Treta da semana (passada): ideologia.
No Observador, Gonçalo Portocarrero de Almada critica «A ideologia de género», alegando que esta «entende que não se é do sexo a que corresponde a masculinidade ou a feminilidade biológica, mas do género a que cada qual, liberrimamente, decide pertencer.»(1) Não percebo bem o que Almada quer dizer com ideologia de género mas é óbvio que não notou a diferença entre género e sexo. Não se quer «A substituição do ‘sexo’, que são só dois – o feminino e o masculino – pelo ‘género’, que não se sabe quantos são». O que importa é perceber que os aspectos biológicos e anatómicos são do foro privado e diferentes dos aspectos sociais e públicos da nossa vida. A nossa aparência, identidade, forma de viver e o papel que desempenhamos em sociedade não se determinam pelos órgãos sexuais.
Eu tenho testículos e um pénis. Suspeito que Almada também. Mas isto não é coisa que andemos a mostrar em público nem assunto que diga respeito a terceiros. As características sexuais primárias que nos fazem ser do sexo masculino são do foro privado. O que mostramos à sociedade é algo bem diferente. Eu costumo sair de casa barbeado, por exemplo, modificando uma característica sexual secundária de outra forma bem visível. Se vivesse em Mossul seria condenado à morte por andar com este aspecto efeminado. Barbear-me, mudar fraldas aos filhos, vestir calças, usar o cabelo curto e cozinhar são alguns de milhares de aspectos mais ou menos públicos da minha identidade que constituem o meu género. O meu género não é um pénis. Isso faz parte do meu sexo e faço por não andar com ele à mostra.
Almada é (presumo) do mesmo sexo que eu. Mas não é do mesmo género. Não há nomes para distinguir os nossos géneros mas é óbvia a enorme diferença de género entre nós. Eu tenho filhos, nunca usei saias, vivo com uma mulher e encaro a castidade mais como um problema a resolver do que como uma virtude. Almada e eu temos uma forma muito diferente de viver o mesmo sexo e de nos identificarmos com o sexo que temos. É isso que distingue os géneros.
Aquilo que Almada condena como “ideologia de género” não é mais que o reconhecimento do direito de homens como Almada se vestirem daquela forma, não terem mulher nem filhos e dedicarem a sua vida a orações, pregações e essas coisas pouco másculas. Ou o direito de homens como eu cortarem a barba, darem banho aos filhos e lavarem a loiça (quando é preciso). Se Almada reconhece que, apesar de sermos do mesmo sexo, temos o direito de viver as nossas vidas, e a nossa sexualidade, de formas tão diferentes e sem represálias ou discriminação, então Almada é também um defensor da “ideologia de género” que diz condenar.
Falta a Almada perceber que esta diferença entre a forma como nos identificamos publicamente e a anatomia do que guardamos nas cuecas pode até ultrapassar as linhas arbitrárias que traçamos entre géneros e sexos. Por exemplo, se eu andar tapado com um pano preto pode haver gente, de certas culturas, que assuma por isso que eu tenho uma vagina em vez de um pénis. O erro está em presumirem uma ligação necessária entre o pano e os genitais quando a única correlação que há é meramente convencional. O mesmo acontece se uma mulher quiser vestir uma batina e celebrar uma missa. Almada pode defender que a batina e a condução da missa são reservadas a quem tem os genitais adequados mas o que está sob a batina é do foro privado. A maioria dos padres deixa essas partes escondidas sob a batina e as excepções são justamente criticadas. Não há, por isso, razão para que o género sacerdote seja só do sexo masculino. Passa-se o mesmo com as opções de usar saias ou calças, ténis ou saltos altos, batom ou after-shave. Nada disso está preso à anatomia genital.
A “ideologia de género” é um espantalho. A ideologia em causa aqui é a da liberdade. Vem de compreender que há uma vasta gama de opções que cada um pode tomar sem limitar a mesma liberdade em mais ninguém. É daqui que surgem direitos como o da reserva da vida privada, a liberdade de opinião e expressão, a liberdade de crença religiosa e a liberdade de se identificar com um certo género ou orientação sexual. É claro que há correlações entre o sexo com que se nasce e a identidade de género. Em média, quem nasce com ovários tem mais tendência para umas coisas e quem nasce com testículos mais propensão para outras. Mas isso é em média e o que importa é o indivíduo. Em média também calha um testículo e um ovário por pessoa mas dificilmente se encontra alguém que coincida com essa média. Não há razão para que o sexo impeça uma pessoa de viver a sua vida como prefere quando isso não viola direitos dos outros.
E este é o problema principal para pessoas como Almada. As ideologias religiosas assentam em especulações infundadas acerca de quem criou o universo e o que quer de nós e não conseguem oferecer nada de objectivamente útil. Não ajudam a melhorar a economia, a inovar na ciência, a escolher sistemas políticos e sociais mais justos, a construir fábricas menos poluentes ou computadores mais rápidos. Os países que assentam na religião as suas leis, a sua ciência e a educação são países de onde as pessoas só querem sair. Por isso, as ideologias religiosas têm de se cingir ao subjectivo. Que crenças se deve ter, que palavras proferir em certos rituais, como viver a sexualidade, como criar os filhos, que roupa vestir e assim por diante. Naturalmente, isto coexiste muito mal com a ideologia do respeito pela autonomia individual, porque se as pessoas começam a pensar e a decidir por si acerca destas coisas o clero deixa de ter qualquer função na sociedade. Com uma taxa de desemprego tão alta, não é de admirar que se preocupem a sério com isto.
1- Observador, A ideologia de género, que género de ideologia é?
Ludiwg,
ResponderEliminarQuando dizes «Almada é (presumo) do mesmo sexo que eu. Mas não é do mesmo género» de que "género é que estamos a falar?
É que com a quantidade de "géneros" que anda por aí, um gajo tem mesmo de saber se está a falar da mesma coisa ou não... :P
Texto excelente e divertido!
ResponderEliminarAntónio,
ResponderEliminarCada género é uma construção social que abrange vários aspectos e papeis que normalmente se associa a um sexo. Quem abre a porta a quem, quem tira o chapéu para cumprimentar, quem usa saia ou calças, quem usa cabelo curto ou comprido, etc.
Conforme se vai reconhecendo o direito de cada um optar pela conjugação destas coisas da forma como mais considera adequado, e conforme diferentes culturas vão coabitando, mais combinações vão surgindo e mais géneros vamos tendo. Eventualmente podemos ter de reconhecer um género por pessoa e pronto.
Eventualmente? Pela definição que dá, o género unipessoal já é uma realidade (melhor ou pior aceite, é certo).
EliminarNo entanto, se assim é, legalmente deveremos congirmo-nos aquilo que é factual, que são os órgãos genitais.
Ludwig,
EliminarEu peço desculpa pela piada ao lado.
O problema é a palavra "género" que pode significar diferentes coisas, e no meu caso, era uma pergunta retórica, e não era para ter ligação directa ao texto.
Um artigo científico interessante, para os autoproclamados "macacos tagarelas" deste blog, sobre a ideologia de género dos orangotangos. Acabado de sair.
ResponderEliminar«Banes spent eight years studying the orangutans of Tanjung Puting National Park, collecting faecal samples from all orangutans observed in the 50 km² study area.»
EliminarDesde já proponho este sr. Banes como o candidato ao prémio ig-nobel 2015 para a saúde pública.
JDC,
ResponderEliminar«Eventualmente? Pela definição que dá, o género unipessoal já é uma realidade (melhor ou pior aceite, é certo).»
Certo. Falta a parte de reconhecer.
«No entanto, se assim é, legalmente deveremos congirmo-nos aquilo que é factual, que são os órgãos genitais.»
Há muita coisa que é factual além do sexo. A cor da pele. A religião dos pais. O grupo étnico a que pertence. As dimensões dos ossos do crânio. E assim por diante. Mas o que é que a lei tem que ver com isso? Devemos andar com “Judeu” ou “Cristão” ou “Ateu” escrito no cartão de cidadão? Devemos ter de usar casas de banho diferentes conforme sejamos brancos ou pretos?
Penso que aquilo ao que a lei se deve cingir não é meramente ao que é factual, mas ao que é factual e relevante. E o sexo não me parece que deva ser mais relevante do que o género. Que, já agora, é igualmente factual. É um facto que eu quero exercer o meu direito de usar calças, cortar a barba e andar com o cabelo curto.
Actualmente temos a sociedade segregada por sexo. Não me parece viável que isso deixe de acontecer, pelo que irá conrinuar a haver legislação que descrimina (sem o sentido negativo da palavra) por sexo. Era a isto que me referia.
EliminarJá agora, a escolha da religião, da maneira de vestir ou o tamanho da barba são escolhas pessoais. Depois de escolhidas são factos mas apenas porque são observáveis. Os nossos genes, por seu lado, não resultam de uma escolha e são factuais no seguinto que são indesmentiveis, ao contrário das anteriores.
A visão do bíblica do género é simples: no princípio Deus criou o Homem e a Mulher à Sia imagem, com igual dignidade.
ResponderEliminarE a verdade é que todos, sem exceção, somos o produto de um homem e de uma mulher, como os nossos 46 pares de cromossomas confirmam.
É um dado universal e não discriminatório que só corrobora o que há de singular e constitutivo (para o género humano e para cada indivíduo) na união entre um homem e uma mulher e que lhe confere uma especial dignidade de reconhecimento juríico e social.
Quem quiser saber mais, pode ler um artigo interessante sobre a visão bíblica do mundo, e sobre o modo como em 10 domínios da ciência, os factos obserbvados têm forçado os evolucionistas a recuar para posições mais próximas da perspetiva criacionista bíblica.
O artigo é especialmente adequado para uso em aulas de pensamento crítico.
Sempre pensei que ia falar sobre como a Bíblia diz que os animais se reproduzem de acordo com o seu género. É assim... O português é uma língua traiçoeira...
Eliminar"Sia"? Quem, a cantora?
EliminarJDC,
ResponderEliminar«Actualmente temos a sociedade segregada por sexo.»
Não. A segregação é por género, e não por sexo. Quando andamos na rua, falamos com as pessoas ou entrevistamos alguém para um emprego não estamos a ver o seu sexo ou os seus genes. Apenas vemos a maneira como falam, como se vestem, como usam o cabelo, etc. Ou seja, o género.
A questão fundamental aqui é se devemos impedir isto e obrigar cada um a revelar o seu sexo biológico. Como fazem na Arábia Saudita ou no Afeganistão, por exemplo, obrigando as pessoas a respeitar um código rígido de vestuário em função do seu sexo e sem respeito por quaisquer preferências pessoais. Uma vez que decidimos que isso é inadmissível e que temos de respeitar a privacidade e liberdade individual, passa a ser o género e não o sexo que conta para tudo excepto a vida íntima de cada um.
E mesmo o género deve contar pouco porque nós queremos uma sociedade tão pouco segregada por essas coisas quanto possível.