sábado, agosto 08, 2015

Demarcação, parte 2.

Para qualquer qualquer lista razoável de características que determinam o que é uma pessoa, seja raciocínio, sensação, afectos, resolução de problemas, aprendizagem ou expectativas, em todas um porco adulto está à frente de um humano recém-nascido. A complexidade do nosso sistema nervoso e a necessidade de combinar uma cabeça enorme com ancas de bípede faz-nos nascer tão prematuros que só meses depois do nascimento é que as capacidades cognitivas de uma criança começam a ultrapassar aquelas de animais que costumamos guardar aos pedaços no frigorífico. Ainda assim, matar um humano recém-nascido é pior do que matar um porco adulto. Não pelo que o recém-nascido é naquele momento mas porque a vida humana, no seu todo, é muito mais rica e preciosa do que a de um porco. É também este critério que nos faz prezar a vida do feto humano com 30 ou 20 semanas. Não pelas características que manifesta nessa altura do seu desenvolvimento, que não são nada de especial, mas pela capacidade de chegar àquela subjectividade que nós temos e que poucos animais aproximam.

Muitos defendem que, às 10 semanas, a situação é completamente diferente. Dizem que não se consegue traçar uma linha exacta mas que é preciso traçá-la algures e, por isso, fica no redondo número 10. Mas mesmo sem saber exactamente quando a criança ultrapassa o porco, sabemos que só começa a fazê-lo bastante depois do nascimento. Por isso, não é possível traçar uma linha que ponha o porco e o feto de dez semanas de um lado e o recém nascido do outro. Pelas capacidades que manifestam naquele momento, o porco fica à frente dos dois. E pelas capacidades que manifestarão no futuro, ambos ficam à frente do porco. Para fazer esta distinção é preciso abandonar qualquer fundamento empírico e inventar uma categoria de “pessoa” da qual os fetos com 10 semanas são excluídos por mera definição. Eu rejeito esta aldrabice por ser demasiado arbitrária, infundada e desnecessária. O critério da capacidade futura, que tão bem distingue o recém-nascido do porco e que também serve para o feto de 20 semanas, serve igualmente para o de 10 ou qualquer outro número.

Um problema que apontam a isto, e a razão deste post, é que sem uma demarcação qualquer que permita ignorar os fetos mais novos também teremos de respeitar os óvulos e os espermatozóides, pois estes também podem criar a tal vida futura preciosa. É um ponto pertinente. Considerando os 43 anos que vivi até agora, é evidente que teria perdido imenso se me tivessem matado à nascença. Ou se me tivessem abortado. Ou se os meus pais não me tivessem concebido. Para mim, estas três possibilidades seriam equivalentes. Teria perdido exactamente o mesmo (tudo). No entanto, o valor subjectivo das consequências para aqueles que as sofrem não é o único factor a considerar quando avaliamos a ética de um acto.

Imaginemos que a Ana põe uma bomba num centro comercial, sabendo que irá matar várias pessoas. E o Bruno aprova a construção de uma auto-estrada, sabendo que irão morrer várias pessoas todos os anos nessa estrada. Apesar de, a longo prazo, a auto-estrada até matar mais pessoas, não precisamos de definir qualquer diferença metafísica entre sinistrados e vítimas do atentado para distinguir o valor ético dos actos da Ana e do Bruno. Cada pessoa que morre trespassada pelos estilhaços da bomba tem a sua morte ligada ao acto da Ana por uma linha clara de causalidades. Outros factores causais, como a pessoa ter ido ao centro comercial a essa hora, são secundários e não a causa principal da morte. Cada vítima morreu por causa da bomba. No caso do Bruno é o contrário. A causa principal daquele despiste terá sido excesso de velocidade, aquela colisão foi por o piso estar molhado ou os travões terem falhado, e em nenhum caso é razoável dizer que a pessoa morreu porque o Bruno assinou a autorização de construção. O acto do Bruno foi apenas mais um factor causal secundário entre muitos.

É esta a diferença entre, por um lado, o infanticídio, homicídio ou aborto, seja a que semanas for e, por outro, a contracepção. No primeiro caso temos actos que são a causa principal da eliminação daquela vida que impedem que exista. O segundo é diferente porque, entre os milhões de milhões (de milhões de milhões... ; é um número enorme) de filhos que cada pessoa poderia ter, correspondendo a todas as combinações de gâmetas com todos os seus potenciais parceiros, cada um desses que não existe deve a sua inexistência a um conjunto enorme de factores. Imensos factores biológicos, fisiológicos, coincidências várias de quem encontra quem e quando e, no meio disto tudo, a decisão de ir jantar fora, ficar até mais tarde no trabalho ou não ter filhos com aquela pessoa não se destacam como particularmente relevantes. Da decisão de não ter filhos resulta que alguns que poderiam ter nascido não nascem. Mas a responsabilidade ética por essa ausência é análoga à responsabilidade ética que Karl Benz tem pelos milhares de pessoas que morrem em acidentes de viação todos os anos. Ter inventado o automóvel é um factor causal nessas mortes mas, para cada uma dessas mortes em particular, é apenas um entre muitos factores causais e está longe de ser o principal.

Não é necessário inventar distinções metafísicas entre pessoas e não pessoas para ter uma ética consistente, fundamentada e prática. E assentar a ética nesta distinção é até perigoso. Para perceber que temos o dever de não prejudicar um ser não precisamos de decidir que é pessoa. Pegar fogo a um gato ou matar os últimos rinocerontes é obviamente errado, seja qual for a definição de pessoa. O único papel prático de definir o que é pessoa tem sido o de fazer algo que, sem essa desculpa, seria obviamente condenável. O touro não é pessoa, os índios americanos não eram pessoas, os escravos africanos não eram pessoas, as mulheres, as crianças, os infiéis. É o que der jeito. Mas isso não é ética. É precisamente o oposto.

1- Demarcação

5 comentários:

  1. Mais uma importante descoberta cosmológica que mostra a importância de não confundir modelos cosmológicos dominanantes com factos realmente observáveis.

    Neste caso, os factos observáveis desmentem os modelos, como é reconhecido:

    "If we are right, this structure contradicts the current models of the universe. It was a huge surprise to find something this big – and we still don't quite understand how it came to exist at all."

    "The team now want to find out more about the ring, and establish whether the known processes for galaxy formation and large scale structure could have led to its creation, or if astronomers need to radically revise their theories of the evolution of the cosmos."


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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Infelizmente, o tema é aborto, regras e limites. Nada como misturar e dar de novo. Isso sim é o que "não se deve confundir".

      De resto, a "ciência observacional" e a "ciência histórica" é pura treta criacionista, e ainda não encontrei (para lá de propaganda criacionista) textos que apoiem tal divisão!
      O artigo nada diz sobre tal divisão que os criacionistas dizem existir. Por outro lado, esquece-se de referir que o artigo é sobre uma região com 5000 milhões de anos luz de extensão: sempre gostaria de saber como é que isso é possível num Universo que só existe há 5000 anos.
      De resto o artigo é um bom exemplo de como a ciência deve ser feita: observações -> novos modelos teóricos -> avaliação de pares -> comparação de modelos.
      Sempre gostaria de ver tal processo a ser aplicado ao qualquer livro religioso, sem que o resultado não seja uma nova religião ou pior, uma guerra contra os hereges.

      Também por aqui, nada de novo na frente ocidental.

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  2. Boas Ludwig Krippahl

    Se é errado matar um feto ? sim, seria melhor deixa-lo crescer e ser mais um dos 9,6 biliões estimados para 2050.

    Se é ainda mais errado obrigar uma mulher a ter de completar uma gravidez que não deseja ?

    sem dúvida, se bem que a poderíamos prender confortavelmente a uma cama, penso que este processo seria por todos visto como um pouco brutal.

    Não consigo encontrar uma solução para quem não queira ter a gravidez que não passe por um aborto,depois da gravidez ter sido consumada.

    O tema , a meu ver, é apenas esse: qual a melhor solução tendo em conta que a mãe não pode ser forçada.

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  3. Nuvens,

    «Se é ainda mais errado obrigar uma mulher a ter de completar uma gravidez que não deseja ?
    […]
    O tema , a meu ver, é apenas esse: qual a melhor solução tendo em conta que a mãe não pode ser forçada.»

    Em geral, concordo. Acho que na maior parte das situações concebíveis das quais possa resultar uma gravidez não é legítimo forçar a mulher sustentar o feto nem o homem a sustentar a criança depois de ter nascido. Tal como, na maior parte das situações concebíveis em que a minha janela se possa partir não é legítimo obrigar-te a pagar o arranjo.

    Excepto naquela situação específica, muito concreta, em que a janela se partiu por tua causa, mesmo que não fosse intencional. Nesse caso tens de pagar. Tal como o homem que, voluntariamente, tem relações sexuais com uma mulher e ela engravida. Esse não se deve safar de ajudar a criar a criança até aos 18 anos. Bem que pode dizer que não queria, que teve cuidado ou o que quiser, mas se o filho é dele agora aguente-se. Se a mãe quiser criar o filho, então o pai, queira ou não queira, é obrigado a pagar por isso durante 18 anos ou pode até ir preso. E não acho mal que assim seja.

    A mulher, ao contrário do homem, tem o direito legal de dar a criança para adopção. Basta preencher os papeis no hospital e pronto, nunca mais vê o miúdo na vida. Parece-me uma discriminação discutível, mas também não vejo que nos possamos opor a isto, por questões práticas. O ideal seria que o pai e a mãe tivessem tanto apoio da sociedade que qualquer um deles pudesse cuidar da criança se quisesse, e apenas se quisesse, e ninguém fosse obrigado a estar 18 anos a pagar contra vontade. Mas, fora desse ideal, esta solução parece-me a menos má.

    No entanto, há aqui uma coisa que me parece fundamental. Queiram ou não queiram o filho, se este resultou de uma decisão consensual e voluntária de ter relações sexuais, são ambos responsáveis pelo menos de o entregar em segurança a quem cuide do ser que conceberam. Isto implica que não podem deitá-lo para o caixote do lixo. Não o podem abandonar no meio da rua. Se tiverem de andar 50 quilómetros a pé com a criança ao colo para a poder deixar no hospital, então é essa a obrigação que têm. É o que for preciso. Não têm o direito de matar só porque fizeram asneira e agora não querem ser contrariados.

    E isto inclui os meses de gestação necessários para que a interrupção voluntária da gravidez não implique riscos para a vida daquele ser humano pelo qual são responsáveis.

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