quinta-feira, agosto 06, 2015

Treta da semana (atrasada): Vampiros energéticos.

Declara o guia kármico Mário Portela que, «Por sermos um complexo energético, estamos sujeitos a interacções com várias dimensões de energias que podem ocasionar assimilação ou perda de energia»(1). Assimilamos estas energias por três vias diferentes. «Uma parte da energia que precisamos, obtemos através da alimentação e respiração (cerca de 10%) [...] Outra parte, através da sono e solarização (cerca de 20%) [...] mas a maior parte de energia que precisamos é aquela que vem através do fluido cósmico universal (cerca de 70%).» É o que eu tenho dito à minha mulher repetidamente. O meu peso não tem nada que ver com os chocolates. É o fluido cósmico universal que me dá cabo da linha.

Nesta troca de fluidos energéticos, «Um Vampiro Energético é uma pessoa que tem necessidade de energia vital cósmica e não consegue absorvê-la naturalmente. Por um mecanismo vibracional, de frequência vibracional, o vampiro aproxima-se de pessoas que têm boa carga de energia vital [… e os vampiros …] assim absorvem a energia do outro e, por estarem debilitados, metabolizam e consomem toda energia absorvida e não sobra nada para retornarem à simbiose com a outra pessoa.» É por isso importante identificar e evitar estas pessoas. O que não é difícil porque são pessoas que, entre outras coisas, «fazem perguntas para sondar o mundo da outra pessoa, com propósito de descobrir alguma coisa errada.» Como os cépticos, por exemplo, que venham dizer que esta treta das energias e dos vampiros é um enorme disparate. Esses são de evitar a todo o custo.

Este é um exemplo de uma treta, entre muitas, para a qual a abordagem tradicional do pensamento crítico adianta pouco. O pensamento crítico de raiz filosófica (2) enfatiza quase exclusivamente a análise de argumentos. A categorização de inferências e conceitos, o esclarecimento de termos, a estrutura lógica do argumento, a qualidade das inferências e assim por diante. Só a avaliação das premissas é que, forçosamente, tem de sair do âmbito do argumento, mas até essa tende a focar-se apenas no que é relevante ao argumento. O problema principal deste tipo de análise é promover a avaliação de narrativas pela sua consistência interna e como algo isolado do resto, o que é mau porque o problema principal em alegações como esta dos vampiros energéticos não está nos detalhes das inferências ou na estrutura lógica do argumento. Está em serem explicações claramente inferiores às alternativas que já temos, como a de que obtemos energia pelos alimentos e o resto são aspectos subjectivos e emocionais das relações entre pessoas e não têm nada que ver com “energias” ou vampirismo.

O problema da ênfase excessiva na argumentação é ainda mais grave quando, até para aproveitar este enviesamento, os argumentos são mais minuciosos e complicados. Um exemplo disso é o argumento ontológico para a existência de Deus (3). Uma versão recente, de Plantinga, apela à lógica modal para enunciar um elaborado argumento. A premissa de que é possível existir um ser “maximamente grande”, definido como sendo algo que é “maximamente excelente” em todos os mundos possíveis. Se é possível então existe num mundo possível e se existe num mundo possível e é “maximamente excelente” em todos então existe em todos os mundos possíveis, incluindo no nosso. Este é um excelente argumento porque qualquer pessoa que queira atacá-lo enquanto argumento irá ver-se a braços com a axiomatização da lógica modal, com os contra-argumentos a várias objecções, com as minudências da definição de cada conceito e uma miríade de detalhes complexos. Qualquer crítica a este argumento que tenha menos de 15 páginas e 30 referências à literatura será imediatamente descartada pelos filósofos da religião como coisa de ignorantes. Mas o problema fundamental do argumento ontológico é o mesmo desde há mil anos, quando Anselmo formulou a primeira versão oficial. Sem qualquer poder explicativo ou entrosamento com a realidade que observamos, nunca foi melhor do que explicações alternativas e, com o passar dos séculos e o melhoramento destas últimas, só foi ficando cada vez mais para trás.

A capacidade de avaliar criticamente estas coisas é muito importante e cada vez mais importante. Mas o pensamento crítico não deve focar a argumentação, a classificação de falácias e a análise minuciosa de conceitos em detrimento da avaliação da adequação do que é proposto enquanto explicação e da sua comparação com as alternativas. Se nos oferecerem uma roda quadrada para o automóvel a nossa preocupação principal não deve ser com a qualidade do material, o brilho do cromado ou os detalhes dos acabamentos.

Se alguém estiver interessado numa versão mais extensa e académica deste desabafo (com referências e tudo), está na página 31 do livro do II Seminário Internacional de Pensamento Crítico.

1- Portugal Místico, Vampiros Energéticos, parte 1
2- Por exemplo, como descrito no influente Delphi report, da American Philosophical Association
3- Wikipedia, Ontological argument

5 comentários:

  1. Nada como um pouco de "nonsense" e idiotice para animar esta "silly season".
    Deve ser do sol que esta malta apanha na praia!... Lá está: sol a mais, quer dizer energia a mais, logo, entram em sobreaquecimento! :P

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  2. Ludwig,

    proponho que, no teu afã relativamente a "Deus", faças um esforço (crítico e científico) para além do senso comum: não te atenhas a "Deus não existe"; explora outras possibilidades, como "se as coisas foram, são criadas, como, quem, o que as cria, criou".
    Não venhas com a treta de que as coisas se fizeram a si mesmas, porque isso não existe. Qualquer "coisa" se transforma noutra ao fazer algo.
    Mas também não venhas dizer que isso é evolução e que explica as coisas.
    Vamos supor que nunca ouvimos falar de Deus, nem de deuses, nem de evolução.
    Começa tudo do zero...

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  3. Podemos compreender o mundo sem a intervenção da crença?
    Parece-me que na história do pensamento humano quem melhor exprimiu esta ideia foi Descartes : Se penso, logo existo. Ou seja, a crença de que existia por ter essa faculdade miraculosa de pensar. No fundo, aquele sentimento básico e fundamental do sobressalto do ser, de ter consciência de si e do mundo que o rodeia, em última análise, de perceber que é alguma coisa, uma coisa que sente e que sabe que existe. Pelo menos, como pensamento.
    Se penso , logo existo, se penso, logo sou. Mas se este sentimento, esta sensação ou consciência de ser e de existir não tiver, afinal, nenhuma tradução real ? Se a mente for apenas um sonho insubstancial, um programa virtual, uma trágica ilusão ( mas mesmo assim, algo de significativo ), como aponta o Solipsismo ?
    Na verdade, existe uma crença fundamental antes de toda a crença, que é a crença na possibilidade da existência da própria crença - Eu acredito porque sou impelido naturalmente a acreditar, eu acredito que sou e que existo, eu acredito que acredito.
    A sublime explosão de subjectividade que determina o nascimento da consciência ( quando o ser estala com o pensar ) e que o axioma cartesiano reflecte tão bem, é, na realidade, a génese de toda a crença.
    Está bem, eu sei que se bater com força com a cabeça contra a parede, de imediato vou saber com quantos paus se faz uma canoa. Todavia, a dor lancinante que obviamente iria sentir teria apenas uma variável, é que a ilusão, assim, seria mais perfeita.

    (...) No princípio, Deus criou a terra e observou-a com atenção na Sua solidão cósmica.
    E Deus disse: façamos seres vivos com o barro, para o barro ver o que Nós fizemos.
    E Deus criou todos os seres vivos que se movem e um deles foi o homem. Só com o homem o barro podia falar.
    Deus inclinou-se para o barro, enquanto o homem olhou à sua volta e falou." Qual é o propósito de tudo isto", perguntou. "Tudo tem de ter um propósito?", perguntou Deus.
    " claro, disse o homem."
    "Então, encarrego-te de encontrares um para tudo isto", disse Deus.
    E foi-se embora.(...)
    Kurt Vonnegut

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    1. Castro Fernandes,

      É curioso que o texto que transcreve diga "[...]façamos seres vivos[...]" e "[...]que Nós fizemos[...]".
      A Bíblia também diz algo do género, pelo menos nas traduções a que tenho tido acesso.
      A questão é: de quantos deuses estamos a falar, quando falamos da criação do universo?

      (http://skepticsannotatedbible.com/contra/gods.html)

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  4. A nossa mente " foi programada " para nos dar todas as respostas. Agora, é preciso saber perguntar. Está lá tudo. E quando se diz tudo, é mesmo tudo. E não é a natureza que responde a este desafio, nem é ela que coloca as questões, é a mente humana que outorga significado, é a mente humana a debruçar-se sobre si própria.
    O presente , o passado e o futuro, a vida e a nossa existência, a realidade e o cosmos, bem como todas as intermitências da metafísica, onde avultam as questões do infinito e da origem - o fundo, o fundinho de tudo isto -, está tudo contido na nossa mente.
    De facto, para lá da fé e do apego de todas as religiões a um Deus e a todos os deuses, incluindo os seres ditos supremos de que falam as misteriosas mitologias ancestrais, indiciando que talvez tivéssemos sido visitados por alguma civilização muito mais avançada extraterrestre há milhares de anos, ou de termos sido uma das suas colónias experimentais, ou o seu elo mais atrasado, quiçá; para lá de todas as respostas e virtualidades que a visão e especulação tecno-científica nos possam dar sobre os caminhos do futuro, como a possibilidade de podermos estar a viver noutras dimensões , ou num multi-universo, ou de vir a trilhar, daqui por milénios, os caminhos enigmáticos
    do horizonte de eventos de um buraco negro; para lá, enfim, de tudo o mais que possa impressionar todas as nossas inquietações e interrogações de todos os tempos e para todos os tempos daquilo que estará por "detrás" disto tudo, subjazerá sempre, no meio desta tormentosa tempestade, que é a existência humana, a inefável e sempre enigmática mente. Se até aqui foi ela quem nos iluminou o caminho, por certo que será nela também que encontraremos a resposta, porque nós seremos sempre a pergunta e a resposta, porque nós seremos sempre a resposta. Mesmo que demore uma
    eternidade.

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