maqueta do ADN que Crick e Watson fizeram com arame e cartão. Um modelo não é uma afirmação nem uma hipótese. Por si só, uma tabela, equação ou maqueta não é verdadeira nem falsa nem é objecto de crença. A particularidade do modelo é representar parte da realidade com suficiente detalhe e objectividade para que dele se possa inferir um conjunto coerente de hipóteses concretas. Sendo uma descrição detalhada e objectiva, o processo pelo qual se infere hipóteses a partir do modelo não depende da crença ou fé de cada um. Há uma maneira bem definida de ler e interpretar a tabela periódica que não depende de acreditarmos naquilo que lá está escrito. É muito difícil encontrar modelos fora da ciência. A astrologia recorre a modelos, mas são os da astronomia. O criacionismo faz de conta que tem um modelo de como surgiu a vida na Terra, mas acaba por não ter qualquer descrição coerente com o mínimo detalhe. Tem apenas um conjunto solto de hipóteses acerca de Deus ter feito este milagre aqui e aquele ali. Em geral, é isto que se passa com as religiões e restantes superstições. Interpretam textos sagrados, discorrem sobre intuições e alegadas revelações e invocam a fé mas nunca produzem uma representação detalhada que enquadre sem ambiguidade as hipóteses em que acreditam. Não há nada na teologia ou em qualquer esoterismo com o detalhe e a objectividade de uma fórmula química, um mapa ou uma equação.
Finalmente, a ciência produz teorias. Ao contrário da forma como muitos usam o termo, uma teoria não é um bitaite. É algo muito mais profundo e até difícil de apreciar sem ganhar primeiro alguma familiaridade com este tipo de coisas. Uma teoria é um esquema gerador de modelos. É uma estrutura rigorosa de conceitos e relações que especifica que modelos são possíveis, e é de tal forma restritiva que, normalmente, basta saber alguns parâmetros para reduzir as possibilidades a apenas um modelo. Por exemplo, a teoria da relatividade permite-nos saber onde um asteróide vai passar décadas mais tarde apenas observando a sua velocidade e posição (1). As teorias científicas são também muito abrangentes. Com a teoria da relatividade podemos modelar o movimento de planetas e estrelas, a trajectória de electrões num tubo de raios catódicos e até medir a perda de água no solo da Índia pelo efeito na órbita de satélites (2).
É um erro propor teologias ou misticismos como vias de conhecimento paralelas à ciência porque são meros vestígios de abordagens rudimentares. Admito que a crença nessas hipóteses possa ter valor subjectivo para algumas pessoas mas, por muito valor que tenham enquanto crença, como conhecimento não valem nada. Sem suporte na realidade, nunca passaram daquela fase especulativa inicial. Para organizar hipóteses em modelos detalhados é preciso testar e escolher com cuidado as que melhor correspondem à realidade. Senão, sempre que se entra em detalhes os erros tornam-se evidentes. O resultado é que, fora da ciência, as afirmações acerca da realidade ou são vagas demais para dizerem o que quer que seja ou são claramente disparatadas. E para encaixar os modelos em teorias que unifiquem aspectos da realidade tão diferentes como, por exemplo, galáxias e electrões ou baleias e vírus, é preciso uma compreensão profunda que só surge depois de séculos a corrigir erros e a rejeitar ideias falsas. Só então é que o que sobra começa a encaixar. Este percurso foi exclusivo da ciência. Não há nada fora da ciência com um palmarés tão grande de erros corrigidos. Não há nada fora da ciência que tenha ido tão longe. Por isso, não há nada fora da ciência que chegue a ter teorias. Se bem que o melhor que a ciência pode oferecer é, realmente, “só teorias”, as alternativas ficam todas muito atrás, sem passarem sequer das hipóteses.
1- Wikipedia, 99942 Apophis
2- NASA, NASA Satellites Unlock Secret to Northern India's Vanishing Water
Ludwig,
ResponderEliminar«Infeliz porque, durante um longo percurso, o termo acumulou muitos sentidos diferentes e, agora, quem quiser propor um qualquer conjunto de crenças como alternativa à ciência pode sempre apontar que a ciência “é só teorias”»
Antes de mais, feliz ou infeliz não são juízos de ciência, embora tenha a ver com teorias.
Por exemplo, eu escrevi sobre a teoria da felicidade.
“A teoria da felicidade
Não é segredo para ninguém
Mas quem sabe
Ser feliz
Quem
À deriva pela cidade
Sem pensar
Se é verdade
Fala aos astros
Da alegria do canto
Dissipando nuvens
Acenando
Sem perguntar
Se é errado
Ninguém está perdido
Ou achado
Ao sentir sem sentido
E sem culpa
O tempo esquecido
Em algum lugar
Em nenhum lugar
Em todo o lugar
Em qualquer lugar.”
Seguidamente, o Ludwig maltrata a ciência, tão sem cerimónia quanto profere banalidades com a mais rígida solenidade dos mangas de alpaca das fórmulas.
A miscelânea em que aposta é racional, não digo que não e antes o não fosse, mas é a recusa de uma estratégia viável com vista ao esclarecimento.
Ludwig, nem todas as teorias são científicas. Comecemos por aqui.
Porque diz que uma teoria científica é superior a uma teoria não científica?
A maior parte das teorias que conhecemos não são científicas, umas porque ainda o não são, outras porque não têm que ser. Um exemplo? Quando comecei a tocar guitarra, mandavam-me colocar os dedos nesta e naquela corda, neste e naquele trasto e eu ficava irritado. Queria saber porquê. E pedia que me dissessem qual era a teoria da guitarra. Sem a teoria da guitarra, da forma da guitarra, à divisão do braço em trastos, às seis cordas, com uma composição diferente e respetivas notas, etc…, eu sentia-me à deriva, como um navegador sem bússola. Achava eu que, se compreendesse a que “lógica” tudo aquilo obedecia, seria apenas uma questão de treino e de trabalho, porque a teoria era a chave.
E o mesmo aconteceu quando comecei a conduzir automóvel. Queria que o instrutor me explicasse a teoria do automóvel, porque tem velocidades, um acelerador, etc….
E quando comecei a estudar Direito, idem. O que é o Direito, porque mudam as leis, porque uns podem impor aos outros, etc….Sempre quis saber as teorias, porque, sem elas, podemos fazer as coisas, mas é como se não soubéssemos a “lógica”.
E não foi diferente quando frequentei a catequese e a missa e li os evangelhos, etc….
E quanto a pessoas que diziam não crer em Deus, a primeira coisa que se aprendia na catequese é que acreditar em Deus não é a mesma coisa que acreditar numa mentira. Não por causa do móbil da mentira, mas por causa do móbil da verdade.
E quis saber a teoria do crente e a teoria do descrente, a teoria da verdade e a teoria da mentira, diferente da da falsidade, etc….
Ludwig, a teoria do cientista e a teoria do não cientista não existem. Porque insiste o Ludwig neste ilusionismo?
Que raio de cisma essa de dividir a humanidade em dois tipos de pessoas, os cientistas e os que não são cientistas?
Ninguém é ateu por causa da ciência e da filosofia e muitos crentes são dos mais empenhados em espírito crítico e em espírito científico.
A teoria da guitarra não pode ser científica?
Eliminarjulio,
Eliminarnunca me disseram sequer que havia uma teoria da guitarra, a mim é que parecia que devia haver. Hoje continuo sem saber, porque também não fui capaz de a elaborar. Quanto ao ser científica, ao ter que ser científica e ao poder ser científica, depende do método da investigação, dos resultados e do sistema de validação.
Tudo o que existe é conhecível. Tudo o que há suscita as mesmas perguntas: o que é isto? porque é assim? Como chegou a ser assim? Como será no futuro? Como se relaciona com as outras coisas que existem?
ResponderEliminarO conhecível pode ser galáxias, electrões, baleias, vírus, comportamentos, leis, músicas, poemas, narrativas, acontecimentos, ideias, etc.
Uma teoria estrutura e sistematiza o que já se sabe sobre um objecto e é tão mais complexa quanto mais se tem podido saber sobre o objecto. O avanço do conhecimento sobre os muitos objectos não está todo no mesmo ponto (porque alguns estudam-se há pouco tempo). Por isso algumas teorias são mais sofisticadas do que outras.
Mas é claro que há uma teoria para a guitarra, como pode haver para tudo o que podemos conhecer.
«Mas é claro que há uma teoria para a guitarra, como pode haver para tudo o que podemos conhecer»
ResponderEliminarNão há uma só. Graças a Deus há muitas.
http://reflexaocontabil.wordpress.com/2013/08/02/ciencia-com-consciencia-morin/
Pergunto-me frequentemente se os criacionistas que classificam e rejeitam a Evolução como sendo "apenas uma teoria", quando lhes é receitado um antibiótico, dirão também "oh senhor doutor! Isso dos micróbios causarem doenças é só uma teoria!".
ResponderEliminarA “teoria da guitarra” é um bom exemplo do problema que mencionei no início do post. Nessa expressão, “teoria” tem o sentido original, e mais comum, de distinguir a actividade de falar sobre algo da actividade de fazer algo, a que chamamos prática. Mas isso não captura a diferença que há entre, por exemplo, a mecânica newtoniana e dizer “acho que amanhã vai chover”. A teoria científica não é algo que se distinga apenas por ser dita em vez de feita.
ResponderEliminarCientificamente, a teoria que usamos para modelar a guitarra será o esquema que Newton inventou para criar modelos acerca do movimento e interacção de partículas e forças. Não é a mais rigorosa que temos, mas para as guitarras é suficientemente aproximada. É daí que se deriva toda a acústica. É verdade que ao que Newton fez ainda se chama “leis”, porque era assim que lhe chamavam na altura, e a uma lista das notas que compõe os acordes chamam “teoria”, porque também pode ser usada nesse sentido. Daí a infelicidade de usar termos com tanta carga histórica.
Mas o que me parece importante é apontar a diferença fundamental que há entre uma lista de acordes e um esquema que permite criar modelos tanto da órbita de Plutão como da queda da maçã como da vibração das cordas da viola no acorde de Dó Maior. Chamar tudo “teoria” será como ter um sistema taxonómico que agrupa todos os animais na categoria de “bichos”. Pode ser prático de usar no quotidiano mas ignora diferenças importantes.
Ludwig,
ResponderEliminarPor outro lado, uma teoria, científica ou não, não resolve um problema, é apenas uma teoria sobre alguma coisa, atividade, afirmação, observação, fenómeno, etc…. Uma teoria sobre a fome não resolve o problema. As teorias económicas ou sociológicas podem ser de complexidade maior do que as teorias sobre a natureza e, ainda assim, não resolverem os problemas.
Uma teoria, ela mesma, é um problema.
E se a questão da cientificidade das teorias, nuns casos é fundamental, noutros, não é, nem pode ser.
Quanto às hipóteses, se o Ludwig entende razoável colocar Deus como hipótese de criação, há-de ser capaz de, de algum modo, lhe reconhecer “um lugar” no objeto da ciência, caso contrário, coloca um falso problema, ou um problema para o qual, à partida, já tem resposta. Neste sentido Deus tão pouco é uma hipótese.
«Algo perante o qual o crente se ajoelha em veneração»
Esta é uma diferença entre a fé e a ciência.
Ninguém ajoelha perante a ciência (Onde é que ela está? O que é? Quem é?), mas muita gente ajoelha em veneração de Deus.
Haverá alguém que não perceba a diferença entre Deus, eterno, criador e a quantidade de coisas que se sabem e que se dizem saber?
Depois, comparar dogma com teorema, com a finalidade de mostar que o teorema é que é, é despropositado e perda de tempo, não vale. Porquê?
Porque ninguém diz que o dogma, ou a fé se assume como ciência.
O Ludwig acha que a fé é irracional, mas irracional e contraditória é a posição dele.
«É um erro propor teologias ou misticismos como vias de conhecimento paralelas à ciência porque são meros vestígios de abordagens rudimentares.»
E muitos outros erros poderemos referir. Mas a questão é outra. As teologias e os misticismos, como é sabido, não propõem vias de conhecimento paralelas à ciência. O que propõem é uma abordagem racional, inteligente e fundamentada, de questões e realidades que as ciências naturais não abrangem no seu objeto de estudo.
É como se quiséssemos estudar o fundo do mar e não tivéssemos meios de o fazer. O Ludwig resolvia a questão negando a existência do fundo do mar e persiste em não reconhecer que existem imensas questões para as quais nem as ciências naturais nem a matemática, nem a filosofia… têm resposta. E também não reconhece que seja racional colocar essas questões. E menos ainda dar-lhes resposta. E ainda menos, que se acredite nessa resposta.
É claro que a alternativa, para o Ludwig, não é responder, é negar a existência do problema.
«O resultado é que, fora da ciência, as afirmações acerca da realidade ou são vagas demais para dizerem o que quer que seja ou são claramente disparatadas.»
Normalmente os métodos das pessoas são científicos, ou pelo menos racionais, tanto quanto podem e lhes interessa. Até quando diziam que o sol girava à volta da terra. Ou, como Shakespeare, há uns séculos dizia, “quando o pai dá ao filho, ambos riem, quando o filho dá ao pai, ambos choram.”
Quem não sabe o que é e não compreende a ciência?
Ludwig, a realidade é que é bastante mais difícil de conhecer e de compreender.
Volto a dizer que a ciência não ganha nada com a retórica pró ciência do Ludwig, ao fazer da ciência uma coisa que ela não é, algo inacessível, hermético, esotérico, que não trata das coisas que interessam às pessoas.
Quanta energia desperdiçada na procura da razão... encontrarás só o que sóis... conglomerado de células....
ResponderEliminarPor estar acima, no meio ou dentro... junte tudo... faça um Homem ... por não conseguir, viverás atrás da macabra procura da razão, que é só perda de tempo para preencher a impotência de SENTIR... pq não sou feliz se sei tudo? Pq não crio algo útil como é um corpo para o espirito (ahhh espirito já é ir longe demais né).
Se esforce mais... e encontrará só você e sua mente... que não consegue palpar .... mas te atormenta no travesseiro.
Abraço